Tom Zé mastiga vaia contra João Gilberto e cospe música
Soa como provocação, mas Tom Zé diz que se trata apenas de “uma reportagem não-opinativa”. O cantor baiano Antônio José Santana Martins, 63 anos completados na semana passada, acaba de gravar “Vaia de Bêbado Não Vale”, música que tem por inspiração o recente concerto de João Gilberto e Caetano Veloso no Credicard Hall, de São Paulo.
O show do último dia 29, difícil esquecer, começou festivo e terminou em anticlímax. Nasceu para coroar a inauguração da “maior casa de espetáculos da América Latina”. Tropeçou, porém, no perfeccionismo de João. O violonista, um dos pais da bossa nova, rejeitou impiedosamente a acústica do lugar. Reclamou do eco que assaltava o palco e, em troca, ganhou apupos de parte dos 4.500 vips que assistiam à apresentação. Tom Zé estava lá – recebera um convite de Caetano. “Como testemunha ocular dos fatos”, resolveu contar o que viu, à moda “de um jornalista”, mas “um jornalista que canta”.
A “música-reportagem”, com três minutos e meio de duração, chegará às lojas até o fim do mês. A gravadora Trama vai lançá-la, em três versões, num single que levará o mesmo nome da canção. E a canção – embora o sarcasmo do autor insista em qualificá-la de “apartidária e objetiva, como os melhores jornais do ramo”- nega-se à imparcialidade.
Reproduz, sim, frases que João Gilberto atirou contra o público indócil (“tem que fazer direito, tem que fazer Brasil”; “vaia de bêbado não vale”; “sou argentino desde pequenininho”). Mas a transcrição serve menos à tarefa documental e mais à defesa do ídolo atacado.
Não bastasse, o encarte que deverá acompanhar o disco contém uma espécie de manifesto antitropicalista. No texto, batizado de “Imprensa Cantada”, Tom Zé desfia elogios à bossa nova e estranha a influência que o tropicalismo exerce ainda hoje sobre a cultura do país. Questiona, em resumo, o explosivo movimento de que ele próprio participou, com Caetano e Gilberto Gil, três décadas atrás.
A historiografia musical brasileira costuma apontar o ano de 1958 como o marco zero da bossa nova. A expressão se refere a um grupo de jovens que, no Rio de Janeiro, alterou a maneira tradicional de tocar samba. Admiradores do jazz, abraçaram uma batida particular de violão e o canto mais intimista, mais contido. Entre os músicos que promoveram a renovação, João Gilberto e Tom Jobim logo ganharam fama internacional. Também desempenharam papel importante no período Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Nara Leão e o poeta Vinicius de Moraes.
A fase de maior repercussão da bossa nova se encerrou em 1963. Quatro anos depois, eclodiu o tropicalismo, “um movimento que veio para acabar com todos os outros movimentos”, como pregavam seus artífices. Durou 14 meses – de outubro de 1967 a dezembro de 1968. Anárquico, promoveu a fusão da MPB com o rock, o pop internacional e os ritmos latinos.
Rejeitou o nacionalismo da esquerda e das canções de protesto, aderiu à guitarra elétrica, propôs mudanças comportamentais e procurou cantar os paradoxos do país: a convivência entre o arcaico e o moderno, entre o erudito e a cultura de massas. Mesmo durando pouco, norteou artistas que só iriam aparecer nas décadas posteriores, como Novos Baianos, Alceu Valença, Chico Science e Chico César.
Os dois principais líderes tropicalistas, Gil e Caetano, sempre manifestaram reverência às revoluções trazidas pelo violão e pela voz de João. Começaram, por sinal, tocando bossa nova. Tom Zé, não. Nunca se apresentou como bossa-novista. Desde antes do tropicalismo, fazia canções que não se enquadravam em nenhum dos modelos predominantes na época -caso de “Maria do Colégio da Bahia” e “São Benedito”, ambas de 1965. Surpreende, portanto, que agora decida lançar um manifesto pró-bossa nova (manifesto, aliás, é palavra que Tom Zé evita; não a usa nem no encarte nem na canção do single).
Outra surpresa: o CD aparece justamente quando a imprensa e os críticos musicais dos EUA e da Inglaterra estão descobrindo o tropicalismo. E quando Caetano atinge vendagens recordes com a canção “Sozinho”, de Peninha, valendo-se de artifício que adotara durante o período tropicalista -reler uma obra identificada originalmente como brega.
Em “Vaia de Bêbado Não Vale” e no manifesto, Tom Zé alardeia o que estudiosos do assunto vêm falando há tempos: que a bossa nova “pariu o Brasil” moderno, que “criou realmente um gênero”, e que o tropicalismo não teve papel tão nobre, tão “aprofundado”, uma vez que se apoiou principalmente na intervenção crítica e na assimilação de produtos artísticos já existentes.
Por que, então, reacender o debate? Por que retomar o tema um tanto “retrô” se o próprio Tom Zé é apontado dentro e fora do país como um “sujeito de vanguarda”? “Na roça onde nasci, lá no interior da Bahia”, recorda o cantor, “costumavam repetir um provérbio: “Pais trabalhadores, filhos burgueses, netos degenerados”.”
“Então veja: os pais trabalhadores são João Gilberto e Tom Jobim. Os filhos burgueses somos nós, tropicalistas, que nascemos enriquecidos pela bossa nova. E o neto degenerado é o hall do eco e do álcool; são aqueles que, iludidos pelo pai mercado, viram as costas para a riqueza estética da vida e dos avós.”
Mais Tom Zé não diz.
