Angeli
Foto Ana Ottoni
Há quem se atribua a tarefa de pregar o Evangelho, de libertar o Tibete ou de salvar o pica-pau-anão-da-caatinga. Angeli contenta-se em pisar com os pés sujos de barro no tapete dos outros, honorável missão que abraça desde a juventude. Quando cria histórias em quadrinhos, charges e cartuns, não almeja simplesmente o sucesso. Move-se, acima de tudo, pela gana de incomodar o público — de implodir a hipocrisia, zombar do senso comum e engordar as pulgas atrás das orelhas, como o visitante que emporcalha de propósito o chão impecável das casas que o recebem. Qualquer humorista deveria agir assim e rejeitar com energia as piadas assépticas, a correção política, o chiste dos bananas. Comediante digno do nome precisa cultivar a maldade. Ele a cultiva, e não só na prancheta. Por exemplo: se pensa horrores de fulano ou sicrano, deixa que os pensamentos corram soltos; se perde a paciência numa hora em que a boa educação recomenda o equilíbrio, explode sem culpa.
Certa época, ouvia sempre a mesma conversa de um jornalista da Folha de S. Paulo que o observava trabalhar: "Rapaz, tenho centenas de idéias para charges. Um punhado de reflexões incríveis. Pena que não saiba desenhar... Não consigo esboçar nem sequer uma bola". Na realidade, o sujeito pretendia que Angeli aproveitasse as tais sacadas maravilhosas. Uma tarde, porém, o cartunista se cansou daquilo e resolveu botar a coisa em pratos limpos: "Pois é, meu chapa, me dei melhor que você. Tenho milhões de idéias bacanas e, ainda por cima, sei desenhar bola, árvore, foguete, macaco...".
Sim, tomou porres homéricos, atravessou madrugadas cheirando cocaína, uivou em bares e se entregou sem rédeas à cafajestagem. Viveu la vida loca inclusive durante os dois primeiros casamentos (da segunda união, longuíssima, nasceram os filhos Pedro e Sofia). Somente após conhecer Carol, a terceira mulher, é que o panorama começou a se modificar. Ela tinha 17 anos. Ele, 38. Àquela altura, julgava-se um "lobo meio caquético" e farejava uma boa dose de inocência na jovem que contratara como arte-finalista. Com medo de magoá-la, ou "de borrar a pureza" que as meninas revelam mesmo quando tentam parecer calejadas, decidiu abdicar da noite. Seguem juntos há mais de uma década, só que moram em apartamentos separados.
O pai, um funileiro de ascendência italiana, adora pássaros e os desenha à perfeição. Para entreter o pequeno Arnaldo (Angeli é sobrenome), arranjava folhas de papel pardo, dessas que embrulham pães, e sacava do bolso um lápis de marceneiro. "Espie só, garoto, vou fazer um pintassilgo." E o pintassilgo irrompia magicamente no pedaço de papel barato. "Agora, um papa-capim." Enquanto admirava os traços paternos, Arnaldo ia descobrindo que possuía aptidão idêntica. Mas, em vez de sabiás ou curiós, preferia retratar caubóis, sobretudo Roy Rogers, herói onipresente dos faroestes que gostava de ver. Não satisfeito, vestia a roupa do ídolo e perambulava pelas ruas da Casa Verde, bairro paulistano onde cresceu. O pai, que freqüentemente participava do passeio, cutucava o caçula mal se deparava com um amigo: "Vamos, Arnaldo, conte quem você é". O moleque, inflado, abria um sorriso banguela, alisava a cartucheira e proclamava: "Roy Rogers!".
Séculos depois, Angeli se mudou para o edifício Bretagne, um dos mais exóticos da cidade. Tão logo se instalou, recebeu uma notícia espetacular: o ator norte-americano Leonard Franklin Slye, intérprete de Roy Rogers, comparecera à inauguração do prédio em 1959. "Você se lembra do Roy Rogers, não?'', perguntou o também cartunista Paulo Caruso, que lhe trouxera a novidade. "Se me lembro?", desdenhou Angeli. "Eu sou o Roy Rogers, cara!"
Angeli no escritório de sua casa, em São Paulo
O chargista é homenageado com uma retrospectiva no 1° Festival Internacional de Humor do Rio de Janeiro, que se realiza até o dia 23/11
Há quem se atribua a tarefa de pregar o Evangelho, de libertar o Tibete ou de salvar o pica-pau-anão-da-caatinga. Angeli contenta-se em pisar com os pés sujos de barro no tapete dos outros, honorável missão que abraça desde a juventude. Quando cria histórias em quadrinhos, charges e cartuns, não almeja simplesmente o sucesso. Move-se, acima de tudo, pela gana de incomodar o público — de implodir a hipocrisia, zombar do senso comum e engordar as pulgas atrás das orelhas, como o visitante que emporcalha de propósito o chão impecável das casas que o recebem. Qualquer humorista deveria agir assim e rejeitar com energia as piadas assépticas, a correção política, o chiste dos bananas. Comediante digno do nome precisa cultivar a maldade. Ele a cultiva, e não só na prancheta. Por exemplo: se pensa horrores de fulano ou sicrano, deixa que os pensamentos corram soltos; se perde a paciência numa hora em que a boa educação recomenda o equilíbrio, explode sem culpa.
