Ronaldo Fraga
Foto Ana Ottoni
O estilista está lançando Disneylândia, sua nova coleção de verão
Na década de 1950, o romancista norte-americano Ernest Hemingway teceu um comentário que acabou se transformando em slogan e, depois, em clichê: Paris é uma festa. Não uma festa corriqueira, mas a moveable feast, uma algazarra portátil e infindável. Os que têm o privilégio de desfrutar a atmosfera parisiense na juventude, afirmava o escritor, nunca abandonarão a lembrança daqueles momentos febris. Irão carregá-los para sempre, como um frasco de perfume ou uma caixinha de música. Sem pretender bancar o desmancha-prazeres, Ronaldo se apressa em confessar que discorda – do comentário, do slogan e do clichê. Paris pode ser tudo, menos uma festa. Meca fashion? Lógico que sim. Cinematográfica, monumental, exuberante, cosmopolita? Não há como negar. Estranhamente, no entanto, a profusão de adjetivos jamais o empolgou, nem quando jovem, nem agora, à beira dos 43 anos. Por quê? O Sobrenatural de Almeida – para invocar um dos tipos impagáveis de Nelson Rodrigues – talvez explique. Sucumbindo à insistência de conhecidos, Ronaldo procurou recentemente uma psicóloga que se dizia capaz de desvendar “as encarnações anteriores” dos pacientes. “Você não mexe com moda por acaso”, garantiu a esotérica. E revelou que, numa outra vida, o estilista mineiro nascera em Beirute, onde negociava tecidos e desenhava trajes femininos. Hipnotizado pelo frenesi de Paris, deixou o Líbano e migrou para a Cidade Luz. Promoveu ali inúmeros desfiles que fisgaram a atenção de uma ricaça, com quem se casou. Juntos fundaram uma maison próspera e chiquérrima. Os dias corriam às mil maravilhas até que um funcionário do casal, roído de inveja, decidiu botar fogo nas roupas. As glórias do proto-Ronaldo desmoronaram, então, sob as labaredas indomáveis do ateliê, que terminou quebrando. Uma festa?
“Do contra” por natureza, o estilista não segue nenhuma religião. Crê piamente que rezar na cartilha do sacerdote A ou B significa arrumar confusão com Deus. Caso ostente um nariz, o Altíssimo deve torcê-lo para cada um dos atravessadores que teimam em se colocar entre Ele e os fiéis. Mesmo assim, Ronaldo nutre uma ponta de simpatia pelo espiritismo. Por isso, não rejeitou inteiramente o trágico relato que escutou, sobretudo depois de a psicóloga lhe assegurar: “A milionária francesa também reencarnou”. Em quem? Numa sertaneja de Montes Claros, município do norte de Minas. Qual o seu nome? Ivana Neves – justamente a moça que, tempos atrás, saiu da terra natal e se fixou em Belo Horizonte na esperança de realizar um sonho: trabalhar com Ronaldo. Não apenas o concretizou como se tornou mulher do estilista. Casados desde 2000, geraram um par de filhos e, nas palavras da psicóloga, estão reconstruindo por aqui o que perderam em Paris.
Estudiosos do zodíaco apregoam que os geminianos gostam de escravizar os escorpianos. De novo, parece que o destino conspirou para unir Ivana e Ronaldo. Ela é de gêmeos. Ele, de escorpião – um vassalo que se curva obediente à suserana de pele muito branca. O estilista não consegue se imaginar longe da companheira. Tampouco se recorda direito da época em que não conviviam. Proclama-se escravo sem lamentar. Já descobriu que, quando senhores e servos ocupam o mesmo espaço, quem depende mais do relacionamento são os primeiros.
Não se considera um pai exemplar. Se atribuísse nota para si próprio nesse terreno, daria menos cinco. Queria dedicar um tempo bem maior à educação de Ludovico e Graciliano, só que o acúmulo de afazeres e as viagens frequentes o impedem. Os cabelos arrepiados, os tênis coloridos e as calças largonas ocultam um sujeito conservador e intransigente na criação dos meninos. Em casa, não permite que vejam televisão, durmam depois das oito, devorem junkie food ou gastem horas diante do computador. Garotos de 7 e 5 anos precisam apenas rolar na grama, escalar árvores e andar de bicicleta, como as crianças de antigamente. “Para que tanta rigidez, Ronaldo? As coisas mudaram!”, advertem os amigos. “As coisas mudaram, mas o Ronaldo continua igualzinho...”, responde tranquilo. Quando Ludovico e Graciliano virarem adolescentes, aceitará que o contestem. Enquanto não chegam lá, devem aprender que existem leis no mundo.
