Vanessa da Mata: "Beautiful girl! I'm Broder Creize"
Enquanto lança novo disco, a cantora aprende a lidar com a notoriedade crescente e a esquisitice de certos fãs, como o carioca que a abordou na rua e repetiu, em um inglês macarrônico: “Linda garota! Eu sou o Irmão Malucão”
Na cafeteria do Jardim Botânico carioca, Vanessa da Mata namora um bolo de cenoura com cobertura de chocolate. A fatia, considerável, repousa intacta em um pratinho à frente da cantora. Parece tão apetitosa quanto devem ser as guloseimas que, não raro, invadem as letras da mato-grossense: paçoca, suspiro, bombom, cocada, jujuba, quindim, brigadeiro, churro, sonho. “Ninguém vai me ajudar?”, pergunta para a assessora de imprensa Jane Barboza e a produtora Karla Gallo, que a acompanham. “Nem pensem em me deixar engolir o bolo sozinha, hein?” Trajando jeans e camiseta, Vanessa usa os cabelos soltos, livres dos lenços, chapéus, flores e tiaras que costumam ostentar no palco. De perto, se mostram ainda mais encaracolados e volumosos.
Mal dá a primeira garfada no bolo, a compositora de 34 anos vê uma senhora se aproximar. “Onde fica o banheiro?”, indaga a mulher, sem reconhecê-la. A artista logo se solidariza com a interlocutora: “Ruim de achar, né?” Depois, muito naturalmente, indica uma porta à direita. Passam-se dez minutos e, de um rádio próximo, ecoa uma canção da intérprete. “Ouçam”, alerto. “Estão tocando Ai, Ai, Ai…” Vanessa esboça uma careta e cutuca meu braço de leve: “Por que você chamou a minha atenção? Agora só vou reparar na música, notar os defeitos…”
Quase simultaneamente, uma moça que lanchava por ali se levanta e, acanhadíssima, pede para tirar uma foto com a cantora. Vanessa não se opõe. A menina, então, se derrama: “Adoro você! Adoro!” Quando a tiete se distancia, a compositora, visivelmente desconcertada, comenta: “O que respondo numa hora dessas? Juro que não sei…” Jane sorri: “Apenas agradeça: ‘Obrigada por gostar do que faço’”. E a mato-grossense: “É?”
Àquela tarde, dia 31 de agosto, falávamos sobre o álbum que Vanessa acabara de concluir. O CD – quinto de uma carreira fonográfica inaugurada em 2002 – está chegando às lojas e exibe um título que remete à atmosfera doce do café onde conversávamos: Bicicletas, Bolos e Outras Alegrias. Como de hábito, a artista o lança pela Sony. Dessa vez, porém, a maior gravadora do Brasil divide os custos (e os lucros) do projeto com o selo Jabuticaba, que pertence à própria intérprete. O trabalho emerge num momento de transição para Vanessa e sob grande expectativa. O disco de estúdio que o precedeu, Sim, de 2007, alcançou um sucesso notável e propagou os versos da mato-grossense mundo afora. É certo que ela já brilhara antes, mas não com tamanha intensidade. Pode-se afirmar que Sim a colocou à altura de nossas principais cantoras.�
Curiosamente, a mudança de patamar ainda a desnorteia, algo que o encontro daquela tarde e o da tarde seguinte, na Gávea, deixaram transparecer. Vanessa demonstra se sentir bem mais confortável diante dos que não a reconhecem. O status de celebridade aparenta preocupá-la ou mesmo assustá-la. Talvez por isso, para preservar a condição de “reles mortal”, a artista não se prive de alguns gestos simples – ações corriqueiras que diversas estrelas já não se concedem realizar. Exemplos? Comer um bolo imenso em público sem sucumbir à patrulha do açúcar. Ou tocar distraída no braço de um repórter enquanto lhe dá entrevista, como quem papeia com um amigo.
