Foto Ana Ottoni Erasmo Carlos com a foto de quando tinha 17 anos. Desde a adolescência, ele nunca deixou de se considerar um roqueiro
O cantor está iniciando a turnê do show Rock´n´Roll
“Não ouça! Você pode enlouquecer.” A advertência circulava pelo Rio de Janeiro junto às notícias sobre um novo e frenético estilo musical. Rock’n’roll, o nome do bicho. Os alarmistas usavam o verbo “enlouquecer” sem nenhuma intenção metafórica. Acreditavam que aquele som endiabrado levava realmente à loucura. Quem o escutasse corria o risco de avivar impulsos primitivos e, como um Átila extemporâneo, sair quebrando tudo. Era o que parecia acontecer nos Estados Unidos: em julho de 1955, o esfuziante Rock Around the Clock, tocado por Bill Halley e Seus Cometas, alcançou o topo da parada local depois de incorporar a trilha do filme Blackboard Jungle (Sementes da Violência). Os boatos asseguravam que alguns dos cinemas onde o longa passara assistiram incrédulos à fúria da plateia. Sob as garras da canção alucinógena, hordas de jovens destruíram poltronas e traumatizaram lanterninhas. Carioca da Tijuca, Erasmo tinha 14 anos na ocasião e gostava bastante de música: Jackson do Pandeiro, Nelson Gonçalves, Silvio Caldas. Por não desgrudar do rádio, que sintonizava baixinho (detestava incomodar os outros), já conhecia o tal do rock. Sabia dos temores que despertava e simplesmente não os entendia. As escassas amostras do “perigoso ritmo” que fisgara no dial lhe causaram indiferença. Certa noite, porém, zanzando pelo bairro, avistou uma residência de onde ecoava um ruído altíssimo. Devia ser uma festa. One, two, three o’clock… A voz de Bill Halley estremecia a rua Afonso Pena. O garoto parou em frente à casa, hipnotizado. Fazia muita diferença sorver aquilo no último volume. “Não ouça! Não ouça! Não ouça!” Enfim compreendeu os alertas: a barulheira o inundou de assombro, excitação e felicidade. Acabou por enlouquecê-lo, ainda que não exatamente como as profecias anunciavam.
Hoje, com 68 anos, três filhos e quatro netos, exibe orgulhoso as 15 “medalhas” que o rock lhe deu. São de pano ou couro – pulseiras, na verdade. Espalhou-as há séculos pelo braço direito. Lembram adereços hippies e simbolizam a rebeldia que sempre inspirou os melhores acordes das guitarras. Caretas não ostentam badulaques assim. Se Erasmo teima em carregá-los é porque conserva pelo menos uma parte do inconformismo que herdou de Bill Halley, Chuck Berry, Little Richard e Elvis Presley. Uma insubmissão que já expressou de maneira agressiva (na juventude, costumava protagonizar arruaças de gangue) e que agora manifesta com gestos corriqueiros: não só o de manter as pulseiras coloridas, mas também os de dormir habitualmente às 4h da manhã, quando todos estão quase de pé, ou enfrentar a patrulha dos saudáveis e seguir fumando dois maços diários de Hollywood.
O mesmo rock que o crivou de “medalhas” cobrou-lhe o preço injusto da dor. Uma inflamação no quadril o empurrou para a cirurgia em dezembro de 2008. Provavelmente, as cinco décadas de saltos, danças e corridinhas sobre o palco, não raro atendendo às exigências febris do iê-iê-iê, provocaram a incômoda lesão.
De origem pobre, cresceu apenas em companhia da mãe, uma baiana de Salvador que se desdobrou para sustentá-lo: trabalhou de lavadeira, doméstica, auxiliar de enfermagem e inspetora de colégio. Ela contava que ficara viúva pouco antes de parir. A história, no entanto, desmoronou em 1964. Um policial igualmente baiano viu Erasmo pela televisão e resolveu procurá-lo. Era seu pai. Mal se deparou com o cantor, abraçou-o e implorou desculpas por tê-lo abandonado. O rapaz, à beira dos 23 anos e sentindo-se num folhetim, o perdoou, mas jamais conseguiu amá-lo.