FFF, o Famoso Fraga Frangueiro. Foi assim que um jornal de Belo Horizonte tachou o pai do estilista após uma partida de futebol em que o Atlético venceu por dez a zero. De ascendência negra e portuguesa, 1m90 de altura, exímio narrador de “causos”, José Rodrigues Fraga jogava profissionalmente como goleiro. Defendeu um único clube, o Sete de Setembro, e orgulhava-se de tamanha fidelidade. Não existem somente leis no mundo. Existe ética também. Um indivíduo de brio enfrenta toda e qualquer tempestade com a cabeça erguida, sem abdicar de afetos e convicções. Suar a camisa de um time ruim, mas querido, e engolir dez gols numa tarde é um vendaval e tanto. Não à toa, José exibia o FFF da manchete como um troféu, a prova definitiva de que suportava as piores humilhações em nome da lealdade. Os cinco filhos, emocionados, o aplaudiam.
Ninguém se espanta de ouvir que o estilista coleciona óculos. Publicamente, sempre usa um novo modelo (já adquiriu mais de 300). Em compensação, poucos sabem do fascínio que cultiva por máscaras de bichos. Possui umas 60: de urso, de pato, de cachorro. Gigantes, ainda que levíssimas, são confeccionadas com papel e cola em oficinas recifenses de artesanato. Quando Ronaldo põe a de touro, sua predileta, julga-se o próprio Minotauro, criatura que o intriga desde a infância. Como o personagem da mitologia grega, híbrido de homem e animal, às vezes se surpreende príncipe, às vezes fera, um desejando matar o outro. Também sente que viver é habitar um labirinto. Para aguentar os medos e incertezas da oblíqua travessia, não encontrou antídoto melhor do que acreditar em boas histórias, tanto as que inventa e leva às passarelas quanto as que discorrem sobre amores escritos nas estrelas.
Duplicado por uma fotomontagem, Ronaldo Fraga posa no quintal de uma de suas lojas, em São Paulo. O estilista, que coleciona artesanato popular, comprou a cabeça de Minotauro no Recife
O estilista está lançando Disneylândia, sua nova coleção de verão
Na década de 1950, o romancista norte-americano Ernest Hemingway teceu um comentário que acabou se transformando em slogan e, depois, em clichê: Paris é uma festa. Não uma festa corriqueira, mas a moveable feast, uma algazarra portátil e infindável. Os que têm o privilégio de desfrutar a atmosfera parisiense na juventude, afirmava o escritor, nunca abandonarão a lembrança daqueles momentos febris. Irão carregá-los para sempre, como um frasco de perfume ou uma caixinha de música. Sem pretender bancar o desmancha-prazeres, Ronaldo se apressa em confessar que discorda – do comentário, do slogan e do clichê. Paris pode ser tudo, menos uma festa. Meca fashion? Lógico que sim. Cinematográfica, monumental, exuberante, cosmopolita? Não há como negar. Estranhamente, no entanto, a profusão de adjetivos jamais o empolgou, nem quando jovem, nem agora, à beira dos 43 anos. Por quê? O Sobrenatural de Almeida – para invocar um dos tipos impagáveis de Nelson Rodrigues – talvez explique. Sucumbindo à insistência de conhecidos, Ronaldo procurou recentemente uma psicóloga que se dizia capaz de desvendar “as encarnações anteriores” dos pacientes. “Você não mexe com moda por acaso”, garantiu a esotérica. E revelou que, numa outra vida, o estilista mineiro nascera em Beirute, onde negociava tecidos e desenhava trajes femininos. Hipnotizado pelo frenesi de Paris, deixou o Líbano e migrou para a Cidade Luz. Promoveu ali inúmeros desfiles que fisgaram a atenção de uma ricaça, com quem se casou. Juntos fundaram uma maison próspera e chiquérrima. Os dias corriam às mil maravilhas até que um funcionário do casal, roído de inveja, decidiu botar fogo nas roupas. As glórias do proto-Ronaldo desmoronaram, então, sob as labaredas indomáveis do ateliê, que terminou quebrando. Uma festa?