Guiga, Dri e Mateus
Há oito anos, quando gravou seu álbum de estreia, a mato-grossense despertou uma resposta de público modesta, mas satisfatória. Em compensação, rapidamente arrancou elogios dos colegas e da crítica. “Feliz do país que revela cantoras do naipe de Maria Rita e Vanessa da Mata”, festejou o jornalista Nelson Motta pouco tempo depois. De fato, a filha de Elis Regina e a filha de dona Sebastiana com seu Divinor – uma professora do ensino fundamental e um caminhoneiro que prosperou, tornando-se pecuarista – têm pelo menos uma característica em comum: ocupam um nicho de mercado que se convencionou chamar de MPB (Música Popular Brasileira) e onde também se abrigam Adriana Calcanhotto, Marisa Monte e Ana Carolina.
De modo geral, a denominação engloba todos os intérpretes nacionais que não se voltam prioritariamente para o sertanejo, o rock, o filão religioso, o pagode, o brega, o rap e os gêneros regionais, dos endiabrados forró e funk carioca à axé music. Estimam os historiadores que a sigla se disseminou a partir de 1965. Na época, abarcava os artistas jovens que sofriam a influência da sofisticada bossa nova e, ao mesmo tempo, abraçavam estilos identificados com as classes baixas, caso do samba de morro e das canções nordestinas. Edu Lobo, Chico Buarque e a própria Elis Regina integravam a turma. Mais tarde, as três consoantes se expandiram na direção dos tropicalistas (Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé) e seus herdeiros, que acolhiam tanto Luiz Gonzaga, Tom Jobim e a Portela como as guitarras dos roqueiros britânicos e norte-americanos. Atualmente, o termo se cristalizou como sinônimo de qualidade – uma chancela que distinguiria as canções “requintadas, duráveis” das “popularescas” ou “descartáveis”. Não à toa, há quem rejeite tal acepção e a classifique de preconceituosa.
Alheia aos rótulos, Vanessa segue produzindo um pop bastante peculiar e multifacetado, em que a sonoridade urbana do Primeiro Mundo convive com ritmos de países periféricos (o reggae jamaicano, a cumbia argentina) e do interior brasileiro (o xaxado, o caboclinho, a chula baiana, o maracatu, a catira). O inusitado é que a compositora jamais estudou música. Ou melhor: estudou, só que à maneira dela, sem partituras e sem tocar nada. Teve algumas aulas particulares de violão durante a adolescência, mas não chegou a dominá-lo – em parte, por causa de um déficit de atenção que também a prejudicou na escola: repetiu duas séries do antigo ginásio e não terminou o ensino médio. “Uma tarde, quando menina, passei pelo salão paroquial de Alto Garças, a cidadezinha onde nasci, e presenciei o ensaio de uma banda”, conta. “Entendi naquele dia o papel de cada instrumento.” Com 19 anos, depois de infinitas tentativas, desenvolveu um método próprio de composição, em que recorre apenas à voz. “Pego um gravador, cantarolo as melodias que invento e peço para um músico transcrevê-las.” �
Nas letras, seu ecletismo se reafirma. Ora a autora discorre sobre encontros e desencontros amorosos, ora lamenta as desigualdades sociais, o consumismo ou a destruição da natureza, ora evoca coisas e personagens de Alto Garças: as merendas de dona Vantina, os quitutes da avó Sinhá, uma bacia cheia de manga bourbon, Guiga, Dri, Mayanna, Duda, Mateus. Outra marca de Vanessa é abordar com bom humor questões que atormentam as mulheres. No disco novo, por exemplo, ironiza o onipresente medo feminino de engordar (em Fiu Fiu).