Nasceu Erasmo Esteves e virou Erasmo Carlos somente quando enveredou pela carreira artística. Escolheu o pseudônimo inspirado em dois amigos que admirava: Roberto Carlos e o apresentador Carlos Imperial. O nome que trazia do berço o desagradava. Julgava-o tímido, simplório, inadequado para um homenzarrão de 1m86. Imaginava que, como Erasmo Esteves, pisaria em cena apequenado, e o público logo o tomaria por um qualquer. Já como Erasmo Carlos iria se agigantar ainda mais. Afinal, descobrira numa revista que Carlos agrega as letras iniciais de cinco soberanos: C de Cristo, rei dos reis; A de águia, rainha das aves; R de rosa, rainha das flores; L de leão, rei dos animais; O de ouro, rei dos metais; e S de sol, rei dos astros.
O destino conspirou para que encontrasse Roberto? É bem possível. Há, no mínimo, uma evidência: Cachoeiro de Itapemirim, a terra de Roberto, sempre insistiu em cruzar a trajetória de Erasmo. Carlos Imperial e outros três amigos também vieram do município capixaba: os compositores Raul e Sérgio Sampaio e o cronista Rubem Braga. Mera coincidência?
Embora não visite muito o lendário parceiro, o Tremendão confia que Roberto continuará sendo a presença mais certa nas horas incertas. Quando Erasmo amargou o suicídio da mulher, Narinha, o “irmão camarada” não deixou de acolhê-lo. A tragédia, insondável, se desenhou em 1995. À época, o cantor pendurava no cordão do pescoço, como um amuleto, a chave da casa que dividia com a companheira. De repente, por força da morte absurda, o objeto perdeu todo o sentido, voltando à condição de reles metal. Erasmo o guardou e nunca mais pendurou nada no cordão.
Erasmo Carlos
Foto Ana Ottoni
Erasmo Carlos com a foto de quando tinha 17 anos. Desde a adolescência,
ele nunca deixou de se considerar um roqueiro
O cantor está iniciando a turnê do show Rock´n´Roll
“Não ouça! Você pode enlouquecer.” A advertência circulava pelo Rio de Janeiro junto às notícias sobre um novo e frenético estilo musical. Rock’n’roll, o nome do bicho. Os alarmistas usavam o verbo “enlouquecer” sem nenhuma intenção metafórica. Acreditavam que aquele som endiabrado levava realmente à loucura. Quem o escutasse corria o risco de avivar impulsos primitivos e, como um Átila extemporâneo, sair quebrando tudo. Era o que parecia acontecer nos Estados Unidos: em julho de 1955, o esfuziante Rock Around the Clock, tocado por Bill Halley e Seus Cometas, alcançou o topo da parada local depois de incorporar a trilha do filme Blackboard Jungle (Sementes da Violência). Os boatos asseguravam que alguns dos cinemas onde o longa passara assistiram incrédulos à fúria da plateia. Sob as garras da canção alucinógena, hordas de jovens destruíram poltronas e traumatizaram lanterninhas. Carioca da Tijuca, Erasmo tinha 14 anos na ocasião e gostava bastante de música: Jackson do Pandeiro, Nelson Gonçalves, Silvio Caldas. Por não desgrudar do rádio, que sintonizava baixinho (detestava incomodar os outros), já conhecia o tal do rock. Sabia dos temores que despertava e simplesmente não os entendia. As escassas amostras do “perigoso ritmo” que fisgara no dial lhe causaram indiferença. Certa noite, porém, zanzando pelo bairro, avistou uma residência de onde ecoava um ruído altíssimo. Devia ser uma festa. One, two, three o’clock… A voz de Bill Halley estremecia a rua Afonso Pena. O garoto parou em frente à casa, hipnotizado. Fazia muita diferença sorver aquilo no último volume. “Não ouça! Não ouça! Não ouça!” Enfim compreendeu os alertas: a barulheira o inundou de assombro, excitação e felicidade. Acabou por enlouquecê-lo, ainda que não exatamente como as profecias anunciavam.
