Maria Bethânia: "A voz não é minha. É das sereias"
Maria Bethânia canta o amor e o misticismo em dois novos álbuns. Numa conversa de 90 minutos com BRAVO!, critica os que a atacam por usar a Lei Rouanet e elogia a senadora Marina Silva, possível candidata à Presidência da República
Passa um pouco do meio-dia e, sob orientação do fotógrafo de BRAVO!, Maria Bethânia caminha pelos jardins da Villa Riso, a parte remanescente de uma fazenda do século 18 que se transformou em espaço para festas. É lá, na estrada da Gávea, zona sul do Rio de Janeiro, que a cantora costuma receber jornalistas. O lugar fica próximo à casa onde mora desde 1972. "Por favor", pede-lhe o fotógrafo, "sente-se debaixo daquele pinheiro." Bethânia abana a cabeça negativamente: "Ali não". Com gentileza, mas irredutível, esclarece que pinheiros a incomodam. "Em minha terra, são árvores de cemitério."
Oriunda de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, a irmã de Caetano Veloso - adepto de "uma irreligiosidade feroz", como já se definiu - nunca separou rigidamente o místico daquilo que os cartesianos chamam de real. Para a intérprete, o sagrado e o corriqueiro se entrelaçam. Um explica e alicerça o outro. Tal convicção, que a artista manifesta com uma naturalidade às vezes desconcertante, estimula um divertido folclore em torno dela, uma profusão de lendas que a tomam por feiticeira ou algo assim. "Quando Bethânia inicia uma turnê, chove. Evite usar negro ao lado de Bethânia. Sempre que Bethânia entra no estúdio, os monitores de ouvido acusam interferências." Das inúmeras histórias, a cantora - famosa por resguardar avidamente a própria intimidade - só confirma que não veste roupas pretas. Dispensa a cor em respeito às recomendações do candomblé, crença que abraçou junto com a devoção pelo catolicismo. "Mas podem usar negro perto de mim", avisa, às gargalhadas.
A faceta mística de Bethânia desponta claramente no CD Encanteria, um dos dois que acaba de lançar. O álbum do selo Quitanda agrega 11 composições inéditas - sambas e toadas sobre orixás, santos e as celebrações que os homenageiam. Caetano e Gilberto Gil cantam na faixa Saudade Dela. O outro disco, Tua, sai pela Biscoito Fino. Também reúne 11 músicas inéditas e conta com a participação do pernambucano Lenine. De sonoridade mais urbana, tem como mote o amor.
Em conjunto, os delicados trabalhos reafirmam que Bethânia já não cabe apenas nos rótulos de "romântica", "brejeira" ou "artista de massa". Ela é hoje, aos 63 anos e 46 de carreira, um clássico à altura de Edith Piaf, Nina Simone ou Ella Fitzgerald, ainda que de abrangência menor.
Durante a entrevista de quase duas horas, a cantora trajava uma pantalona azul e uma pashmina cor-de-rosa, espécie de xale que lhe recobria os ombros. Pelas mãos, braços e pescoço, espalhava algumas joias, a maioria dourada. Um dos anéis e o relógio de pulso despertavam especialmente a atenção.
BRAVO!: Que anel curioso...
Maria Bethânia: Você gostou? Traz a imagem do meu caboclo.
Um índio?
Exato, o caboclo que me protege, graças a Deus. Veja só que história inusitada: uma vez, desembarcando em Miami, topei na imigração com um policial branco, alto e muito forte. "Virgem Santíssima!", pensei. "Olhe o tamanho do sujeito!" No entanto, para minha surpresa, o homem sorriu. Quando pegou meu passaporte, notei que ostentava um anel de prata enorme. Uma peça luminosa, com o rosto de um índio. "Que anel incrível!", comentei em português. O homem continuou rindo como se me compreendesse. De repente, tirou o anel e me deu. Um gesto absolutamente improvável: a polícia dos Estados Unidos distribuindo presentes no aeroporto?! Tão logo retornei para casa, providenciei uma cópia do anel, menorzinha, em ouro. É a que estou usando.
Qual o nome do caboclo? Pode revelar?
Quer saber demais sobre o meu caboclo! (risos) Há décadas, pertenço à Nação Ketu do candomblé. Mas, ainda garota, em Santo Amaro, costumava visitar um terreiro de outra nação, a Angola. Ali os fiéis não cultuavam somente os orixás. Também recebiam o espírito dos índios que habitaram o Brasil, os caboclos. É uma tradição maravilhosa, que me comove. Por isso, conservo o anel. Sem contar que tenho uma bisavó indígena, da etnia pataxó.