“Calculo que escrevi umas mil canções”, diz, ressalvando que “nem todas prestam”. Em tom de brincadeira, se declara “uma compositora obsessivo-compulsiva”. “Ela, às vezes, consegue criar versos tão densos que lembram os do poeta João Cabral de Melo Neto. No entanto, também se permite conceber estrofes muito singelas, muito espontâneas, que aludem à linguagem direta e sentimental da extinta revista Carícia. É uma poesia que praticamente não soa como poesia”, analisa o músico Chico César, amigo e padrinho artístico da cantora. Juntos, no fim da década de 1990, assinaram A Força que Nunca Seca. O paraibano apresentou a composição à baiana Maria Bethânia, que decidiu registrá-la, projetando pela primeira vez o nome de Vanessa. Na canção, segundo Chico, figuram os tais trechos à moda de João Cabral: “Já se pode ver ao longe/ A senhora com a lata na cabeça/ Equilibrando a lata vesga/ Mais do que o corpo dita”. O linguajar à revista Carícia apareceria em frases do tipo “Seus beijos são vermelhos/ Quase que me queimam/ Que meigos são seus olhos” (de Vermelho).
Com o tempo, navegando entre os dois polos, Vanessa emplacou seis músicas nas novelas da Rede Globo e atingiu a meta que só as divas logram alcançar: arregimentou admiradores de diferentes estratos sociais sem perder o aval da crítica. Hoje, frequenta FMs populares e de elite, protagoniza até 15 shows por mês em ginásios de cidades pequenas ou em casas nobres de São Paulo e do Rio de Janeiro, cerca-se de produtores refinados (Mario Caldato Jr., Kassin, Jacques Morelenbaum) e não se furta de compartilhar o palco com ídolos do povão, como Alcione.
Tamanha polivalência gerou números crescentes e vultosos para os padrões atuais. Vanessa da Mata, primeiro disco da cantora, vendeu 140 mil cópias em oito anos, de acordo com a Sony. Sim, o álbum de inéditas que antecede o novo trabalho, vendeu 350 mil em três. No total, descontando a pirataria, os fãs da intérprete consumiram 1 milhão de CDs e DVDs. Os de Adriana Calcanhotto e Ana Carolina, artistas que pertencem à mesma gravadora da mato-grossense, compraram respectivamente 2 e 3 milhões, mas ao longo de um período maior (a gaúcha iniciou a trajetória discográfica em 1990 e a mineira em 1999). Quando se considera a internet, o desempenho de Vanessa continua expressivo. Suas canções motivaram 260 mil downloads pagos e 2,5 milhões de streamings igualmente pagos.
O aumento da demanda em plataformas digitais ou não coincidiu com a presença ascendente da intérprete nas rádios. Os relatórios do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) comprovam o fenômeno. Em 2006, Ai, Ai, Ai.., escrita pela cantora e por Liminha, ocupou o terceiro lugar entre as dez músicas mais tocadas do país. A lista das top ten, até então, nunca incluíra Vanessa. Em 2008, Boa Sorte/Good Luck levou a artista para o primeiro lugar, seguida de Alicia Keys e Danni Carlos. O hit, composto com o norte-americano Ben Harper, está justamente no disco Sim, o campeão de vendas.
A parceria também impulsionou a carreira internacional da mato-grossense. “Passamos a fazer pelo menos duas turnês anuais fora do Brasil”, informa Leninha Brandão, empresária da cantora. Por enquanto, os shows acontecem principalmente na Europa, nos Estados Unidos, na Argentina e no Uruguai. Em 2011, devem se estender para Japão, Austrália, Canadá, Chile, Colômbia e México. �
A agenda lotada não impede que Vanessa se aventure por outras searas. Leitora de Pablo Neruda, Cecília Meireles, Manoel de Barros e Mia Couto, já redigiu seis capítulos de um futuro romance, embora não arrisque uma data de lançamento. Planeja, ainda, abrir uma casa de espetáculos no bairro paulistano de Pinheiros com dois sócios. “Se tudo der certo, vamos inaugurá-la até dezembro”, prevê.
