Ele não dava nenhuma bandeira de que defendia os fracos e oprimidos. Pelo contrário: quem o avistasse numa savana ou floresta logo se assustaria e sairia correndo. Dificilmente alguém imaginaria que aquela criaturinha dentuça salvara inúmeras almas por causa de um insólito superpoder, o olfato afiadíssimo. O herói sem capa nem escudo chamava-se Magawa e nasceu na Tanzânia, país da África Oriental, mas virou lenda graças às façanhas que protagonizou em outra região: o Sudeste Asiático. Era, por incrível que pareça, um rato.
Com pelagem castanha, inevitáveis orelhas de abano, cauda maior que o resto do corpo e bigodes tão longos que matariam Salvador Dalí de inveja, pesava 1,2 kg e media 70 cm de comprimento. Não tinha, está claro, o porte de um rinoceronte ou hipopótamo. Mesmo assim, os zoólogos o classificavam como um rato-gigante-do-sul. A espécie atende pelo nome científico de Cricetomys ansorgei e é bem mais parruda que os hamsters, camundongos e outros bigodudos.
Onívoro, Magawa exibia bochechas elásticas o suficiente para transportar toda a comida que desejasse armazenar numa toca. O roedor, porém, nunca precisou lutar pelo próprio sustento nem construir abrigos. Ele sempre viveu em cativeiro, sob os cuidados de uma organização não governamental belga, a Apopo. Foi gerado na cidade tanzaniana de Morogoro, onde fica a Universidade Sokoine de Agricultura. A instituição – que o acolheu desde o nascimento, em 25 de novembro de 2013 – decidiu transferi-lo para o Sudeste Asiático três anos depois. No Camboja, Magawa finalmente iniciou o trabalho que o consagraria: a detecção de minas terrestres.
Em zonas de conflito, tais artefatos bélicos são instalados junto à vegetação rasteira e debaixo do solo com o intuito de evitar que adversários acessem pontos estratégicos, como arsenais, rodovias, postos militares e reservatórios de água. Basta pisar nas armadilhas para detoná-las. Uma vez acionadas, lançam estilhaços de metal capazes de matar ou ferir gravemente tanto os humanos quanto os bichos. Por continuarem ocultos mesmo depois das guerras e insurreições, os dispositivos que ainda não estouraram acabam interditando locais onde poderiam existir moradias e florescer atividades econômicas. Daí a necessidade de localizar e remover os armamentos – uma operação arriscada e onerosa.
Em 2020, pelo menos 7 073 pessoas de 54 países morreram ou se machucaram devido às minas terrestres. O contingente é 20% maior que o de 2019. Cada artefato custa, no máximo, 30 dólares. O intrincado processo de desativá-lo, contudo, sai bem mais caro: de 300 a 1 mil dólares. Rússia, China e Estados Unidos figuram hoje entre os principais fabricantes desse tipo de armadilha.
Se treinados adequadamente, ratos como Magawa ou de outra espécie parecida, a Cricetomys gambianus, conseguem sentir o cheiro do TNT, explosivo que compõe a maioria das minas terrestres. Assim que reconhecem o odor maligno, os roedores arranham o chão justamente na altura em que os dispositivos se escondem. Um único animal leva trinta minutos para rastrear um terreno com as dimensões de uma quadra de tênis. Já um técnico não vasculha a mesma área em menos de quatro dias, ainda que use um detector de metais.
Além de se destacarem pela rapidez, os mamíferos de faro prodigioso são certeiros. Diferentemente das máquinas, que podem confundir meras sucatas com minas terrestres, os ratos não costumam errar. Quando acusam a presença do TNT, há grandes chances de que estejam realmente em cima de uma armadilha.
Para atingir tamanha precisão, os roedores passam por um treinamento de nove meses e recebem bananas ou amendoins toda vez que identificam o cheiro do explosivo. Depois que concluem o aprendizado, deixam de ganhar as recompensas e trabalham de graça.
Bastante comuns na África, os Cricetomys ansorgei e os Cricetomys gambianus executam o serviço com tanta eficácia não apenas porque dispõem de olfato aguçado. Eles também se mostram dóceis e obstinados, o que os torna facilmente domesticáveis, têm uma memória acima da média e não pesam muito. Por isso, conseguem andar sobre as minas terrestres sem ativá-las.
Foi o belga Bart Weetjens, engenheiro de produtos que virou monge budista, quem resolveu utilizar ratos para monitorar os temerários dispositivos. Em 1997, apresentou a ideia à Universidade de Antuérpia e à Universidade Sokoine de Agricultura, que estudaram o assunto e adestraram os primeiros bichinhos. Paralelamente, Weetjens fundou a Apopo e a incumbiu de capitanear o projeto.
