“A perversidade é o único desporto que pratico. Com regularidade. Um exemplo: alguém me apresenta uma celebridade, dessas que são conhecidas por serem conhecidas, e eu finjo que nunca ouvi falar. ‘Como é mesmo o seu nome?’ O personagem em causa repete o nome, como se tivesse escutado uma heresia. O rosto não mente: a estupefação profunda; o naufrágio iminente; por vezes, a revolta silenciosa, dolorosa; mas, em todos os casos, uma velha insegurança, que vem das profundezas da alma. Às vezes, quando estou em forma, subo a parada. A pessoa repete o nome. E eu, propositadamente, troco a profissão. Se é um cantor, digo que já o vi numa novela. Se é um ator, confundo com um cantor. É o golpe final na vaidade da criatura. A minha perversidade não é um traço de caráter. De mau-caráter. É, quando muito, uma experiência sociológica: as pessoas podem ter todos os aplausos do mundo; podem ter legiões de assessores, adoradores e puros escravos; mas se não existe uma personalidade segura e forte por detrás da máscara, qualquer pequena pedra na engrenagem faz tremer e descarrilar a máquina. Eu sou a pequena pedra.”
Trecho do artigo Ligados à máquina, de João Pereira Coutinho