Certa época, ouvia sempre a mesma conversa de um jornalista da Folha de S. Paulo que o observava trabalhar: "Rapaz, tenho centenas de idéias para charges. Um punhado de reflexões incríveis. Pena que não saiba desenhar... Não consigo esboçar nem sequer uma bola". Na realidade, o sujeito pretendia que Angeli aproveitasse as tais sacadas maravilhosas. Uma tarde, porém, o cartunista se cansou daquilo e resolveu botar a coisa em pratos limpos: "Pois é, meu chapa, me dei melhor que você. Tenho milhões de idéias bacanas e, ainda por cima, sei desenhar bola, árvore, foguete, macaco...".
Muitos dos personagens que inventou usam óculos escuros, apesar de raramente enfrentarem o sol: Rê Bordosa, Ritchi Pareide, Bob Cuspe, Nanico, Mara Tara, Wood & Stock. Ele próprio, em auto-retratos, costuma ocultar os olhos sob lentes negras. Entretanto, não reparava no cacoete. Percebeu-o apenas depois que alguns leitores comentaram. "É verdade!", admitiu, surpreso. "Estão todos de óculos escuros... Mas por quê?" Até hoje, não encontrou uma resposta convincente. Já disseram que o acessório representa o lado sombrio do cartunista — a sedução pela boêmia, as ressacas indomáveis, o apego desenfreado às drogas. Embora respeite a tese, Angeli não ousa ratificá-la. Considera a interpretação excessivamente literal.
Sim, tomou porres homéricos, atravessou madrugadas cheirando cocaína, uivou em bares e se entregou sem rédeas à cafajestagem. Viveu la vida loca inclusive durante os dois primeiros casamentos (da segunda união, longuíssima, nasceram os filhos Pedro e Sofia). Somente após conhecer Carol, a terceira mulher, é que o panorama começou a se modificar. Ela tinha 17 anos. Ele, 38. Àquela altura, julgava-se um "lobo meio caquético" e farejava uma boa dose de inocência na jovem que contratara como arte-finalista. Com medo de magoá-la, ou "de borrar a pureza" que as meninas revelam mesmo quando tentam parecer calejadas, decidiu abdicar da noite. Seguem juntos há mais de uma década, só que moram em apartamentos separados.
O pai, um funileiro de ascendência italiana, adora pássaros e os desenha à perfeição. Para entreter o pequeno Arnaldo (Angeli é sobrenome), arranjava folhas de papel pardo, dessas que embrulham pães, e sacava do bolso um lápis de marceneiro. "Espie só, garoto, vou fazer um pintassilgo." E o pintassilgo irrompia magicamente no pedaço de papel barato. "Agora, um papa-capim." Enquanto admirava os traços paternos, Arnaldo ia descobrindo que possuía aptidão idêntica. Mas, em vez de sabiás ou curiós, preferia retratar caubóis, sobretudo Roy Rogers, herói onipresente dos faroestes que gostava de ver. Não satisfeito, vestia a roupa do ídolo e perambulava pelas ruas da Casa Verde, bairro paulistano onde cresceu. O pai, que freqüentemente participava do passeio, cutucava o caçula mal se deparava com um amigo: "Vamos, Arnaldo, conte quem você é". O moleque, inflado, abria um sorriso banguela, alisava a cartucheira e proclamava: "Roy Rogers!".
Séculos depois, Angeli se mudou para o edifício Bretagne, um dos mais exóticos da cidade. Tão logo se instalou, recebeu uma notícia espetacular: o ator norte-americano Leonard Franklin Slye, intérprete de Roy Rogers, comparecera à inauguração do prédio em 1959. "Você se lembra do Roy Rogers, não?'', perguntou o também cartunista Paulo Caruso, que lhe trouxera a novidade. "Se me lembro?", desdenhou Angeli. "Eu sou o Roy Rogers, cara!"
Tempos atrás, deu um pulo na padaria com Carol. Ela comprava um sanduíche. Ele a esperava numa mesa. Ela demorou um pouco. Ele se ajeitou no assento e... cochilou! Em plena luz do dia. Dormiu de repente, sem notar, como os idosos que espreitava quando criança. Mãe, por que o vovô está dormindo ali na cadeira? Porque é velhinho, Arnaldo, e os velhinhos dormem à toa. Que lástima! Bem mais depressa do que cogitara, o neto se transformou no avô.
Completou 52 anos em agosto e ainda não abandonou o péssimo hábito de roer as unhas. Culpa da ansiedade recorrente e monstruosa, que também o impede de largar o cigarro. Já colocou band-aid na ponta dos dez dedos imaginando que o truque domesticaria a sanha roedora. Não funcionou: os curativos o impossibilitavam de desenhar. Teve de arrancá-los. Apelou, então, para o plano B: passou nas unhas um remédio de sabor horroroso indicado pela filha. Em uma semana, se acostumou com o gosto ruim. "O problema, Angeli, é que você sofre de compulsão oral", diagnosticou Laerte, colega de ofício e amigo das antigas. "Só existe uma saída para o seu caso: substituir o cigarro e as unhas por mulheres nuas, que me parecem menos destrutivas. Vamos arrumar uma porção delas, loiras, morenas, ruivas, todas lindas e minúsculas, do tamanho de um besouro. Você as espalha pela prancheta e continua trabalhando. Sempre que sentir vontade de enfiar algo na boca, agarra uma das moças e engole." O lobo meio caquético se comoveu imensamente com a sugestão.
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