Orgulho
No café do Jardim Botânico, a intérprete mordisca mais um pedaço de bolo. “Veja: me tornei realmente famosa em 2006, 2007. Foi quando minha imagem se espalhou de verdade. Antes, boa parcela do público conhecia minha voz e não o meu rosto. Lógico que sinto um carinho enorme pelos fãs. E pretendo, sim, continuar atingindo um número grande de pessoas. Mas, se o mundo de hoje permitisse, gostaria de fazer sucesso sem me mostrar demais. Numa situação ideal, minhas canções e meu canto se alastrariam, enquanto o resto permaneceria à sombra. Doideira, não?”
Ela lembra que recebeu ofertas para gravar o primeiro disco aos 21 anos. Naquela altura, já somava seis de profissão. Começou se apresentando em bares de Uberlândia (MG), onde viveu parte da adolescência. Saiu de Alto Garças agarrada numa mentira. O pai almejava que a filha cursasse medicina. A filha almejava cantar. Então… “Pai, só poderei enfrentar um vestibular tão difícil se estudar numa cidade melhorzinha.” Mudou para Uberlândia e, às escondidas, trocou a escola pelos microfones. Depois, resolveu se estabelecer em São Paulo. Arranjou uma vaga de modelo na agência Elite, estratégia que lhe garantiu dividir um apartamento de graça com outras meninas, e seguiu à procura de oportunidades artísticas. Participou de uma banda especializada em ritmos nordestinos e de grupos de reggae. Um dia, arrumou o telefone de Chico César, que despontava nacionalmente. Queria ajuda para produzir um “demo” (disco de demonstração).
“Ela me ligou e deixou mensagem na secretária eletrônica. Não respondi. Telefonou de novo, e de novo, e de novo”, relata o compositor. “Da última vez, cantarolou um recado: ‘Chiquinho, me atenda, por favor! Preciso muito encontrar você’. Pensei: ‘É da minha turma – louca! Merece um retorno’.” As portas finalmente se abriram e o “demo” veio à tona. Logo pipocaram os convites para a morena debutar na carreira fonográfica. “Não aceitei nenhum”, recorda. “Eu, que batalhara tanto, morri na praia. O motivo? Pavor de que um eventual sucesso me roubasse a privacidade.”
Em razão do conflito, a jovem que desejava aparecer sem aparecer acabou recorrendo à análise. Encarou o divã por um longo período, até que, com 26 anos, superou o bloqueio e gravou o álbum de estreia. O temor da notoriedade, porém, jamais a abandonou completamente. “Dois riscos da fama me assombram. Primeiro, virar ímã de doido, um alvo que atrai rancores, inveja, frustrações, carência e o julgamento dos outros. Depois, ceder à vaidade – aceitar que o orgulho me capture e embriague.” �
Para resguardar “a consciência do real”, não abdica de caminhar pelas ruas da Lagoa, bairro carioca onde mora, ou de pegar um táxi. Também busca se manter próxima de Felipe, Micael e Bianca, garotos de 9, 6 e 5 anos, que está adotando com o marido, o ator e fotógrafo Gero Pestalozzi. Já em relação à maluquice de alguns admiradores…
Naquela tarde de agosto, após sair do Jardim Botânico, Vanessa se dirige à região central do Rio. Lá, em um predinho charmoso, vai tirar fotos para a BRAVO!. Mal chega e desce do carro, um sujeito a aborda na calçada. “Beautiful girl! Você é uma mata de beleza! Não: você é uma floresta de beleza! Meu querubim!” A cantora ri, desarvorada, e entra no hall do edifício. O homem não recua. Cola o rosto na janelinha da porta e continua gritando: “Beautiful girl!” Cerca de três horas depois, Vanessa deixa o prédio. O camarada retoma a perseguição: “Me dê um autógrafo, please! Você é sobrenatural!” Estica-lhe uma folha amarrotada de papel. A artista a apanha e pergunta o nome do desconhecido. Ele, exultante, dispara: “Beautiful girl, I’m Broder Creize (algo como Irmão Malucão, em inglês macarrônico). Bro-der Crei-ze, a seu dispor!”
(revista Bravo!)
Publicado
sexta-feira, 1 de outubro de 2010 às 8:35 pm e categorizado como Perfis.
Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.
Vanessa da Mata: "Beautiful girl! I'm Broder Creize"
Enquanto lança novo disco, a cantora aprende a lidar com a notoriedade crescente e a esquisitice de certos fãs, como o carioca que a abordou na rua e repetiu, em um inglês macarrônico: “Linda garota! Eu sou o Irmão Malucão”
Na cafeteria do Jardim Botânico carioca, Vanessa da Mata namora um bolo de cenoura com cobertura de chocolate. A fatia, considerável, repousa intacta em um pratinho à frente da cantora. Parece tão apetitosa quanto devem ser as guloseimas que, não raro, invadem as letras da mato-grossense: paçoca, suspiro, bombom, cocada, jujuba, quindim, brigadeiro, churro, sonho. “Ninguém vai me ajudar?”, pergunta para a assessora de imprensa Jane Barboza e a produtora Karla Gallo, que a acompanham. “Nem pensem em me deixar engolir o bolo sozinha, hein?” Trajando jeans e camiseta, Vanessa usa os cabelos soltos, livres dos lenços, chapéus, flores e tiaras que costumam ostentar no palco. De perto, se mostram ainda mais encaracolados e volumosos.
Mal dá a primeira garfada no bolo, a compositora de 34 anos vê uma senhora se aproximar. “Onde fica o banheiro?”, indaga a mulher, sem reconhecê-la. A artista logo se solidariza com a interlocutora: “Ruim de achar, né?” Depois, muito naturalmente, indica uma porta à direita. Passam-se dez minutos e, de um rádio próximo, ecoa uma canção da intérprete. “Ouçam”, alerto. “Estão tocando Ai, Ai, Ai…” Vanessa esboça uma careta e cutuca meu braço de leve: “Por que você chamou a minha atenção? Agora só vou reparar na música, notar os defeitos…”
Quase simultaneamente, uma moça que lanchava por ali se levanta e, acanhadíssima, pede para tirar uma foto com a cantora. Vanessa não se opõe. A menina, então, se derrama: “Adoro você! Adoro!” Quando a tiete se distancia, a compositora, visivelmente desconcertada, comenta: “O que respondo numa hora dessas? Juro que não sei…” Jane sorri: “Apenas agradeça: ‘Obrigada por gostar do que faço’”. E a mato-grossense: “É?”
Àquela tarde, dia 31 de agosto, falávamos sobre o álbum que Vanessa acabara de concluir. O CD – quinto de uma carreira fonográfica inaugurada em 2002 – está chegando às lojas e exibe um título que remete à atmosfera doce do café onde conversávamos: Bicicletas, Bolos e Outras Alegrias. Como de hábito, a artista o lança pela Sony. Dessa vez, porém, a maior gravadora do Brasil divide os custos (e os lucros) do projeto com o selo Jabuticaba, que pertence à própria intérprete. O trabalho emerge num momento de transição para Vanessa e sob grande expectativa. O disco de estúdio que o precedeu, Sim, de 2007, alcançou um sucesso notável e propagou os versos da mato-grossense mundo afora. É certo que ela já brilhara antes, mas não com tamanha intensidade. Pode-se afirmar que Sim a colocou à altura de nossas principais cantoras.�
Curiosamente, a mudança de patamar ainda a desnorteia, algo que o encontro daquela tarde e o da tarde seguinte, na Gávea, deixaram transparecer. Vanessa demonstra se sentir bem mais confortável diante dos que não a reconhecem. O status de celebridade aparenta preocupá-la ou mesmo assustá-la. Talvez por isso, para preservar a condição de “reles mortal”, a artista não se prive de alguns gestos simples – ações corriqueiras que diversas estrelas já não se concedem realizar. Exemplos? Comer um bolo imenso em público sem sucumbir à patrulha do açúcar. Ou tocar distraída no braço de um repórter enquanto lhe dá entrevista, como quem papeia com um amigo.