Desde então, os roedores da ONG – batizados de HeroRATs – já contribuíram para desmontar quase 140 mil minas, que ameaçavam 1,1 milhão de pessoas, distribuídas por 30 milhões de m². Atualmente a entidade ainda conta com as duas parcerias acadêmicas, detém um orçamento anual de 5 milhões de euros e possui 136 ratos. Quarenta deles procuram minas no Camboja e 10 em Angola, 66 estão treinando na Sokoine e 20 realizam outra tarefa espantosa: cheirar escarros para averiguar se habitantes pobres da Etiópia e da Tanzânia sofrem de tuberculose.
Durante cinco anos, Magawa abraçou com afinco a nobre missão que a Apopo lhe confiou. Valeu a pena. Sozinho, o roedor encontrou mais de cem artefatos bélicos, sobretudo na cidade cambojana de Siem Reap. Entre as descobertas, havia minas terrestres, mas também granadas, bombas e projéteis não detonados. Nenhum outro rato se saiu melhor. Para retribuir tanta bravura, a People’s Dispensary for Sick Animals (PDSA) homenageou Magawa com uma medalha de ouro em setembro de 2020. Até aquele momento, a instituição britânica que se dedica à caridade veterinária desde 1917 só premiara cachorros, pombos, cavalos e gatos.
Em junho de 2021, o roedor condecorado se aposentou. Estava bem de saúde, embora já não tivesse o olfato sensível da mocidade. Sem obrigações profissionais, atravessava os dias fazendo o que mais gostava: cavar, roer, brincar e correr numa ampla gaiola, equipada com rodas de exercício, túneis, rampas, cordas, galhos e areia. Em janeiro, perdeu o apetite, manifestou cansaço excessivo e se tornou sonolento. Morreu de causas naturais no segundo sábado do mês. Quarenta e cinco dias antes, completara 8 anos – uma idade avançada mesmo para os ratos excepcionais. (revista piauí)
Publicado
terça-feira, 1 de fevereiro de 2022 às 6:33 pm e categorizado como Reportagens.
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Faro afiado
Um rato africano contra as minas terrestres
Ele não dava nenhuma bandeira de que defendia os fracos e oprimidos. Pelo contrário: quem o avistasse numa savana ou floresta logo se assustaria e sairia correndo. Dificilmente alguém imaginaria que aquela criaturinha dentuça salvara inúmeras almas por causa de um insólito superpoder, o olfato afiadíssimo. O herói sem capa nem escudo chamava-se Magawa e nasceu na Tanzânia, país da África Oriental, mas virou lenda graças às façanhas que protagonizou em outra região: o Sudeste Asiático. Era, por incrível que pareça, um rato.
Com pelagem castanha, inevitáveis orelhas de abano, cauda maior que o resto do corpo e bigodes tão longos que matariam Salvador Dalí de inveja, pesava 1,2 kg e media 70 cm de comprimento. Não tinha, está claro, o porte de um rinoceronte ou hipopótamo. Mesmo assim, os zoólogos o classificavam como um rato-gigante-do-sul. A espécie atende pelo nome científico de Cricetomys ansorgei e é bem mais parruda que os hamsters, camundongos e outros bigodudos.
Onívoro, Magawa exibia bochechas elásticas o suficiente para transportar toda a comida que desejasse armazenar numa toca. O roedor, porém, nunca precisou lutar pelo próprio sustento nem construir abrigos. Ele sempre viveu em cativeiro, sob os cuidados de uma organização não governamental belga, a Apopo. Foi gerado na cidade tanzaniana de Morogoro, onde fica a Universidade Sokoine de Agricultura. A instituição – que o acolheu desde o nascimento, em 25 de novembro de 2013 – decidiu transferi-lo para o Sudeste Asiático três anos depois. No Camboja, Magawa finalmente iniciou o trabalho que o consagraria: a detecção de minas terrestres.
Em zonas de conflito, tais artefatos bélicos são instalados junto à vegetação rasteira e debaixo do solo com o intuito de evitar que adversários acessem pontos estratégicos, como arsenais, rodovias, postos militares e reservatórios de água. Basta pisar nas armadilhas para detoná-las. Uma vez acionadas, lançam estilhaços de metal capazes de matar ou ferir gravemente tanto os humanos quanto os bichos. Por continuarem ocultos mesmo depois das guerras e insurreições, os dispositivos que ainda não estouraram acabam interditando locais onde poderiam existir moradias e florescer atividades econômicas. Daí a necessidade de localizar e remover os armamentos – uma operação arriscada e onerosa.