E o relógio?
Comprei para marcar um acontecimento...
Que acontecimento?
Não vou entrar em detalhes. Foi algo bonito que me ocorreu e que se relacionava com o tempo. Precisava de uma coisa que simbolizasse aquilo.
Como uma tatuagem?
Tatuagem, não - o candomblé proíbe. Engraçado que, bem jovenzinha, sonhava em fazer uma. Cresci num lugarejo repleto de rios, mas passava as férias na praia. Sempre amei perdidamente o mar. Meu pai dizia que a terra e o oceano se espelham. "Tudo o que existe aqui em cima existe no fundo do mar." Eu o escutava, e minha imaginação corria solta: "Tudo, pai? Coqueiro, abelhas, montanha?". Ele jurava que sim. Não à toa, os marinheiros me encantavam. Admirava as tatuagens que carregavam nos braços. "Quando mandar em mim, arranjarei uma igual", planejava. Àquela época, poucas mulheres ousavam exibir tatuagem. Eu, atrevida, desejava uma nas costas, do lado direito, perto da bunda. Cogitei, primeiro, desenhar uma sereia. Sou fascinada por sereias. Depois mudei de opinião: "Vou botar uma estrela, ou um sol, ou uma lua". Acabei não desenhando nada.
Sereias a fascinam?
Imensamente. Criança, ganhava umas de minha mãe, pequeninas, de barro. Agora ganho dos amigos e dos fãs. Em casa, há um punhado: de metal, gesso, madeira. Sereias são as donas da voz... Senhoras da emissão, que cantam por minha boca. Só sei cantar graças às sereias. Elas me ensinaram. Minha voz apenas mora em mim. Não é minha. É das sereias. É de Deus.
Uma metáfora, não? Ou você realmente acredita que sereias existam?
Acredito. Certas pessoas conseguem ouvi-las, enxergá-las. Eu nunca as enxerguei. Mas as sinto, talvez porque queira senti-las. Creio que hoje esteja no mesmo lugar em que as sereias se encontram. Uma bênção!
Julga-se predestinada?
Sem dúvida. Nasci para o que faço. Já na infância, me comportava de maneira incomum. Andava maquiada por Santo Amaro como uma vedete, confeccionava minhas próprias roupas e imitava os personagens das peças que o grupo local de teatro montava. O povo da cidade morria de vergonha. Evitavam a minha companhia. Somente o Caetano me apoiava. Eu avisava: "Não adianta reclamar, pessoal! Sou do palco, vou viver do palco". Não suspeitava ainda que iria cantar. Pretendia virar trapezista. Circo me atraía muitíssimo. Uma ocasião, caí de amores por um palhaço, o Poli, mal o avistei no picadeiro. Paixão doida, de cinema! Fiquei tão envolvida que arrumei um jeito de conhecê-lo sem máscara. Era um homenzinho calvo, quase sexagenário. "Vou fugir com o senhor!", repetia. O coitado, lógico, apenas gargalhava. Quando o circo partiu de Santo Amaro, me desmanchei de tanto chorar.
Em que momento você resolveu se tornar cantora?
Com uns 15 anos. Ou melhor: Caetano resolveu por mim! (risos) Ele compunha a trilha de um curta [Moleques de Rua, do diretor Álvaro Guimarães, o Alvinho] e me pediu para gravá-la. Topei na hora. Quatro anos mais velho, Caetano me influenciava bastante. Nós o considerávamos o gênio da família. Desde cedo, o danado pintava como ninguém, tocava, escrevia canções. Lembro-me de vê-lo redigir uma peça inteira com 8 ou 9 anos. "Você vai fazer o papel da estrela", me prometia. Eu, um toquinho de gente, concordava. (risos) O negócio é que acabei gravando a trilha em Salvador, no ateliê de Mário Cravo Jr. [escultor]. Que período bom, rapaz! Pouco depois, em 1963, Alvinho encenou Boca de Ouro, a tragédia do Nelson Rodrigues, e me chamou para cantar um samba de Ataulfo Alves no prólogo. Iria interpretá-lo da coxia, sem aparecer. Mesmo assim, não deixei de caprichar nos trajes. Pus luvas, brincos, colar...
Foi em Salvador, na década de 1960, que você se aproximou de Gal Costa. Continuam amigas?
