Nelson Xavier: “A doença me trouxe a noção da finitude, e a arte, a da transcendência”
O ator Nelson Xavier, que volta a representar Chico Xavier no cinema, conta como a experiência de interpretar o médium o fez abandonar o ateísmo e apostar em um tratamento espiritual contra o câncer
Em cinco horas de entrevista, Nelson Xavier chorou oito vezes – um choro que se manifestou sempre do mesmo jeito. Primeiro, lhe embargava a voz e contraía fortemente o rosto. Depois de uns segundos, desembocava em poucas lágrimas e quase nenhum ruído. Nelson, então, interrompia o raciocínio. Deixava a onda passar, tirava os óculos, enxugava os olhos e prosseguia. A emoção despontava apenas quando o ator de 69 anos, outrora ateu, discorria sobre fé, Jesus Cristo ou o médium de Minas Gerais que emprestou o nome (e a biografia) a um dos sucessos cinematográficos de 2010. Chico Xavier, o filme, se baseia num livro-reportagem do jornalista Marcel Souto Maior e levou 3,4 milhões de espectadores às salas do país. Nelson interpretava o líder espírita, que viveu entre 1910 e 2002. Agora, volta a representá-lo no longa As Mães de Chico Xavier, inspirado em Por Trás do Véu de Ísis, outro livro-reportagem de Souto Maior. A produção, dirigida pelos cearenses Halder Gomes e Glauber Filho, narra a história de três mulheres que buscam estabelecer contato com mortos queridos. Do elenco, fazem parte Caio Blat, Vanessa Gerbelli e Tainá Müller. A estreia deve ocorrer em 1º de abril.
De passagem por São Paulo, Nelson – que mora no Rio de Janeiro – recebeu BRAVO! para falar dos dois filmes. A seguir, um resumo da conversa. BRAVO! – Você não teve receio de se repetir quando decidiu encenar Chico Xavier novamente? Ou de parecer oportunista por reeditar um personagem que alcançou tamanho sucesso há menos de um ano? Nelson Xavier – Na verdade, relutei bastante até aceitar o convite. Tão logo me procuraram, pedi desculpas e recusei a proposta. Expliquei que não me sentiria confortável em interpretar o médium outra vez. Os dois pontos que você levanta me preocupavam. Temia o risco de ficar demasiadamente marcado pelo papel e, acima de tudo, não desejava me aproveitar do Chico, explorá-lo, usufruir em excesso do carisma e da imagem positiva dele. Mas, conversando melhor com os diretores do longa, percebi que havia espaço para tentar um caminho diferente, que não se tratava de reciclar uma fórmula já testada. O Chico de agora lembra apenas vagamente o que construí no trabalho anterior. Está bem mais idoso, mais alquebrado, quase trôpego. Encontra-se no fim da vida e precisa de amparo. Sem contar que não é o protagonista da trama, como ocorria antes. Em 1982, com a minissérie Lampião e Maria Bonita, da Rede Globo, você atraiu elogios do público e da crítica, que gostaram de vê-lo na pele do cangaceiro. Noto uma coincidência entre o que lhe aconteceu àquela época e o que se passa hoje: você ganhou destaque representando homens que realmente existiram, ainda que agissem de modo oposto – Lampião como o arauto da violência e Chico como o mensageiro da paz. De fato, ao longo de minha carreira, encenei apenas dois personagens não fictícios, justamente os que você menciona, e ambos cativaram os espectadores. Por quê? Talvez porque um e outro, apesar de muito desiguais, comungassem duas características admiráveis: ocuparam posições de liderança e ousaram levar às últimas consequências aquilo em que acreditavam. Curiosamente, demorei para me dar conta de tais similaridades. Quando resolvi interpretar o Lampião e o Chico, mal os conhecia. Li em diversas reportagens que sua mãe professava o espiritismo. Mesmo assim, você praticamente desconhecia o médium? Exato. Não lhe dava a menor bola. Tenho uma origem simples. Nasci na Vila Prudente (bairro paulistano) e