Guiga, Dri e Mateus
Há oito anos, quando gravou seu álbum de estreia, a mato-grossense despertou uma resposta de público modesta, mas satisfatória. Em compensação, rapidamente arrancou elogios dos colegas e da crítica. “Feliz do país que revela cantoras do naipe de Maria Rita e Vanessa da Mata”, festejou o jornalista Nelson Motta pouco tempo depois. De fato, a filha de Elis Regina e a filha de dona Sebastiana com seu Divinor – uma professora do ensino fundamental e um caminhoneiro que prosperou, tornando-se pecuarista – têm pelo menos uma característica em comum: ocupam um nicho de mercado que se convencionou chamar de MPB (Música Popular Brasileira) e onde também se abrigam Adriana Calcanhotto, Marisa Monte e Ana Carolina.
De modo geral, a denominação engloba todos os intérpretes nacionais que não se voltam prioritariamente para o sertanejo, o rock, o filão religioso, o pagode, o brega, o rap e os gêneros regionais, dos endiabrados forró e funk carioca à axé music. Estimam os historiadores que a sigla se disseminou a partir de 1965. Na época, abarcava os artistas jovens que sofriam a influência da sofisticada bossa nova e, ao mesmo tempo, abraçavam estilos identificados com as classes baixas, caso do samba de morro e das canções nordestinas. Edu Lobo, Chico Buarque e a própria Elis Regina integravam a turma. Mais tarde, as três consoantes se expandiram na direção dos tropicalistas (Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé) e seus herdeiros, que acolhiam tanto Luiz Gonzaga, Tom Jobim e a Portela como as guitarras dos roqueiros britânicos e norte-americanos. Atualmente, o termo se cristalizou como sinônimo de qualidade – uma chancela que distinguiria as canções “requintadas, duráveis” das “popularescas” ou “descartáveis”. Não à toa, há quem rejeite tal acepção e a classifique de preconceituosa.
Alheia aos rótulos, Vanessa segue produzindo um pop bastante peculiar e multifacetado, em que a sonoridade urbana do Primeiro Mundo convive com ritmos de países periféricos (o reggae jamaicano, a cumbia argentina) e do interior brasileiro (o xaxado, o caboclinho, a chula baiana, o maracatu, a catira). O inusitado é que a compositora jamais estudou música. Ou melhor: estudou, só que à maneira dela, sem partituras e sem tocar nada. Teve algumas aulas particulares de violão durante a adolescência, mas não chegou a dominá-lo – em parte, por causa de um déficit de atenção que também a prejudicou na escola: repetiu duas séries do antigo ginásio e não terminou o ensino médio. “Uma tarde, quando menina, passei pelo salão paroquial de Alto Garças, a cidadezinha onde nasci, e presenciei o ensaio de uma banda”, conta. “Entendi naquele dia o papel de cada instrumento.” Com 19 anos, depois de infinitas tentativas, desenvolveu um método próprio de composição, em que recorre apenas à voz. “Pego um gravador, cantarolo as melodias que invento e peço para um músico transcrevê-las.” �
Nas letras, seu ecletismo se reafirma. Ora a autora discorre sobre encontros e desencontros amorosos, ora lamenta as desigualdades sociais, o consumismo ou a destruição da natureza, ora evoca coisas e personagens de Alto Garças: as merendas de dona Vantina, os quitutes da avó Sinhá, uma bacia cheia de manga bourbon, Guiga, Dri, Mayanna, Duda, Mateus. Outra marca de Vanessa é abordar com bom humor questões que atormentam as mulheres. No disco novo, por exemplo, ironiza o onipresente medo feminino de engordar (em Fiu Fiu).