Continuamos, só que não como antigamente. Perdemos o convívio. Éramos grudadas, irmãs. Agora... Gal se distanciou muito de mim e de Caetano. Não brigamos nem nada. Ela apenas se isolou. Diminuiu o ritmo, se afastou da música, adotou um filho [Gabriel, em 2007]. Mora lá na Bahia e cuida do menino, linda. Um dia lhe perguntei: "Do que você mais gosta hoje, do canto ou da maternidade? Me responda, mulher!". Não respondeu. (risos) Tenho a impressão de que Gal, uma cantora inigualável, não se entusiasma tanto pelos novos autores. Deve avaliar que suas composições não estão à altura da voz dela, daquele cristal perfeito. É compreensível. A emissão de Gal exige de fato canções tão sofisticadas quanto as de Caetano, Chico Buarque, Dorival Caymmi, Tom Jobim, Ary Barroso. Eu, em contrapartida, não enfrento o mesmo problema. Sou uma intérprete antes de tudo. Uma intérprete de textos, de ideias, que também pode cantar. Não sou uma purista.
Você nunca pensou em gerar ou adotar um filho?
Pensei em dar à luz com meus 18, 19 anos. Desisti mais tarde e não me arrependo. Filho são meus discos, é minha carreira. Não disponho da sabedoria de meus pais para educar uma criança. E o mundo em que vivemos... A correria, a violência, a competição, o ar irrespirável... Colocar um bebê nesse inferno? Em um planeta sufocado? Fico apavorada quando constato algumas inversões de valores. O dinheiro, por exemplo. Virou o centro do universo. Uma loucura! Às vezes, acho que a atual crise financeira é um alerta do próprio dinheiro: "Prestem atenção! Entendam a minha natureza. Posso dormir um hoje e acordar outro amanhã". Enfim... Sou cruel com os amigos e sobrinhos que têm filhos. Cobro que zelem pelas crias e não admito que se queixem. Decidiram ter? Então se redobrem para ampará-los.
Os dilemas ecológicos parecem preocupá-la. Você apoiará a possível candidatura à presidência da senadora Marina Silva, que acabou de ingressar no Partido Verde?
Marina me arrebata. É nobre, firme, sóbria. E domina a área dela, a do meio ambiente. Como Gilberto Gil [ex-ministro da Cultura], passou pelo governo federal sem se manchar, sem cometer erros crassos. Jurei que não votaria mais em candidato nenhum, nem do Executivo nem do Legislativo. Mas a Marina talvez me anime a voltar atrás. Fechei com Lula nas eleições de 2002 e, depois, parei de votar. Os políticos me irritam. Imaginam que somos idiotas.
Recentemente, você sofreu críticas da imprensa por recorrer à Lei Rouanet para bancar alguns de seus espetáculos...
(Interrompendo) Sofri... Uma palhaçada! Uma tristeza! "Governo de esquerda só pode ajudar quem não faz sucesso." Que raciocínio torto! A lei deve acolher gregos e troianos: o ministério avaliza os projetos e cada artista sai à caça de patrocinador, como manda o figurino. Qual o drama? Por que tanta chateação?
Porque se trata de verba pública.
Verba pública? Nunca trabalhei com verba pública!
A lei prevê que os patrocinadores descontem os gastos do Imposto de Renda - um dinheiro que, em tese, iria para o setor público.
Renúncia fiscal, menino! É um mecanismo ótimo! O mínimo que a cultura merece.
E quanto à alegação de que shows como os seus ou os de Caetano, Ivete Sangalo e outros cantores famosos se pagariam apenas com a bilheteria, sem a necessidade de patrocínio?
O quê? Apenas com a bilheteria? Qualquer espetáculo de certo porte no Brasil consome uma fortuna. Nossos custos são de ópera! A plateia pede um cenário elegante, uma iluminação de primeira, um som magnífico. Não condeno, não. Estão corretíssimos! Mas qualidade tem preço. Para subir num palco, preciso ensaiar 40 dias ou mais. Você sabe o que significa arcar com 40 dias de estúdio, técnicos, equipamento, músicos? Um absurdo! "Ah, a cantora também leva uma bolada." Leva? Quem menos ganha é a cantora. Com despesas tão elevadas, você julga
viável depender só da bilheteria? Não há Canecão lotado que cubra um espetáculo. Não há teatro no país que cubra - e olhe que os ingressos não são baratos, infelizmente. Sem patrocínio, amargaríamos prejuízo caso quiséssemos manter o alto nível dos shows. E, sem a lei, não conseguiríamos patrocínio nenhum. Zero! Portanto...
