Foto Ana Ottoni Luiz Melodia e a partitura de Estácio, Eu e Você O cantor está em turnê para divulgar o disco Especial MTV
Se escutasse o pai, não usaria os cabelos à moda dos rastafáris nem os deixaria crescer demais. Não permitiria que marchassem rumo à cintura, como avencas sorrateiras que invadem zonas proibidas. Também não exibiria um figurino tão informal em público, camisetas sem manga, tênis, calças gastas. Estaria invariavelmente de terno, os sapatos brilhando, a barba em ordem, a juba exígua, retraída, submissa. Se escutasse o pai, nem sequer viraria cantor. Seria médico, um humanista estudioso e abnegado. Ou, quem sabe, se tornaria político de renome, já que o pai engrossava a casta dos que acreditam em política. No entanto, como Luiz não resistiu às musas, como abraçou o palco com a sede dos beduínos, deveria se tocar e seguir o exemplo de Jair Rodrigues. Ele, sim, um negro elegante. Um sambista de respeito, que mantém os cabelos impecáveis e não tolera roupas vulgares. A trajetória dos negros, de qualquer negro, é difícil. Há inúmeras armadilhas pelo caminho. Por isso, melhor não dar sopa. Melhor evitar comportamentos que inspirem recriminações alheias. Aposente as gírias, rapaz. Gírias não combinam com um sujeito de bem. Esqueça a cerveja, menino. Bebida em excesso prejudica a voz. O diabo é que Luiz sempre adorou o linguajar das ruas, o diabo é que sempre gostou de cerveja. Começou degustando as baratinhas, que os tios compravam no morro de São Carlos, favela carioca onde nasceu e se criou. Hoje não dispensa as estrangeiras. Às vezes, exagera um pouco. Toma uma, depois outra e mais outra. Qual o problema? Se escutasse o pai, nunca conheceria o frescor que emana das garrafas alemãs, belgas, norte-americanas e holandesas.
Agora veja só o tamanho da ironia. Mesmo sem escutar o pai, acabou por escutá-lo bastante. Tapava os ouvidos para os conselhos de seu Oswaldo, mas não para as músicas lindas que o estivador de origem capixaba insistia em cantarolar. Ô Maura, vem matar minha saudade/ Não tenho felicidade/ Desde o dia em que me abandonou. O próprio Oswaldo inventava as composições numa viola de quatro cordas, talento que logo lhe rendeu o apelido de Melodia. Foi observando o pai que o filho aprendeu os primeiros acordes, às escondidas. Quando Oswaldo caiu em si, o moleque já não se chamava Luiz Carlos dos Santos. Chamava-se Luiz Melodia. Meados da década de 1970. O cantor integrava o elenco da Philips e percorria o país em turnês de sucesso. Certa ocasião, enquanto viajava, lhe informaram que Oswaldo descera repentinamente do morro e surgira na gravadora. Depois de se apresentar, puxara conversa com Deus e o mundo: das secretárias à diretoria. “Mas, pai, ir lá sem me dizer nada?”, protestou Luiz. Sereno como um frade, Oswaldo esclareceu: “Precisava checar se o pessoal está cuidando direitinho de você”.