Em 2020, pelo menos 7 073 pessoas de 54 países morreram ou se machucaram devido às minas terrestres. O contingente é 20% maior que o de 2019. Cada artefato custa, no máximo, 30 dólares. O intrincado processo de desativá-lo, contudo, sai bem mais caro: de 300 a 1 mil dólares. Rússia, China e Estados Unidos figuram hoje entre os principais fabricantes desse tipo de armadilha.
Se treinados adequadamente, ratos como Magawa ou de outra espécie parecida, a Cricetomys gambianus, conseguem sentir o cheiro do TNT, explosivo que compõe a maioria das minas terrestres. Assim que reconhecem o odor maligno, os roedores arranham o chão justamente na altura em que os dispositivos se escondem. Um único animal leva trinta minutos para rastrear um terreno com as dimensões de uma quadra de tênis. Já um técnico não vasculha a mesma área em menos de quatro dias, ainda que use um detector de metais.
Além de se destacarem pela rapidez, os mamíferos de faro prodigioso são certeiros. Diferentemente das máquinas, que podem confundir meras sucatas com minas terrestres, os ratos não costumam errar. Quando acusam a presença do TNT, há grandes chances de que estejam realmente em cima de uma armadilha.
Para atingir tamanha precisão, os roedores passam por um treinamento de nove meses e recebem bananas ou amendoins toda vez que identificam o cheiro do explosivo. Depois que concluem o aprendizado, deixam de ganhar as recompensas e trabalham de graça.
Bastante comuns na África, os Cricetomys ansorgei e os Cricetomys gambianus executam o serviço com tanta eficácia não apenas porque dispõem de olfato aguçado. Eles também se mostram dóceis e obstinados, o que os torna facilmente domesticáveis, têm uma memória acima da média e não pesam muito. Por isso, conseguem andar sobre as minas terrestres sem ativá-las.
Foi o belga Bart Weetjens, engenheiro de produtos que virou monge budista, quem resolveu utilizar ratos para monitorar os temerários dispositivos. Em 1997, apresentou a ideia à Universidade de Antuérpia e à Universidade Sokoine de Agricultura, que estudaram o assunto e adestraram os primeiros bichinhos. Paralelamente, Weetjens fundou a Apopo e a incumbiu de capitanear o projeto.
Desde então, os roedores da ONG – batizados de HeroRATs – já contribuíram para desmontar quase 140 mil minas, que ameaçavam 1,1 milhão de pessoas, distribuídas por 30 milhões de m². Atualmente a entidade ainda conta com as duas parcerias acadêmicas, detém um orçamento anual de 5 milhões de euros e possui 136 ratos. Quarenta deles procuram minas no Camboja e 10 em Angola, 66 estão treinando na Sokoine e 20 realizam outra tarefa espantosa: cheirar escarros para averiguar se habitantes pobres da Etiópia e da Tanzânia sofrem de tuberculose.
Durante cinco anos, Magawa abraçou com afinco a nobre missão que a Apopo lhe confiou. Valeu a pena. Sozinho, o roedor encontrou mais de cem artefatos bélicos, sobretudo na cidade cambojana de Siem Reap. Entre as descobertas, havia minas terrestres, mas também granadas, bombas e projéteis não detonados. Nenhum outro rato se saiu melhor. Para retribuir tanta bravura, a People’s Dispensary for Sick Animals (PDSA) homenageou Magawa com uma medalha de ouro em setembro de 2020. Até aquele momento, a instituição britânica que se dedica à caridade veterinária desde 1917 só premiara cachorros, pombos, cavalos e gatos.
Em junho de 2021, o roedor condecorado se aposentou. Estava bem de saúde, embora já não tivesse o olfato sensível da mocidade. Sem obrigações profissionais, atravessava os dias fazendo o que mais gostava: cavar, roer, brincar e correr numa ampla gaiola, equipada com rodas de exercício, túneis, rampas, cordas, galhos e areia. Em janeiro, perdeu o apetite, manifestou cansaço excessivo e se tornou sonolento. Morreu de causas naturais no segundo sábado do mês. Quarenta e cinco dias antes, completara 8 anos – uma idade avançada mesmo para os ratos excepcionais.
(revista piauí)
Publicado terça-feira, 1 de fevereiro de 2022 às 6:33 pm e categorizado como Reportagens. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.