Foto João Wainer Juliana Galdino com a máscara de Pedro, o Vermelho
O macaco que protagoniza a peça Comunicação a uma Academia incorpora na atriz Juliana Galdino e conta como se tornou humano
Pedro, o Vermelho é um macaco que há quase cinco anos age como homem. Pensa, se expressa com palavras, usa smoking, bebe vinho e fuma. Sorumbático, ganha a vida se apresentando em espetáculos circenses e teatrais. Estará feliz? BRAVO!: Por que você decidiu se tornar humano? Pedro, o Vermelho: Porque não me restava escolha. Nasci na África e vivia solto pelas matas, sob os caprichos do instinto. Certa noite, saí com meu bando para tomar água à beira de um riacho. Foi quando um grupo de caçadores nos surpreendeu. Levei dois tiros. Um deles me feriu sem gravidade, mas desenhou a cicatriz rubra que carrego no rosto e que acabou originando meu repulsivo apelido — Pedro, o Vermelho. A outra bala me acertou abaixo da cintura e provocou um estrago maior… Que tipo de estrago? Desculpe-me a indiscrição…
Não creio que precise entrar em detalhes. O fato é que os caçadores me conduziram inconsciente para um navio e me trancaram numa pequena jaula. Mal despertei, percebi a precariedade daquele cubículo. Se quisesse me sentar, não dispunha de espaço. Ficar de pé? Impossível: a prisão se revelava baixa demais. Sobrava-me, apenas, a humilhante alternativa de permanecer agachado, com os joelhos sempre trêmulos. No começo, me deprimi. Sufocava o choro, batia a cabeça contra a jaula, lambia desanimadamente o coco que me ofereciam e mostrava a língua quando alguém se avizinhava. Depois, concluí que tanta tristeza iria me matar. Tinha de reagir. Ocorreu-me, então, um pensamento salvador: “Se os homens tratam os macacos desse modo, deixarei de ser macaco!”. Entendi que me destruiria caso insistisse em continuar obstinadamente fiel às minhas origens. Macacos pensam? Sim, com as vísceras, com o estômago. Ou com as sensações, se o senhor preferir resposta um pouco menos metafórica. Não lhe passou pela cabeça fugir da jaula? Não me lembro exatamente. Acredito que passou. Mas de que adiantaria utilizar os dentes para romper o cadeado? Não havia onde me esconder. Cedo ou tarde iriam me recapturar e, quem sabe, me enfiar numa jaula pior. O senhor consegue enxergar o beco sem saída em que me achava? O destino exigia de mim uma mudança drástica de costumes. Por isso, não demorei em ceder à exigência e hoje afirmo que estou tão distante da condição simiesca quanto o senhor ou o presidente da República. Digamos que conquistei a cultura média de um europeu, talvez com um refinamento maior no jeito de me expressar. Ainda assim, não nego que o passado animal às vezes tenta se impor de novo e mordisca meus calcanhares — uma ameaça que, imagino, se coloque igualmente para o senhor. Como você assimilou as características humanas? Como qualquer homem quando criança: por imitação. Qual o comportamento que você aprendeu primeiro? O de esticar o braço e cumprimentar os outros. Um gesto de aproximação, alegam os senhores. No entanto, de início, me pareceu justo o contrário. Mãos que se lançam à frente do corpo podem significar o princípio de uma agressão, o anúncio de um tapa. Notei que você também adquiriu o hábito de beber e fumar. É verdade. Os macacos, à semelhança dos humanos, padecem com a rotina. Para suportá-la em meus tempos de selva, tomava banhos de cachoeira ou escalava montanhas exóticas. Agora sigo dependendo das válvulas de escape. Só que a cachoeira se transferiu para o fundo do copo e o pico da montanha para o cigarro. Gosta de se comunicar com palavras? Julgo apenas interessante. As palavras não me deslumbram. Já me comunicava muito bem nas florestas por meio de mímicas e ruídos. Nunca senti falta do verbo. Aliás, a construção melódica que os senhores associam às palavras existe na natureza inteira. Tudo fala. Grunhidos, assobios e uivos são conversa. O que você ganhou quando abandonou o status de macaco? Ganhei a possibilidade de cometer erros. Somente os homens erram. Errar, como os senhores apregoam, é humano. E o que você perdeu? A liberdade que desfrutava na mata. Uma perda gigantesca, por sinal. O senhor certamente concordará que somos tão mais livres quanto mais longe estamos da ideia de liberdade. Explique melhor. Simples: só pensa em liberdade quem necessita se curvar às leis e regras de conduta que a restringem — uma submissão da qual os humanos não ousam escapar completamente, sob o risco de implodirem os laços sociais. Por ignorar o conceito de liberdade, o macaco ou qualquer outro animal é de fato livre. Você se arrepende da decisão que tomou naquele navio? Não. Mas também não me orgulho.
Onde Encontrar Pedro, o Vermelho Na peça “Comunicação a uma Academia”, baseada em texto de Franz Kafka. Tradução e direção de Roberto Alvim. Com Juliana Galdino e Gê Viana. Teatro Imprensa (rua Jaceguai, 400, Bela Vista, São Paulo, SP, tel. 0++/11/3241-4203). Até 20/5.