Muito tempo antes, outra visita-surpresa afetou Luiz, só que de maneira trágica. Ainda garoto, ele dividia um casebre de barro com o pai, a mãe (dona Eurídice, hábil costureira) e três irmãs. No quintal, tratava de galos e galinhas, banalidade que lhe parecia uma tarefa épica. Era fascinado por bichos e não conseguia imaginar tesouro maior do que a modesta criação. Jamais pensara em matar as aves, nem mesmo às vésperas de almoços festivos. Queria todas vivíssimas, pelo mero prazer de admirá-las. Uma tarde, lembra-se bem, saiu para jogar bola. Quando voltou, recebeu a notícia: a avó materna dera um pulo no São Carlos e mandara exterminar os animaizinhos. Uma selvageria imensurável. “Lugar de galinha é dentro da panela”, justificou a carrasca, com frieza de diplomata. Naquela tarde, pela primeira vez, Luiz sentiu a força descomunal do absurdo. Pobreza e miséria. O artista entendeu logo cedo a diferença entre os dois conceitos. Ele, os pais e as irmãs pertenciam à classe dos pobres. Uma tia, prestativa e carinhosa, habitava o reino sombrio dos miseráveis. Faltava-lhe tudo: o mínimo de equilíbrio financeiro, o mínimo de infraestrutura doméstica, o mínimo de coragem para superar o alcoolismo. Luiz presenciava o drama cotidiano com enorme revolta, mas também com esperança. Cultivava o sonho de vencer na música justamente porque desejava tirar Maria do buraco. Em Pérola Negra, seu LP de estreia, incluiu um misto de blues e rock que remete à história da tia querida. Batizou a canção de Farrapo Humano.
Venceu, não há mais dúvidas. Próximo dos 60 anos (completou 58 em janeiro), mora confortavelmente e ajuda os familiares como pode. Tem dois filhos — o caçula é o rapper Mahal — e um casamento duradouro, que já ultrapassa as três décadas. Está convicto de que as orações persistentes de seu Oswaldo e dona Eurídice, fiéis da Igreja Batista, contribuíram para que os céus o abençoassem tanto. Prosperou e, ainda assim, não consegue lidar com dinheiro. Amarga uma espécie de “branco” quando se vê na iminência de efetuar saques em caixas eletrônicos, operar cartões de crédito ou conferir extratos. Transações bancárias simplesmente o desnorteiam, como se realizá-las significasse aterrissar num planeta hostil. Sempre que precisa fazer algo do gênero, pede socorro à mulher e empresária, Jane. Por mais que reflita sobre o assunto, não sabe explicar a razão do bloqueio.
Luiz Melodia
Foto Ana Ottoni
Luiz Melodia e a partitura de Estácio, Eu e Você
O cantor está em turnê para divulgar o disco Especial MTV
Se escutasse o pai, não usaria os cabelos à moda dos rastafáris nem os deixaria crescer demais. Não permitiria que marchassem rumo à cintura, como avencas sorrateiras que invadem zonas proibidas. Também não exibiria um figurino tão informal em público, camisetas sem manga, tênis, calças gastas. Estaria invariavelmente de terno, os sapatos brilhando, a barba em ordem, a juba exígua, retraída, submissa. Se escutasse o pai, nem sequer viraria cantor. Seria médico, um humanista estudioso e abnegado. Ou, quem sabe, se tornaria político de renome, já que o pai engrossava a casta dos que acreditam em política. No entanto, como Luiz não resistiu às musas, como abraçou o palco com a sede dos beduínos, deveria se tocar e seguir o exemplo de Jair Rodrigues. Ele, sim, um negro elegante. Um sambista de respeito, que mantém os cabelos impecáveis e não tolera roupas vulgares. A trajetória dos negros, de qualquer negro, é difícil. Há inúmeras armadilhas pelo caminho. Por isso, melhor não dar sopa. Melhor evitar comportamentos que inspirem recriminações alheias. Aposente as gírias, rapaz. Gírias não combinam com um sujeito de bem. Esqueça a cerveja, menino. Bebida em excesso prejudica a voz. O diabo é que Luiz sempre adorou o linguajar das ruas, o diabo é que sempre gostou de cerveja. Começou degustando as baratinhas, que os tios compravam no morro de São Carlos, favela carioca onde nasceu e se criou. Hoje não dispensa as estrangeiras. Às vezes, exagera um pouco. Toma uma, depois outra e mais outra. Qual o problema? Se escutasse o pai, nunca conheceria o frescor que emana das garrafas alemãs, belgas, norte-americanas e holandesas.