“Do contra” por natureza, o estilista não segue nenhuma religião. Crê piamente que rezar na cartilha do sacerdote A ou B significa arrumar confusão com Deus. Caso ostente um nariz, o Altíssimo deve torcê-lo para cada um dos atravessadores que teimam em se colocar entre Ele e os fiéis. Mesmo assim, Ronaldo nutre uma ponta de simpatia pelo espiritismo. Por isso, não rejeitou inteiramente o trágico relato que escutou, sobretudo depois de a psicóloga lhe assegurar: “A milionária francesa também reencarnou”. Em quem? Numa sertaneja de Montes Claros, município do norte de Minas. Qual o seu nome? Ivana Neves – justamente a moça que, tempos atrás, saiu da terra natal e se fixou em Belo Horizonte na esperança de realizar um sonho: trabalhar com Ronaldo. Não apenas o concretizou como se tornou mulher do estilista. Casados desde 2000, geraram um par de filhos e, nas palavras da psicóloga, estão reconstruindo por aqui o que perderam em Paris.
Estudiosos do zodíaco apregoam que os geminianos gostam de escravizar os escorpianos. De novo, parece que o destino conspirou para unir Ivana e Ronaldo. Ela é de gêmeos. Ele, de escorpião – um vassalo que se curva obediente à suserana de pele muito branca. O estilista não consegue se imaginar longe da companheira. Tampouco se recorda direito da época em que não conviviam. Proclama-se escravo sem lamentar. Já descobriu que, quando senhores e servos ocupam o mesmo espaço, quem depende mais do relacionamento são os primeiros.
Não se considera um pai exemplar. Se atribuísse nota para si próprio nesse terreno, daria menos cinco. Queria dedicar um tempo bem maior à educação de Ludovico e Graciliano, só que o acúmulo de afazeres e as viagens frequentes o impedem. Os cabelos arrepiados, os tênis coloridos e as calças largonas ocultam um sujeito conservador e intransigente na criação dos meninos. Em casa, não permite que vejam televisão, durmam depois das oito, devorem junkie food ou gastem horas diante do computador. Garotos de 7 e 5 anos precisam apenas rolar na grama, escalar árvores e andar de bicicleta, como as crianças de antigamente. “Para que tanta rigidez, Ronaldo? As coisas mudaram!”, advertem os amigos. “As coisas mudaram, mas o Ronaldo continua igualzinho...”, responde tranquilo. Quando Ludovico e Graciliano virarem adolescentes, aceitará que o contestem. Enquanto não chegam lá, devem aprender que existem leis no mundo.
FFF, o Famoso Fraga Frangueiro. Foi assim que um jornal de Belo Horizonte tachou o pai do estilista após uma partida de futebol em que o Atlético venceu por dez a zero. De ascendência negra e portuguesa, 1m90 de altura, exímio narrador de “causos”, José Rodrigues Fraga jogava profissionalmente como goleiro. Defendeu um único clube, o Sete de Setembro, e orgulhava-se de tamanha fidelidade. Não existem somente leis no mundo. Existe ética também. Um indivíduo de brio enfrenta toda e qualquer tempestade com a cabeça erguida, sem abdicar de afetos e convicções. Suar a camisa de um time ruim, mas querido, e engolir dez gols numa tarde é um vendaval e tanto. Não à toa, José exibia o FFF da manchete como um troféu, a prova definitiva de que suportava as piores humilhações em nome da lealdade. Os cinco filhos, emocionados, o aplaudiam.
Ninguém se espanta de ouvir que o estilista coleciona óculos. Publicamente, sempre usa um novo modelo (já adquiriu mais de 300). Em compensação, poucos sabem do fascínio que cultiva por máscaras de bichos. Possui umas 60: de urso, de pato, de cachorro. Gigantes, ainda que levíssimas, são confeccionadas com papel e cola em oficinas recifenses de artesanato. Quando Ronaldo põe a de touro, sua predileta, julga-se o próprio Minotauro, criatura que o intriga desde a infância. Como o personagem da mitologia grega, híbrido de homem e animal, às vezes se surpreende príncipe, às vezes fera, um desejando matar o outro. Também sente que viver é habitar um labirinto. Para aguentar os medos e incertezas da oblíqua travessia, não encontrou antídoto melhor do que acreditar em boas histórias, tanto as que inventa e leva às passarelas quanto as que discorrem sobre amores escritos nas estrelas.
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