sou filho único de um caiçara com uma jovem de ascendência italiana. Ele, que se sustentava retocando fotografias, costumava escrever poemas. Bom de lábia, dedicou versos à minha mãe – uma garota linda, sardentinha, de olhos claros – e a seduziu. Teve de se casar sob pressão, numa delegacia, após engravidá-la. O relacionamento, é óbvio, não vingou. Meu pai sumiu e deixou minha mãe sem dinheiro e com o fardo de educar sozinha uma criança ainda pequena. Nunca o vi. Mas lembro que, um dia, meu avô paterno, um mulato alto, magro, elegante, me raptou. Apareceu de repente e me carregou para Santos, no litoral, onde morava. Foi um drama! Minha mãe se desdobrou até conseguir me resgatar. De formação católica, ela abraçou o espiritismo depois de adulta, não sei dizer propriamente como. Só sei que, certa vez, participamos juntos de uma sessão. Ali, presenciei a materialização de um espírito. Não me esqueço do episódio. Estávamos no escuro quando avistei uma luzinha branca, uma fosforescência. Era a entidade que baixava e, pela boca do médium, pronunciava frases com uma voz sibilada. Embora menino, assisti à cena traquilamente, sem sobressaltos. Não gelou de medo? De jeito nenhum! Aproveitei a chance e perguntei uma porção de coisas para a alma que nos visitava. Sempre encarei naturalmente o universo dos espíritas. Por influência materna, não duvidava – e não duvido – daquilo tudo. Jamais me declarei incrédulo em relação à capacidade humana de dialogar com os mortos. Apenas achava uma perda de tempo me escorar no além. “Para quê?”, indagava à minha mãe. “Como os espíritos poderão nos ajudar? Não me interessa o mundo de lá. Interessa-me o daqui. Somos nós os únicos responsáveis por solucionar os problemas terrenos.” Já durante a infância e a adolescência, me opunha às crenças dela – o que a entristecia muitíssimo. Os conflitos se agravaram quando, à beira dos anos 60, ingressei no Teatro de Arena, em São Paulo, e iniciei a carreira de ator. O pessoal do grupo, sobretudo o Vianninha (Oduvaldo Vianna Filho, dramaturgo), me deu alguns livros marxistas. Em poucos meses, os ideais do socialismo me conquistaram. Como tantos jovens daquele período, confiava que, cedo ou tarde, iríamos revolucionar o país e implantar um regime mais solidário, mais justo. Che Guevara e Fidel Castro se tornaram meus heróis. Numa turnê nacional com o Arena, descobri o Movimento de Cultura Popular (MCP) em Recife. O coletivo de intelectuais, estudantes e artistas se dedicava, entre outras atividades político-educativas, à alfabetização de adultos. A iniciativa logo me fascinou, e decidi me transferir para Pernambuco. Enquanto trabalhava no Movimento, promovendo seminários de dramaturgia e montando uma peça sobre um levante camponês (Julgamento em Novo Sol), virei membro do Partido Comunista Brasileiro. Declarava-me ateu, claro, e mantinha distância cada vez maior das convicções espirituais de minha mãe. Por décadas, permaneci longe da seara religiosa. Até que, em 2004, caí num abismo horroroso… Abismo? Sim, o chão se abriu sob meus pés. Recebi a notícia de um câncer na próstata. Sentia umas dores estranhas, consultei o urologista e… Fiquei atônito. Eu, com câncer?! Em razão de uma onipotência tola, um atrevimento absurdo, sempre me considerei imune às doenças graves e não realizava exames preventivos. Desde garoto, aliás, cultivava a certeza de que atingiria os 100 anos. Imagine, então, o que aquele diagnóstico significou. A finitude se impôs de maneira inequívoca. As perspectivas de cura pareciam remotas. “Nelson deve durar uns seis meses”, previu o urologista à minha mulher. Perdi o rumo. Só experimentara vertigem semelhante em março de 1964. Quando o governo de João Goulart se esfacelou, pensei que desmoronaria junto. O golpe