Passa um pouco do meio-dia e, sob orientação do fotógrafo de BRAVO!, Maria Bethânia caminha pelos jardins da Villa Riso, a parte remanescente de uma fazenda do século 18 que se transformou em espaço para festas. É lá, na estrada da Gávea, zona sul do Rio de Janeiro, que a cantora costuma receber jornalistas. O lugar fica próximo à casa onde mora desde 1972. "Por favor", pede-lhe o fotógrafo, "sente-se debaixo daquele pinheiro." Bethânia abana a cabeça negativamente: "Ali não". Com gentileza, mas irredutível, esclarece que pinheiros a incomodam. "Em minha terra, são árvores de cemitério."
Oriunda de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, a irmã de Caetano Veloso - adepto de "uma irreligiosidade feroz", como já se definiu - nunca separou rigidamente o místico daquilo que os cartesianos chamam de real. Para a intérprete, o sagrado e o corriqueiro se entrelaçam. Um explica e alicerça o outro. Tal convicção, que a artista manifesta com uma naturalidade às vezes desconcertante, estimula um divertido folclore em torno dela, uma profusão de lendas que a tomam por feiticeira ou algo assim. "Quando Bethânia inicia uma turnê, chove. Evite usar negro ao lado de Bethânia. Sempre que Bethânia entra no estúdio, os monitores de ouvido acusam interferências." Das inúmeras histórias, a cantora - famosa por resguardar avidamente a própria intimidade - só confirma que não veste roupas pretas. Dispensa a cor em respeito às recomendações do candomblé, crença que abraçou junto com a devoção pelo catolicismo. "Mas podem usar negro perto de mim", avisa, às gargalhadas.
A faceta mística de Bethânia desponta claramente no CD Encanteria, um dos dois que acaba de lançar. O álbum do selo Quitanda agrega 11 composições inéditas - sambas e toadas sobre orixás, santos e as celebrações que os homenageiam. Caetano e Gilberto Gil cantam na faixa Saudade Dela. O outro disco, Tua, sai pela Biscoito Fino. Também reúne 11 músicas inéditas e conta com a participação do pernambucano Lenine. De sonoridade mais urbana, tem como mote o amor.
Em conjunto, os delicados trabalhos reafirmam que Bethânia já não cabe apenas nos rótulos de "romântica", "brejeira" ou "artista de massa". Ela é hoje, aos 63 anos e 46 de carreira, um clássico à altura de Edith Piaf, Nina Simone ou Ella Fitzgerald, ainda que de abrangência menor.
Durante a entrevista de quase duas horas, a cantora trajava uma pantalona azul e uma pashmina cor-de-rosa, espécie de xale que lhe recobria os ombros. Pelas mãos, braços e pescoço, espalhava algumas joias, a maioria dourada. Um dos anéis e o relógio de pulso despertavam especialmente a atenção.
BRAVO!: Que anel curioso...
Maria Bethânia: Você gostou? Traz a imagem do meu caboclo.
Um índio?
Exato, o caboclo que me protege, graças a Deus. Veja só que história inusitada: uma vez, desembarcando em Miami, topei na imigração com um policial branco, alto e muito forte. "Virgem Santíssima!", pensei. "Olhe o tamanho do sujeito!" No entanto, para minha surpresa, o homem sorriu. Quando pegou meu passaporte, notei que ostentava um anel de prata enorme. Uma peça luminosa, com o rosto de um índio. "Que anel incrível!", comentei em português. O homem continuou rindo como se me compreendesse. De repente, tirou o anel e me deu. Um gesto absolutamente improvável: a polícia dos Estados Unidos distribuindo presentes no aeroporto?! Tão logo retornei para casa, providenciei uma cópia do anel, menorzinha, em ouro. É a que estou usando.
Qual o nome do caboclo? Pode revelar?
Quer saber demais sobre o meu caboclo! (risos) Há décadas, pertenço à Nação Ketu do candomblé. Mas, ainda garota, em Santo Amaro, costumava visitar um terreiro de outra nação, a Angola. Ali os fiéis não cultuavam somente os orixás. Também recebiam o espírito dos índios que habitaram o Brasil, os caboclos. É uma tradição maravilhosa, que me comove. Por isso, conservo o anel. Sem contar que tenho uma bisavó indígena, da etnia pataxó.