“Calculo que escrevi umas mil canções”, diz, ressalvando que “nem todas prestam”. Em tom de brincadeira, se declara “uma compositora obsessivo-compulsiva”. “Ela, às vezes, consegue criar versos tão densos que lembram os do poeta João Cabral de Melo Neto. No entanto, também se permite conceber estrofes muito singelas, muito espontâneas, que aludem à linguagem direta e sentimental da extinta revista Carícia. É uma poesia que praticamente não soa como poesia”, analisa o músico Chico César, amigo e padrinho artístico da cantora. Juntos, no fim da década de 1990, assinaram A Força que Nunca Seca. O paraibano apresentou a composição à baiana Maria Bethânia, que decidiu registrá-la, projetando pela primeira vez o nome de Vanessa. Na canção, segundo Chico, figuram os tais trechos à moda de João Cabral: “Já se pode ver ao longe/ A senhora com a lata na cabeça/ Equilibrando a lata vesga/ Mais do que o corpo dita”. O linguajar à revista Carícia apareceria em frases do tipo “Seus beijos são vermelhos/ Quase que me queimam/ Que meigos são seus olhos” (de Vermelho).
Com o tempo, navegando entre os dois polos, Vanessa emplacou seis músicas nas novelas da Rede Globo e atingiu a meta que só as divas logram alcançar: arregimentou admiradores de diferentes estratos sociais sem perder o aval da crítica. Hoje, frequenta FMs populares e de elite, protagoniza até 15 shows por mês em ginásios de cidades pequenas ou em casas nobres de São Paulo e do Rio de Janeiro, cerca-se de produtores refinados (Mario Caldato Jr., Kassin, Jacques Morelenbaum) e não se furta de compartilhar o palco com ídolos do povão, como Alcione.
Tamanha polivalência gerou números crescentes e vultosos para os padrões atuais. Vanessa da Mata, primeiro disco da cantora, vendeu 140 mil cópias em oito anos, de acordo com a Sony. Sim, o álbum de inéditas que antecede o novo trabalho, vendeu 350 mil em três. No total, descontando a pirataria, os fãs da intérprete consumiram 1 milhão de CDs e DVDs. Os de Adriana Calcanhotto e Ana Carolina, artistas que pertencem à mesma gravadora da mato-grossense, compraram respectivamente 2 e 3 milhões, mas ao longo de um período maior (a gaúcha iniciou a trajetória discográfica em 1990 e a mineira em 1999). Quando se considera a internet, o desempenho de Vanessa continua expressivo. Suas canções motivaram 260 mil downloads pagos e 2,5 milhões de streamings igualmente pagos.
O aumento da demanda em plataformas digitais ou não coincidiu com a presença ascendente da intérprete nas rádios. Os relatórios do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) comprovam o fenômeno. Em 2006, Ai, Ai, Ai.., escrita pela cantora e por Liminha, ocupou o terceiro lugar entre as dez músicas mais tocadas do país. A lista das top ten, até então, nunca incluíra Vanessa. Em 2008, Boa Sorte/Good Luck levou a artista para o primeiro lugar, seguida de Alicia Keys e Danni Carlos. O hit, composto com o norte-americano Ben Harper, está justamente no disco Sim, o campeão de vendas.
A parceria também impulsionou a carreira internacional da mato-grossense. “Passamos a fazer pelo menos duas turnês anuais fora do Brasil”, informa Leninha Brandão, empresária da cantora. Por enquanto, os shows acontecem principalmente na Europa, nos Estados Unidos, na Argentina e no Uruguai. Em 2011, devem se estender para Japão, Austrália, Canadá, Chile, Colômbia e México. �
A agenda lotada não impede que Vanessa se aventure por outras searas. Leitora de Pablo Neruda, Cecília Meireles, Manoel de Barros e Mia Couto, já redigiu seis capítulos de um futuro romance, embora não arrisque uma data de lançamento. Planeja, ainda, abrir uma casa de espetáculos no bairro paulistano de Pinheiros com dois sócios. “Se tudo der certo, vamos inaugurá-la até dezembro”, prevê.