militar me aniquilou. Bateu de frente com o MCP e triturou nossos sonhos de transformar a sociedade. Para me recuperar do baque, enfrentei nove anos de psicanálise. Hoje talvez soe esquisito comparar o impacto de uma doença séria à derrocada de um projeto coletivo. Mas, naquele momento, a vida da gente se confundia com o voluntariado. Tínhamos a utopia por horizonte e, não nego, um bocado de ingenuidade. Tanto que, em 1966 ou 1967, a ânsia de expulsar os milicos do poder me empurrou para situações patéticas. Uma ocasião, por exemplo, me flagrei treinando guerrilha num apartamento da zona sul carioca. Rastejava pelo carpete como se me encontrasse em plena selva. Foi meu único flerte com a luta armada… A descoberta do câncer o aproximou da religião? Mais ou menos. Tão logo soube do diagnóstico, comecei o tratamento alopático. Minha mulher (a cantora Via Negromonte), adepta da meditação transcendental e da ioga tântrica, sugeria que aliássemos a terapia convencional às espirituais. Amigos e conhecidos assinavam embaixo. Eu resistia: “Por um tempão, me proclamei materialista e, agora que me vejo em apuros, vou pedir socorro à metafísica? É muita falta de caráter!” Uma hora, porém, entreguei os pontos. Busquei uma instituição filantrópica do Rio de Janeiro e me coloquei diante de um médium. Ele incorporava o espírito de um francês, que me inquiriu: “Você acredita em Cristo?” (chora) Respondi que sim, apesar de estar mentindo. Sempre admirei Cristo como personagem histórico, precursor das bandeiras socialistas de igualdade e solidariedade, mas não o enxergava como Filho de Deus. “Onde vou arranjar fé nessa altura do campeonato?”, perguntava-me em silêncio (chora novamente). Dizendo-se médico, o francês me receitou um tratamento curto, que incluía uma cirurgia espiritual. Cumpri as orientações mesmo sem crer profundamente naquilo e voltei à rotina. Uns anos depois, recebi em casa As Vidas de Chico Xavier, a biografia redigida pelo Marcel Souto Maior. Eu não conhecia o autor. Ele, entretanto, me mandou o livro com um bilhete: “Se a história do Chico virar filme, gostaria que você o interpretasse”. Usou o condicional porque não existia, naquele instante, nenhum indício de que a publicação alcançaria as telas. Estimulado pelo bilhete, resolvi ler a reportagem e vivenciei um fenômeno intrigante. À medida que cruzava as páginas, me descobria inundado por uma emoção imensurável, que me fazia chorar, exatamente como acabou de acontecer. Sou um cara sensível, mas nunca provara nada tão intenso. Tudo que o livro narrava, em especial a infância de Chico, me comovia com uma força avassaladora. Era uma sensação ruim? Pelo contrário! Era muito boa. O choro funcionava como uma catarse. A biografia me impressionou tanto que, mal pipocaram notinhas na imprensa sobre a adaptação cinematográfica, telefonei para o Daniel Filho, diretor do futuro Chico Xavier, e expressei o interesse de representar o protagonista. Quando ganhei o papel, decidi visitar Uberaba e Pedro Leopoldo, cidades de Minas Gerais onde o médium atuou. Pretendia conhecer seus parentes, colaboradores e amigos. Bastou iniciar o percurso e a tal emoção me fisgou de novo. Chorei durante a viagem inteira. Não podia ouvir relatos sobre o Chico ou tocar nos objetos dele que as lágrimas irrompiam. Veio, então, o primeiro dia de filmagem. Na hora em que enveredei pelo set, aquela emoção me invadiu outra vez. Respirei fundo e, de olhos cerrados, supliquei baixinho: “Não me abandone, por favor, mas também não me deixe perder o controle”. Fui atendido: terminei a cena sem chorar, ainda que hipersensibilizado. O mesmo se deu nos dias seguintes. Eu chegava às filmagens e negociava com a emoção. Costumava chamá-la de “ele”. Como assim? A emoção simbolizava alguém?