Hoje, com 68 anos, três filhos e quatro netos, exibe orgulhoso as 15 “medalhas” que o rock lhe deu. São de pano ou couro – pulseiras, na verdade. Espalhou-as há séculos pelo braço direito. Lembram adereços hippies e simbolizam a rebeldia que sempre inspirou os melhores acordes das guitarras. Caretas não ostentam badulaques assim. Se Erasmo teima em carregá-los é porque conserva pelo menos uma parte do inconformismo que herdou de Bill Halley, Chuck Berry, Little Richard e Elvis Presley. Uma insubmissão que já expressou de maneira agressiva (na juventude, costumava protagonizar arruaças de gangue) e que agora manifesta com gestos corriqueiros: não só o de manter as pulseiras coloridas, mas também os de dormir habitualmente às 4h da manhã, quando todos estão quase de pé, ou enfrentar a patrulha dos saudáveis e seguir fumando dois maços diários de Hollywood.
O mesmo rock que o crivou de “medalhas” cobrou-lhe o preço injusto da dor. Uma inflamação no quadril o empurrou para a cirurgia em dezembro de 2008. Provavelmente, as cinco décadas de saltos, danças e corridinhas sobre o palco, não raro atendendo às exigências febris do iê-iê-iê, provocaram a incômoda lesão.
De origem pobre, cresceu apenas em companhia da mãe, uma baiana de Salvador que se desdobrou para sustentá-lo: trabalhou de lavadeira, doméstica, auxiliar de enfermagem e inspetora de colégio. Ela contava que ficara viúva pouco antes de parir. A história, no entanto, desmoronou em 1964. Um policial igualmente baiano viu Erasmo pela televisão e resolveu procurá-lo. Era seu pai. Mal se deparou com o cantor, abraçou-o e implorou desculpas por tê-lo abandonado. O rapaz, à beira dos 23 anos e sentindo-se num folhetim, o perdoou, mas jamais conseguiu amá-lo.
Nasceu Erasmo Esteves e virou Erasmo Carlos somente quando enveredou pela carreira artística. Escolheu o pseudônimo inspirado em dois amigos que admirava: Roberto Carlos e o apresentador Carlos Imperial. O nome que trazia do berço o desagradava. Julgava-o tímido, simplório, inadequado para um homenzarrão de 1m86. Imaginava que, como Erasmo Esteves, pisaria em cena apequenado, e o público logo o tomaria por um qualquer. Já como Erasmo Carlos iria se agigantar ainda mais. Afinal, descobrira numa revista que Carlos agrega as letras iniciais de cinco soberanos: C de Cristo, rei dos reis; A de águia, rainha das aves; R de rosa, rainha das flores; L de leão, rei dos animais; O de ouro, rei dos metais; e S de sol, rei dos astros.
O destino conspirou para que encontrasse Roberto? É bem possível. Há, no mínimo, uma evidência: Cachoeiro de Itapemirim, a terra de Roberto, sempre insistiu em cruzar a trajetória de Erasmo. Carlos Imperial e outros três amigos também vieram do município capixaba: os compositores Raul e Sérgio Sampaio e o cronista Rubem Braga. Mera coincidência?
Embora não visite muito o lendário parceiro, o Tremendão confia que Roberto continuará sendo a presença mais certa nas horas incertas. Quando Erasmo amargou o suicídio da mulher, Narinha, o “irmão camarada” não deixou de acolhê-lo. A tragédia, insondável, se desenhou em 1995. À época, o cantor pendurava no cordão do pescoço, como um amuleto, a chave da casa que dividia com a companheira. De repente, por força da morte absurda, o objeto perdeu todo o sentido, voltando à condição de reles metal. Erasmo o guardou e nunca mais pendurou nada no cordão.
Publicado sexta-feira, 2 de outubro de 2009 às 12:02 am e categorizado como Confessionário. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.