Orgulho
No café do Jardim Botânico, a intérprete mordisca mais um pedaço de bolo. “Veja: me tornei realmente famosa em 2006, 2007. Foi quando minha imagem se espalhou de verdade. Antes, boa parcela do público conhecia minha voz e não o meu rosto. Lógico que sinto um carinho enorme pelos fãs. E pretendo, sim, continuar atingindo um número grande de pessoas. Mas, se o mundo de hoje permitisse, gostaria de fazer sucesso sem me mostrar demais. Numa situação ideal, minhas canções e meu canto se alastrariam, enquanto o resto permaneceria à sombra. Doideira, não?”
Ela lembra que recebeu ofertas para gravar o primeiro disco aos 21 anos. Naquela altura, já somava seis de profissão. Começou se apresentando em bares de Uberlândia (MG), onde viveu parte da adolescência. Saiu de Alto Garças agarrada numa mentira. O pai almejava que a filha cursasse medicina. A filha almejava cantar. Então… “Pai, só poderei enfrentar um vestibular tão difícil se estudar numa cidade melhorzinha.” Mudou para Uberlândia e, às escondidas, trocou a escola pelos microfones. Depois, resolveu se estabelecer em São Paulo. Arranjou uma vaga de modelo na agência Elite, estratégia que lhe garantiu dividir um apartamento de graça com outras meninas, e seguiu à procura de oportunidades artísticas. Participou de uma banda especializada em ritmos nordestinos e de grupos de reggae. Um dia, arrumou o telefone de Chico César, que despontava nacionalmente. Queria ajuda para produzir um “demo” (disco de demonstração).
“Ela me ligou e deixou mensagem na secretária eletrônica. Não respondi. Telefonou de novo, e de novo, e de novo”, relata o compositor. “Da última vez, cantarolou um recado: ‘Chiquinho, me atenda, por favor! Preciso muito encontrar você’. Pensei: ‘É da minha turma – louca! Merece um retorno’.” As portas finalmente se abriram e o “demo” veio à tona. Logo pipocaram os convites para a morena debutar na carreira fonográfica. “Não aceitei nenhum”, recorda. “Eu, que batalhara tanto, morri na praia. O motivo? Pavor de que um eventual sucesso me roubasse a privacidade.”
Em razão do conflito, a jovem que desejava aparecer sem aparecer acabou recorrendo à análise. Encarou o divã por um longo período, até que, com 26 anos, superou o bloqueio e gravou o álbum de estreia. O temor da notoriedade, porém, jamais a abandonou completamente. “Dois riscos da fama me assombram. Primeiro, virar ímã de doido, um alvo que atrai rancores, inveja, frustrações, carência e o julgamento dos outros. Depois, ceder à vaidade – aceitar que o orgulho me capture e embriague.” �
Para resguardar “a consciência do real”, não abdica de caminhar pelas ruas da Lagoa, bairro carioca onde mora, ou de pegar um táxi. Também busca se manter próxima de Felipe, Micael e Bianca, garotos de 9, 6 e 5 anos, que está adotando com o marido, o ator e fotógrafo Gero Pestalozzi. Já em relação à maluquice de alguns admiradores…
Naquela tarde de agosto, após sair do Jardim Botânico, Vanessa se dirige à região central do Rio. Lá, em um predinho charmoso, vai tirar fotos para a BRAVO!. Mal chega e desce do carro, um sujeito a aborda na calçada. “Beautiful girl! Você é uma mata de beleza! Não: você é uma floresta de beleza! Meu querubim!” A cantora ri, desarvorada, e entra no hall do edifício. O homem não recua. Cola o rosto na janelinha da porta e continua gritando: “Beautiful girl!” Cerca de três horas depois, Vanessa deixa o prédio. O camarada retoma a perseguição: “Me dê um autógrafo, please! Você é sobrenatural!” Estica-lhe uma folha amarrotada de papel. A artista a apanha e pergunta o nome do desconhecido. Ele, exultante, dispara: “Beautiful girl, I’m Broder Creize (algo como Irmão Malucão, em inglês macarrônico). Bro-der Crei-ze, a seu dispor!”
(revista Bravo!)
Publicado sexta-feira, 1 de outubro de 2010 às 8:35 pm e categorizado como Perfis. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.