Não apenas simbolizava. Fui concluindo ao longo do processo que Chico de fato se manifestava por meio da emoção. Ele é quem a trazia. Tenho certeza! Em décadas de profissão, sempre utilizei um método de interpretação que deriva dos ensinamentos de Constantin Stanislavski (ator e pedagogo russo, morto há 73 anos): garimpo dentro de mim as emoções que caracterizam os personagens e as empresto a eles. No caso do Chico, aconteceu o oposto. Eu não procurei a emoção interiormente. A emoção brotou de fora e me contaminou. O fenômeno se passou tanto nas filmagens do primeiro longa quanto nas do segundo, embora com menos intensidade. Você está contando que viveu uma espécie de transe? Não, não houve transe. Não perdi a consciência nem recebi o espírito do Chico. Não sou médium. O que contei é que a emoção partiu do Chico. Ele, surpreendentemente, a entregou para mim. O motivo? Não sei. Talvez desejasse me ver no papel… Quando li a biografia dele e visitei as cidades de Minas, me deparei com um santo, um sujeito que exerceu o altruísmo de maneira extraordinária. “Amai-vos uns aos outros.” O Chico amou, compreende? Ele amou! (chora) Pôs em prática as lições de Cristo e, involuntariamente, os preceitos mais nobres do socialismo. Provou que a fraternidade é possível e que não precisamos recorrer à violência para semear um mundo menos desigual. Propôs uma revolução pacífica. Conseguiu mostrar que pode existir uma síntese entre as crenças de minha mãe e tudo que busquei no Arena, no MCP, no Partido Comunista… (chora) Você se tornou espírita depois do primeiro filme? Prefiro afirmar que me espiritualizei. Continuo socialista, mas passei a crer numa força sobrenatural. Só não declaro que acredito em Deus porque a palavra Deus é muito gasta. Recentemente, aderi à meditação e, sem abdicar das terapêuticas convencionais, retomei o tratamento alternativo contra o câncer, agora com uma médium. A doença está sob controle, de tal modo que, numa das sessões, os espíritos me confirmaram: atingirei, sim, os 100 anos. Se tivesse que resumir nossa prolongada conversa, diria: o câncer me trouxe a ideia da finitude e a arte me presenteou com o Chico. Ou melhor: me deu a noção da transcendência.
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terça-feira, 1 de março de 2011 às 11:07 pm e categorizado como Entrevistas.
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Nelson Xavier: “A doença me trouxe a noção da finitude, e a arte, a da transcendência”
O ator Nelson Xavier, que volta a representar Chico Xavier no cinema, conta como a experiência de interpretar o médium o fez abandonar o ateísmo e apostar em um tratamento espiritual contra o câncer
Em cinco horas de entrevista, Nelson Xavier chorou oito vezes – um choro que se manifestou sempre do mesmo jeito. Primeiro, lhe embargava a voz e contraía fortemente o rosto. Depois de uns segundos, desembocava em poucas lágrimas e quase nenhum ruído. Nelson, então, interrompia o raciocínio. Deixava a onda passar, tirava os óculos, enxugava os olhos e prosseguia. A emoção despontava apenas quando o ator de 69 anos, outrora ateu, discorria sobre fé, Jesus Cristo ou o médium de Minas Gerais que emprestou o nome (e a biografia) a um dos sucessos cinematográficos de 2010.
Chico Xavier, o filme, se baseia num livro-reportagem do jornalista Marcel Souto Maior e levou 3,4 milhões de espectadores às salas do país. Nelson interpretava o líder espírita, que viveu entre 1910 e 2002. Agora, volta a representá-lo no longa As Mães de Chico Xavier, inspirado em Por Trás do Véu de Ísis, outro livro-reportagem de Souto Maior. A produção, dirigida pelos cearenses Halder Gomes e Glauber Filho, narra a história de três mulheres que buscam estabelecer contato com mortos queridos. Do elenco, fazem parte Caio Blat, Vanessa Gerbelli e Tainá Müller. A estreia deve ocorrer em 1º de abril.
De passagem por São Paulo, Nelson – que mora no Rio de Janeiro – recebeu BRAVO! para falar dos dois filmes. A seguir, um resumo da conversa.
BRAVO! – Você não teve receio de se repetir quando decidiu encenar Chico Xavier novamente? Ou de parecer oportunista por reeditar um personagem que alcançou tamanho sucesso há menos de um ano?