E o relógio?
Comprei para marcar um acontecimento...
Que acontecimento?
Não vou entrar em detalhes. Foi algo bonito que me ocorreu e que se relacionava com o tempo. Precisava de uma coisa que simbolizasse aquilo.
Como uma tatuagem?
Tatuagem, não - o candomblé proíbe. Engraçado que, bem jovenzinha, sonhava em fazer uma. Cresci num lugarejo repleto de rios, mas passava as férias na praia. Sempre amei perdidamente o mar. Meu pai dizia que a terra e o oceano se espelham. "Tudo o que existe aqui em cima existe no fundo do mar." Eu o escutava, e minha imaginação corria solta: "Tudo, pai? Coqueiro, abelhas, montanha?". Ele jurava que sim. Não à toa, os marinheiros me encantavam. Admirava as tatuagens que carregavam nos braços. "Quando mandar em mim, arranjarei uma igual", planejava. Àquela época, poucas mulheres ousavam exibir tatuagem. Eu, atrevida, desejava uma nas costas, do lado direito, perto da bunda. Cogitei, primeiro, desenhar uma sereia. Sou fascinada por sereias. Depois mudei de opinião: "Vou botar uma estrela, ou um sol, ou uma lua". Acabei não desenhando nada.
Sereias a fascinam?
Imensamente. Criança, ganhava umas de minha mãe, pequeninas, de barro. Agora ganho dos amigos e dos fãs. Em casa, há um punhado: de metal, gesso, madeira. Sereias são as donas da voz... Senhoras da emissão, que cantam por minha boca. Só sei cantar graças às sereias. Elas me ensinaram. Minha voz apenas mora em mim. Não é minha. É das sereias. É de Deus.
Uma metáfora, não? Ou você realmente acredita que sereias existam?
Acredito. Certas pessoas conseguem ouvi-las, enxergá-las. Eu nunca as enxerguei. Mas as sinto, talvez porque queira senti-las. Creio que hoje esteja no mesmo lugar em que as sereias se encontram. Uma bênção!
Julga-se predestinada?
Sem dúvida. Nasci para o que faço. Já na infância, me comportava de maneira incomum. Andava maquiada por Santo Amaro como uma vedete, confeccionava minhas próprias roupas e imitava os personagens das peças que o grupo local de teatro montava. O povo da cidade morria de vergonha. Evitavam a minha companhia. Somente o Caetano me apoiava. Eu avisava: "Não adianta reclamar, pessoal! Sou do palco, vou viver do palco". Não suspeitava ainda que iria cantar. Pretendia virar trapezista. Circo me atraía muitíssimo. Uma ocasião, caí de amores por um palhaço, o Poli, mal o avistei no picadeiro. Paixão doida, de cinema! Fiquei tão envolvida que arrumei um jeito de conhecê-lo sem máscara. Era um homenzinho calvo, quase sexagenário. "Vou fugir com o senhor!", repetia. O coitado, lógico, apenas gargalhava. Quando o circo partiu de Santo Amaro, me desmanchei de tanto chorar.
Em que momento você resolveu se tornar cantora?
Com uns 15 anos. Ou melhor: Caetano resolveu por mim! (risos) Ele compunha a trilha de um curta [Moleques de Rua, do diretor Álvaro Guimarães, o Alvinho] e me pediu para gravá-la. Topei na hora. Quatro anos mais velho, Caetano me influenciava bastante. Nós o considerávamos o gênio da família. Desde cedo, o danado pintava como ninguém, tocava, escrevia canções. Lembro-me de vê-lo redigir uma peça inteira com 8 ou 9 anos. "Você vai fazer o papel da estrela", me prometia. Eu, um toquinho de gente, concordava. (risos) O negócio é que acabei gravando a trilha em Salvador, no ateliê de Mário Cravo Jr. [escultor]. Que período bom, rapaz! Pouco depois, em 1963, Alvinho encenou Boca de Ouro, a tragédia do Nelson Rodrigues, e me chamou para cantar um samba de Ataulfo Alves no prólogo. Iria interpretá-lo da coxia, sem aparecer. Mesmo assim, não deixei de caprichar nos trajes. Pus luvas, brincos, colar...
Foi em Salvador, na década de 1960, que você se aproximou de Gal Costa. Continuam amigas?