Ele sempre foi homem de alegorias. (Folha de S. Paulo)
Publicado
quarta-feira, 20 de outubro de 1999 às 2:00 am e categorizado como Reportagens.
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Tom Zé mastiga vaia contra João Gilberto e cospe música
Soa como provocação, mas Tom Zé diz que se trata apenas de “uma reportagem não-opinativa”. O cantor baiano Antônio José Santana Martins, 63 anos completados na semana passada, acaba de gravar “Vaia de Bêbado Não Vale”, música que tem por inspiração o recente concerto de João Gilberto e Caetano Veloso no Credicard Hall, de São Paulo.
O show do último dia 29, difícil esquecer, começou festivo e terminou em anticlímax. Nasceu para coroar a inauguração da “maior casa de espetáculos da América Latina”. Tropeçou, porém, no perfeccionismo de João. O violonista, um dos pais da bossa nova, rejeitou impiedosamente a acústica do lugar. Reclamou do eco que assaltava o palco e, em troca, ganhou apupos de parte dos 4.500 vips que assistiam à apresentação. Tom Zé estava lá – recebera um convite de Caetano. “Como testemunha ocular dos fatos”, resolveu contar o que viu, à moda “de um jornalista”, mas “um jornalista que canta”.
A “música-reportagem”, com três minutos e meio de duração, chegará às lojas até o fim do mês. A gravadora Trama vai lançá-la, em três versões, num single que levará o mesmo nome da canção. E a canção – embora o sarcasmo do autor insista em qualificá-la de “apartidária e objetiva, como os melhores jornais do ramo”- nega-se à imparcialidade.
Reproduz, sim, frases que João Gilberto atirou contra o público indócil (“tem que fazer direito, tem que fazer Brasil”; “vaia de bêbado não vale”; “sou argentino desde pequenininho”). Mas a transcrição serve menos à tarefa documental e mais à defesa do ídolo atacado.
Não bastasse, o encarte que deverá acompanhar o disco contém uma espécie de manifesto antitropicalista. No texto, batizado de “Imprensa Cantada”, Tom Zé desfia elogios à bossa nova e estranha a influência que o tropicalismo exerce ainda hoje sobre a cultura do país. Questiona, em resumo, o explosivo movimento de que ele próprio participou, com Caetano e Gilberto Gil, três décadas atrás.
A historiografia musical brasileira costuma apontar o ano de 1958 como o marco zero da bossa nova. A expressão se refere a um grupo de jovens que, no Rio de Janeiro, alterou a maneira tradicional de tocar samba. Admiradores do jazz, abraçaram uma batida particular de violão e o canto mais intimista, mais contido. Entre os músicos que promoveram a renovação, João Gilberto e Tom Jobim logo ganharam fama internacional. Também desempenharam papel importante no período Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Nara Leão e o poeta Vinicius de Moraes.
A fase de maior repercussão da bossa nova se encerrou em 1963. Quatro anos depois, eclodiu o tropicalismo, “um movimento que veio para acabar com todos os outros movimentos”, como pregavam seus artífices. Durou 14 meses – de outubro de 1967 a dezembro de 1968. Anárquico, promoveu a fusão da MPB com o rock, o pop internacional e os ritmos latinos.
Rejeitou o nacionalismo da esquerda e das canções de protesto, aderiu à guitarra elétrica, propôs mudanças comportamentais e procurou cantar os paradoxos do país: a convivência entre o arcaico e o moderno, entre o erudito e a cultura de massas. Mesmo durando pouco, norteou artistas que só iriam aparecer nas décadas posteriores, como Novos Baianos, Alceu Valença, Chico Science e Chico César.
Os dois principais líderes tropicalistas, Gil e Caetano, sempre manifestaram reverência às revoluções trazidas pelo violão e pela voz de João. Começaram, por sinal, tocando bossa nova. Tom Zé, não. Nunca se apresentou como bossa-novista. Desde antes do tropicalismo, fazia canções que não se enquadravam em nenhum dos modelos predominantes na época -caso de “Maria do Colégio da Bahia” e “São Benedito”, ambas de 1965. Surpreende, portanto, que agora decida lançar um manifesto pró-bossa nova (manifesto, aliás, é palavra que Tom Zé evita; não a usa nem no encarte nem na canção do single).
Outra surpresa: o CD aparece justamente quando a imprensa e os críticos musicais dos EUA e da Inglaterra estão descobrindo o tropicalismo. E quando Caetano atinge vendagens recordes com a canção “Sozinho”, de Peninha, valendo-se de artifício que adotara durante o período tropicalista -reler uma obra identificada originalmente como brega.
Em “Vaia de Bêbado Não Vale” e no manifesto, Tom Zé alardeia o que estudiosos do assunto vêm falando há tempos: que a bossa nova “pariu o Brasil” moderno, que “criou realmente um gênero”, e que o tropicalismo não teve papel tão nobre, tão “aprofundado”, uma vez que se apoiou principalmente na intervenção crítica e na assimilação de produtos artísticos já existentes.
Por que, então, reacender o debate? Por que retomar o tema um tanto “retrô” se o próprio Tom Zé é apontado dentro e fora do país como um “sujeito de vanguarda”? “Na roça onde nasci, lá no interior da Bahia”, recorda o cantor, “costumavam repetir um provérbio: “Pais trabalhadores, filhos burgueses, netos degenerados”.”
Mais Tom Zé não diz.
Ele sempre foi homem de alegorias.
(Folha de S. Paulo)
Publicado quarta-feira, 20 de outubro de 1999 às 2:00 am e categorizado como Reportagens. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.