Nelson Xavier – Na verdade, relutei bastante até aceitar o convite. Tão logo me procuraram, pedi desculpas e recusei a proposta. Expliquei que não me sentiria confortável em interpretar o médium outra vez. Os dois pontos que você levanta me preocupavam. Temia o risco de ficar demasiadamente marcado pelo papel e, acima de tudo, não desejava me aproveitar do Chico, explorá-lo, usufruir em excesso do carisma e da imagem positiva dele. Mas, conversando melhor com os diretores do longa, percebi que havia espaço para tentar um caminho diferente, que não se tratava de reciclar uma fórmula já testada. O Chico de agora lembra apenas vagamente o que construí no trabalho anterior. Está bem mais idoso, mais alquebrado, quase trôpego. Encontra-se no fim da vida e precisa de amparo. Sem contar que não é o protagonista da trama, como ocorria antes.
Em 1982, com a minissérie Lampião e Maria Bonita, da Rede Globo, você atraiu elogios do público e da crítica, que gostaram de vê-lo na pele do cangaceiro. Noto uma coincidência entre o que lhe aconteceu àquela época e o que se passa hoje: você ganhou destaque representando homens que realmente existiram, ainda que agissem de modo oposto – Lampião como o arauto da violência e Chico como o mensageiro da paz.
De fato, ao longo de minha carreira, encenei apenas dois personagens não fictícios, justamente os que você menciona, e ambos cativaram os espectadores. Por quê? Talvez porque um e outro, apesar de muito desiguais, comungassem duas características admiráveis: ocuparam posições de liderança e ousaram levar às últimas consequências aquilo em que acreditavam. Curiosamente, demorei para me dar conta de tais similaridades. Quando resolvi interpretar o Lampião e o Chico, mal os conhecia.
Li em diversas reportagens que sua mãe professava o espiritismo. Mesmo assim, você praticamente desconhecia o médium?
Exato. Não lhe dava a menor bola. Tenho uma origem simples. Nasci na Vila Prudente (bairro paulistano) e sou filho único de um caiçara com uma jovem de ascendência italiana. Ele, que se sustentava retocando fotografias, costumava escrever poemas. Bom de lábia, dedicou versos à minha mãe – uma garota linda, sardentinha, de olhos claros – e a seduziu. Teve de se casar sob pressão, numa delegacia, após engravidá-la. O relacionamento, é óbvio, não vingou. Meu pai sumiu e deixou minha mãe sem dinheiro e com o fardo de educar sozinha uma criança ainda pequena. Nunca o vi. Mas lembro que, um dia, meu avô paterno, um mulato alto, magro, elegante, me raptou. Apareceu de repente e me carregou para Santos, no litoral, onde morava. Foi um drama! Minha mãe se desdobrou até conseguir me resgatar. De formação católica, ela abraçou o espiritismo depois de adulta, não sei dizer propriamente como. Só sei que, certa vez, participamos juntos de uma sessão. Ali, presenciei a materialização de um espírito. Não me esqueço do episódio. Estávamos no escuro quando avistei uma luzinha branca, uma fosforescência. Era a entidade que baixava e, pela boca do médium, pronunciava frases com uma voz sibilada. Embora menino, assisti à cena traquilamente, sem sobressaltos.
Não gelou de medo?