Agora veja só o tamanho da ironia. Mesmo sem escutar o pai, acabou por escutá-lo bastante. Tapava os ouvidos para os conselhos de seu Oswaldo, mas não para as músicas lindas que o estivador de origem capixaba insistia em cantarolar. Ô Maura, vem matar minha saudade/ Não tenho felicidade/ Desde o dia em que me abandonou. O próprio Oswaldo inventava as composições numa viola de quatro cordas, talento que logo lhe rendeu o apelido de Melodia. Foi observando o pai que o filho aprendeu os primeiros acordes, às escondidas. Quando Oswaldo caiu em si, o moleque já não se chamava Luiz Carlos dos Santos. Chamava-se Luiz Melodia.
Meados da década de 1970. O cantor integrava o elenco da Philips e percorria o país em turnês de sucesso. Certa ocasião, enquanto viajava, lhe informaram que Oswaldo descera repentinamente do morro e surgira na gravadora. Depois de se apresentar, puxara conversa com Deus e o mundo: das secretárias à diretoria. “Mas, pai, ir lá sem me dizer nada?”, protestou Luiz. Sereno como um frade, Oswaldo esclareceu: “Precisava checar se o pessoal está cuidando direitinho de você”.
Muito tempo antes, outra visita-surpresa afetou Luiz, só que de maneira trágica. Ainda garoto, ele dividia um casebre de barro com o pai, a mãe (dona Eurídice, hábil costureira) e três irmãs. No quintal, tratava de galos e galinhas, banalidade que lhe parecia uma tarefa épica. Era fascinado por bichos e não conseguia imaginar tesouro maior do que a modesta criação. Jamais pensara em matar as aves, nem mesmo às vésperas de almoços festivos. Queria todas vivíssimas, pelo mero prazer de admirá-las. Uma tarde, lembra-se bem, saiu para jogar bola. Quando voltou, recebeu a notícia: a avó materna dera um pulo no São Carlos e mandara exterminar os animaizinhos. Uma selvageria imensurável. “Lugar de galinha é dentro da panela”, justificou a carrasca, com frieza de diplomata. Naquela tarde, pela primeira vez, Luiz sentiu a força descomunal do absurdo.
Pobreza e miséria. O artista entendeu logo cedo a diferença entre os dois conceitos. Ele, os pais e as irmãs pertenciam à classe dos pobres. Uma tia, prestativa e carinhosa, habitava o reino sombrio dos miseráveis. Faltava-lhe tudo: o mínimo de equilíbrio financeiro, o mínimo de infraestrutura doméstica, o mínimo de coragem para superar o alcoolismo. Luiz presenciava o drama cotidiano com enorme revolta, mas também com esperança. Cultivava o sonho de vencer na música justamente porque desejava tirar Maria do buraco. Em Pérola Negra, seu LP de estreia, incluiu um misto de blues e rock que remete à história da tia querida. Batizou a canção de Farrapo Humano.
Venceu, não há mais dúvidas. Próximo dos 60 anos (completou 58 em janeiro), mora confortavelmente e ajuda os familiares como pode. Tem dois filhos — o caçula é o rapper Mahal — e um casamento duradouro, que já ultrapassa as três décadas. Está convicto de que as orações persistentes de seu Oswaldo e dona Eurídice, fiéis da Igreja Batista, contribuíram para que os céus o abençoassem tanto.
Prosperou e, ainda assim, não consegue lidar com dinheiro. Amarga uma espécie de “branco” quando se vê na iminência de efetuar saques em caixas eletrônicos, operar cartões de crédito ou conferir extratos. Transações bancárias simplesmente o desnorteiam, como se realizá-las significasse aterrissar num planeta hostil. Sempre que precisa fazer algo do gênero, pede socorro à mulher e empresária, Jane. Por mais que reflita sobre o assunto, não sabe explicar a razão do bloqueio.
Publicado domingo, 1 de fevereiro de 2009 às 10:40 pm e categorizado como Confessionário. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.