Continuamos, só que não como antigamente. Perdemos o convívio. Éramos grudadas, irmãs. Agora... Gal se distanciou muito de mim e de Caetano. Não brigamos nem nada. Ela apenas se isolou. Diminuiu o ritmo, se afastou da música, adotou um filho [Gabriel, em 2007]. Mora lá na Bahia e cuida do menino, linda. Um dia lhe perguntei: "Do que você mais gosta hoje, do canto ou da maternidade? Me responda, mulher!". Não respondeu. (risos) Tenho a impressão de que Gal, uma cantora inigualável, não se entusiasma tanto pelos novos autores. Deve avaliar que suas composições não estão à altura da voz dela, daquele cristal perfeito. É compreensível. A emissão de Gal exige de fato canções tão sofisticadas quanto as de Caetano, Chico Buarque, Dorival Caymmi, Tom Jobim, Ary Barroso. Eu, em contrapartida, não enfrento o mesmo problema. Sou uma intérprete antes de tudo. Uma intérprete de textos, de ideias, que também pode cantar. Não sou uma purista.
Você nunca pensou em gerar ou adotar um filho?
Pensei em dar à luz com meus 18, 19 anos. Desisti mais tarde e não me arrependo. Filho são meus discos, é minha carreira. Não disponho da sabedoria de meus pais para educar uma criança. E o mundo em que vivemos... A correria, a violência, a competição, o ar irrespirável... Colocar um bebê nesse inferno? Em um planeta sufocado? Fico apavorada quando constato algumas inversões de valores. O dinheiro, por exemplo. Virou o centro do universo. Uma loucura! Às vezes, acho que a atual crise financeira é um alerta do próprio dinheiro: "Prestem atenção! Entendam a minha natureza. Posso dormir um hoje e acordar outro amanhã". Enfim... Sou cruel com os amigos e sobrinhos que têm filhos. Cobro que zelem pelas crias e não admito que se queixem. Decidiram ter? Então se redobrem para ampará-los.
Os dilemas ecológicos parecem preocupá-la. Você apoiará a possível candidatura à presidência da senadora Marina Silva, que acabou de ingressar no Partido Verde?
Marina me arrebata. É nobre, firme, sóbria. E domina a área dela, a do meio ambiente. Como Gilberto Gil [ex-ministro da Cultura], passou pelo governo federal sem se manchar, sem cometer erros crassos. Jurei que não votaria mais em candidato nenhum, nem do Executivo nem do Legislativo. Mas a Marina talvez me anime a voltar atrás. Fechei com Lula nas eleições de 2002 e, depois, parei de votar. Os políticos me irritam. Imaginam que somos idiotas.
Recentemente, você sofreu críticas da imprensa por recorrer à Lei Rouanet para bancar alguns de seus espetáculos...
(Interrompendo) Sofri... Uma palhaçada! Uma tristeza! "Governo de esquerda só pode ajudar quem não faz sucesso." Que raciocínio torto! A lei deve acolher gregos e troianos: o ministério avaliza os projetos e cada artista sai à caça de patrocinador, como manda o figurino. Qual o drama? Por que tanta chateação?
Porque se trata de verba pública.
Verba pública? Nunca trabalhei com verba pública!
A lei prevê que os patrocinadores descontem os gastos do Imposto de Renda - um dinheiro que, em tese, iria para o setor público.
Renúncia fiscal, menino! É um mecanismo ótimo! O mínimo que a cultura merece.
E quanto à alegação de que shows como os seus ou os de Caetano, Ivete Sangalo e outros cantores famosos se pagariam apenas com a bilheteria, sem a necessidade de patrocínio?
O quê? Apenas com a bilheteria? Qualquer espetáculo de certo porte no Brasil consome uma fortuna. Nossos custos são de ópera! A plateia pede um cenário elegante, uma iluminação de primeira, um som magnífico. Não condeno, não. Estão corretíssimos! Mas qualidade tem preço. Para subir num palco, preciso ensaiar 40 dias ou mais. Você sabe o que significa arcar com 40 dias de estúdio, técnicos, equipamento, músicos? Um absurdo! "Ah, a cantora também leva uma bolada." Leva? Quem menos ganha é a cantora. Com despesas tão elevadas, você julga
viável depender só da bilheteria? Não há Canecão lotado que cubra um espetáculo. Não há teatro no país que cubra - e olhe que os ingressos não são baratos, infelizmente. Sem patrocínio, amargaríamos prejuízo caso quiséssemos manter o alto nível dos shows. E, sem a lei, não conseguiríamos patrocínio nenhum. Zero! Portanto...
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