De jeito nenhum! Aproveitei a chance e perguntei uma porção de coisas para a alma que nos visitava. Sempre encarei naturalmente o universo dos espíritas. Por influência materna, não duvidava – e não duvido – daquilo tudo. Jamais me declarei incrédulo em relação à capacidade humana de dialogar com os mortos. Apenas achava uma perda de tempo me escorar no além. “Para quê?”, indagava à minha mãe. “Como os espíritos poderão nos ajudar? Não me interessa o mundo de lá. Interessa-me o daqui. Somos nós os únicos responsáveis por solucionar os problemas terrenos.” Já durante a infância e a adolescência, me opunha às crenças dela – o que a entristecia muitíssimo. Os conflitos se agravaram quando, à beira dos anos 60, ingressei no Teatro de Arena, em São Paulo, e iniciei a carreira de ator. O pessoal do grupo, sobretudo o Vianninha (Oduvaldo Vianna Filho, dramaturgo), me deu alguns livros marxistas. Em poucos meses, os ideais do socialismo me conquistaram. Como tantos jovens daquele período, confiava que, cedo ou tarde, iríamos revolucionar o país e implantar um regime mais solidário, mais justo. Che Guevara e Fidel Castro se tornaram meus heróis. Numa turnê nacional com o Arena, descobri o Movimento de Cultura Popular (MCP) em Recife. O coletivo de intelectuais, estudantes e artistas se dedicava, entre outras atividades político-educativas, à alfabetização de adultos. A iniciativa logo me fascinou, e decidi me transferir para Pernambuco. Enquanto trabalhava no Movimento, promovendo seminários de dramaturgia e montando uma peça sobre um levante camponês (Julgamento em Novo Sol), virei membro do Partido Comunista Brasileiro. Declarava-me ateu, claro, e mantinha distância cada vez maior das convicções espirituais de minha mãe. Por décadas, permaneci longe da seara religiosa. Até que, em 2004, caí num abismo horroroso…
Abismo?
Sim, o chão se abriu sob meus pés. Recebi a notícia de um câncer na próstata. Sentia umas dores estranhas, consultei o urologista e… Fiquei atônito. Eu, com câncer?! Em razão de uma onipotência tola, um atrevimento absurdo, sempre me considerei imune às doenças graves e não realizava exames preventivos. Desde garoto, aliás, cultivava a certeza de que atingiria os 100 anos. Imagine, então, o que aquele diagnóstico significou. A finitude se impôs de maneira inequívoca. As perspectivas de cura pareciam remotas. “Nelson deve durar uns seis meses”, previu o urologista à minha mulher. Perdi o rumo. Só experimentara vertigem semelhante em março de 1964. Quando o governo de João Goulart se esfacelou, pensei que desmoronaria junto. O golpe militar me aniquilou. Bateu de frente com o MCP e triturou nossos sonhos de transformar a sociedade. Para me recuperar do baque, enfrentei nove anos de psicanálise. Hoje talvez soe esquisito comparar o impacto de uma doença séria à derrocada de um projeto coletivo. Mas, naquele momento, a vida da gente se confundia com o voluntariado. Tínhamos a utopia por horizonte e, não nego, um bocado de ingenuidade. Tanto que, em 1966 ou 1967, a ânsia de expulsar os milicos do poder me empurrou para situações patéticas. Uma ocasião, por exemplo, me flagrei treinando guerrilha num apartamento da zona sul carioca. Rastejava pelo carpete como se me encontrasse em plena selva. Foi meu único flerte com a luta armada…
A descoberta do câncer o aproximou da religião?
Mais ou menos. Tão logo soube do diagnóstico, comecei o tratamento alopático. Minha mulher (a cantora Via Negromonte), adepta da meditação transcendental e da ioga tântrica, sugeria que aliássemos a terapia convencional às espirituais. Amigos e conhecidos assinavam embaixo. Eu resistia: “Por um tempão, me proclamei materialista e, agora que me vejo em apuros, vou pedir socorro à metafísica? É muita falta de caráter!” Uma hora, porém, entreguei os pontos. Busquei uma instituição filantrópica do Rio de Janeiro e me coloquei diante de um médium. Ele incorporava o espírito de um francês, que me inquiriu: “Você acredita em Cristo?” (chora) Respondi que sim, apesar de estar mentindo. Sempre admirei Cristo como personagem histórico, precursor das bandeiras socialistas de igualdade e solidariedade, mas não o enxergava como Filho de Deus. “Onde vou arranjar fé nessa altura do campeonato?”, perguntava-me em silêncio (chora novamente). Dizendo-se médico, o francês me receitou um tratamento curto, que incluía uma cirurgia espiritual. Cumpri as orientações mesmo sem crer profundamente naquilo e voltei à rotina. Uns anos depois, recebi em casa As Vidas de Chico Xavier, a biografia redigida pelo Marcel Souto Maior. Eu não conhecia o autor. Ele, entretanto, me mandou o livro com um bilhete: “Se a história do Chico virar filme, gostaria que você o interpretasse”. Usou o condicional porque não existia, naquele instante, nenhum indício de que a publicação alcançaria as telas. Estimulado pelo bilhete, resolvi ler a reportagem e vivenciei um fenômeno intrigante. À medida que cruzava as páginas, me descobria inundado por uma emoção imensurável, que me fazia chorar, exatamente como acabou de acontecer. Sou um cara sensível, mas nunca provara nada tão intenso. Tudo que o livro narrava, em especial a infância de Chico, me comovia com uma força avassaladora.