Publicado
quarta-feira, 1 de abril de 2009 às 9:03 pm e categorizado como Máscara.
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Pedro, o Vermelho
Foto João Wainer
Juliana Galdino com a máscara de Pedro, o Vermelho
BRAVO!: Por que você decidiu se tornar humano?
Pedro, o Vermelho: Porque não me restava escolha. Nasci na África e vivia solto pelas matas, sob os caprichos do instinto. Certa noite, saí com meu bando para tomar água à beira de um riacho. Foi quando um grupo de caçadores nos surpreendeu. Levei dois tiros. Um deles me feriu sem gravidade, mas desenhou a cicatriz rubra que carrego no rosto e que acabou originando meu repulsivo apelido — Pedro, o Vermelho. A outra bala me acertou abaixo da cintura e provocou um estrago maior…
Que tipo de estrago? Desculpe-me a indiscrição…
Não creio que precise entrar em detalhes. O fato é que os caçadores me conduziram inconsciente para um navio e me trancaram numa pequena jaula. Mal despertei, percebi a precariedade daquele cubículo. Se quisesse me sentar, não dispunha de espaço. Ficar de pé? Impossível: a prisão se revelava baixa demais. Sobrava-me, apenas, a humilhante alternativa de permanecer agachado, com os joelhos sempre trêmulos. No começo, me deprimi. Sufocava o choro, batia a cabeça contra a jaula, lambia desanimadamente o coco que me ofereciam e mostrava a língua quando alguém se avizinhava. Depois, concluí que tanta tristeza iria me matar. Tinha de reagir. Ocorreu-me, então, um pensamento salvador: “Se os homens tratam os macacos desse modo, deixarei de ser macaco!”. Entendi que me destruiria caso insistisse em continuar obstinadamente fiel às minhas origens.
Macacos pensam?
Sim, com as vísceras, com o estômago. Ou com as sensações, se o senhor preferir resposta um pouco menos metafórica.
Não lhe passou pela cabeça fugir da jaula?
Não me lembro exatamente. Acredito que passou. Mas de que adiantaria utilizar os dentes para romper o cadeado? Não havia onde me esconder. Cedo ou tarde iriam me recapturar e, quem sabe, me enfiar numa jaula pior. O senhor consegue enxergar o beco sem saída em que me achava? O destino exigia de mim uma mudança drástica de costumes. Por isso, não demorei em ceder à exigência e hoje afirmo que estou tão distante da condição simiesca quanto o senhor ou o presidente da República. Digamos que conquistei a cultura média de um europeu, talvez com um refinamento maior no jeito de me expressar. Ainda assim, não nego que o passado animal às vezes tenta se impor de novo e mordisca meus calcanhares — uma ameaça que, imagino, se coloque igualmente para o senhor.
Como você assimilou as características humanas?
Como qualquer homem quando criança: por imitação.
Qual o comportamento que você aprendeu primeiro?
O de esticar o braço e cumprimentar os outros. Um gesto de aproximação, alegam os senhores. No entanto, de início, me pareceu justo o contrário. Mãos que se lançam à frente do corpo podem significar o princípio de uma agressão, o anúncio de um tapa.
Notei que você também adquiriu o hábito de beber e fumar.
É verdade. Os macacos, à semelhança dos humanos, padecem com a rotina. Para suportá-la em meus tempos de selva, tomava banhos de cachoeira ou escalava montanhas exóticas. Agora sigo dependendo das válvulas de escape. Só que a cachoeira se transferiu para o fundo do copo e o pico da montanha para o cigarro.
Gosta de se comunicar com palavras?
Julgo apenas interessante. As palavras não me deslumbram. Já me comunicava muito bem nas florestas por meio de mímicas e ruídos. Nunca senti falta do verbo. Aliás, a construção melódica que os senhores associam às palavras existe na natureza inteira. Tudo fala. Grunhidos, assobios e uivos são conversa.
O que você ganhou quando abandonou o status de macaco?
Ganhei a possibilidade de cometer erros. Somente os homens erram. Errar, como os senhores apregoam, é humano.
E o que você perdeu?
A liberdade que desfrutava na mata. Uma perda gigantesca, por sinal. O senhor certamente concordará que somos tão mais livres quanto mais longe estamos da ideia de liberdade.
Explique melhor.
Simples: só pensa em liberdade quem necessita se curvar às leis e regras de conduta que a restringem — uma submissão da qual os humanos não ousam escapar completamente, sob o risco de implodirem os laços sociais. Por ignorar o conceito de liberdade, o macaco ou qualquer outro animal é de fato livre.
Você se arrepende da decisão que tomou naquele navio?
Não. Mas também não me orgulho.
Na peça “Comunicação a uma Academia”, baseada em texto de Franz Kafka. Tradução e direção de Roberto Alvim. Com Juliana Galdino e Gê Viana. Teatro Imprensa (rua Jaceguai, 400, Bela Vista, São Paulo, SP, tel. 0++/11/3241-4203). Até 20/5.
Publicado quarta-feira, 1 de abril de 2009 às 9:03 pm e categorizado como Máscara. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.