Era uma sensação ruim?
Pelo contrário! Era muito boa. O choro funcionava como uma catarse. A biografia me impressionou tanto que, mal pipocaram notinhas na imprensa sobre a adaptação cinematográfica, telefonei para o Daniel Filho, diretor do futuro Chico Xavier, e expressei o interesse de representar o protagonista. Quando ganhei o papel, decidi visitar Uberaba e Pedro Leopoldo, cidades de Minas Gerais onde o médium atuou. Pretendia conhecer seus parentes, colaboradores e amigos. Bastou iniciar o percurso e a tal emoção me fisgou de novo. Chorei durante a viagem inteira. Não podia ouvir relatos sobre o Chico ou tocar nos objetos dele que as lágrimas irrompiam. Veio, então, o primeiro dia de filmagem. Na hora em que enveredei pelo set, aquela emoção me invadiu outra vez. Respirei fundo e, de olhos cerrados, supliquei baixinho: “Não me abandone, por favor, mas também não me deixe perder o controle”. Fui atendido: terminei a cena sem chorar, ainda que hipersensibilizado. O mesmo se deu nos dias seguintes. Eu chegava às filmagens e negociava com a emoção. Costumava chamá-la de “ele”.
Como assim? A emoção simbolizava alguém?
Não apenas simbolizava. Fui concluindo ao longo do processo que Chico de fato se manifestava por meio da emoção. Ele é quem a trazia. Tenho certeza! Em décadas de profissão, sempre utilizei um método de interpretação que deriva dos ensinamentos de Constantin Stanislavski (ator e pedagogo russo, morto há 73 anos): garimpo dentro de mim as emoções que caracterizam os personagens e as empresto a eles. No caso do Chico, aconteceu o oposto. Eu não procurei a emoção interiormente. A emoção brotou de fora e me contaminou. O fenômeno se passou tanto nas filmagens do primeiro longa quanto nas do segundo, embora com menos intensidade.
Você está contando que viveu uma espécie de transe?
Não, não houve transe. Não perdi a consciência nem recebi o espírito do Chico. Não sou médium. O que contei é que a emoção partiu do Chico. Ele, surpreendentemente, a entregou para mim. O motivo? Não sei. Talvez desejasse me ver no papel… Quando li a biografia dele e visitei as cidades de Minas, me deparei com um santo, um sujeito que exerceu o altruísmo de maneira extraordinária. “Amai-vos uns aos outros.” O Chico amou, compreende? Ele amou! (chora) Pôs em prática as lições de Cristo e, involuntariamente, os preceitos mais nobres do socialismo. Provou que a fraternidade é possível e que não precisamos recorrer à violência para semear um mundo menos desigual. Propôs uma revolução pacífica. Conseguiu mostrar que pode existir uma síntese entre as crenças de minha mãe e tudo que busquei no Arena, no MCP, no Partido Comunista… (chora)
Você se tornou espírita depois do primeiro filme?
Prefiro afirmar que me espiritualizei. Continuo socialista, mas passei a crer numa força sobrenatural. Só não declaro que acredito em Deus porque a palavra Deus é muito gasta. Recentemente, aderi à meditação e, sem abdicar das terapêuticas convencionais, retomei o tratamento alternativo contra o câncer, agora com uma médium. A doença está sob controle, de tal modo que, numa das sessões, os espíritos me confirmaram: atingirei, sim, os 100 anos. Se tivesse que resumir nossa prolongada conversa, diria: o câncer me trouxe a ideia da finitude e a arte me presenteou com o Chico. Ou melhor: me deu a noção da transcendência.
Publicado terça-feira, 1 de março de 2011 às 11:07 pm e categorizado como Entrevistas. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.