“A tecnologia (…) busca substituir um mundo natural indiferente a nossos desejos – um mundo de furacões e dificuldades e corações partíveis, um mundo de resistência – por outro mundo que responda tão bem a nossos desejos a ponto de ser, com efeito, uma mera extensão de nós. O mundo do tecnoconsumismo é, portanto, incomodado pelo amor verdadeiro, restando-lhe como única escolha responder perturbando o amor. Sua primeira linha de defesa é transformar seu inimigo em commodity. Todos saberão citar seu favorito entre os nauseabundos exemplos da mercantilização do amor. Eu mencionaria a indústria do casamento, os comerciais de TV que mostram lindas criancinhas e também a prática de oferecer automóveis como presente de Natal, e a particularmente grotesca equação que compara as joias com diamantes à devoção eterna. A mensagem, em cada um dos casos, é bastante clara: se você ama alguém, compre alguma coisa. Um fenômeno relacionado a esse é a transformação do verbo ‘curtir’ (‘like’, em inglês) que, graças ao Facebook, deixa de ser um estado de espírito e passa a ser um ato que desempenhamos com o mouse – deixa de ser um sentimento para virar uma opção de consumo. E curtir é, no geral, o substituto que a cultura comercial oferece para o ato de amar. (…)
Ocorre que a tentativa de ser perfeitamente curtível é incompatível com os relacionamentos amorosos. Mais cedo ou mais tarde, por exemplo, você se verá numa briga horrível, aos berros, e ouvirá saindo de sua boca palavras que você mesmo não curte nem um pouco, coisas que estilhaçam sua autoimagem de pessoa justa, gentil, bacana, atraente, controlada, divertida e curtível. Alguma coisa mais real do que a curtibilidade surgiu de você e de repente você se vê levando uma vida real. Subitamente existe uma escolha de verdade a ser feita – não uma falsa escolha de consumidor entre BlackBerry e iPhone, e sim uma pergunta: será que eu amo esta pessoa? E, para o outro, será que esta pessoa me ama? Não existe a possibilidade de curtir cada partícula da personalidade de uma pessoa real. É por isso que um mundo de curtição acaba se revelando uma mentira. Mas é possível pensar na ideia de amar cada partícula de uma determinada pessoa. E é por isso que o amor representa tamanha ameaça existencial à ordem tecnoconsumista: ele denuncia a mentira.”
Trecho do artigo Curtir é covardia, de Jonathan Franzen
Publicado
quarta-feira, 15 de junho de 2011 às 3:31 pm e categorizado como Blog.
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Quem só deseja curtir nunca amará?
“A tecnologia (…) busca substituir um mundo natural indiferente a nossos desejos – um mundo de furacões e dificuldades e corações partíveis, um mundo de resistência – por outro mundo que responda tão bem a nossos desejos a ponto de ser, com efeito, uma mera extensão de nós. O mundo do tecnoconsumismo é, portanto, incomodado pelo amor verdadeiro, restando-lhe como única escolha responder perturbando o amor. Sua primeira linha de defesa é transformar seu inimigo em commodity. Todos saberão citar seu favorito entre os nauseabundos exemplos da mercantilização do amor. Eu mencionaria a indústria do casamento, os comerciais de TV que mostram lindas criancinhas e também a prática de oferecer automóveis como presente de Natal, e a particularmente grotesca equação que compara as joias com diamantes à devoção eterna. A mensagem, em cada um dos casos, é bastante clara: se você ama alguém, compre alguma coisa. Um fenômeno relacionado a esse é a transformação do verbo ‘curtir’ (‘like’, em inglês) que, graças ao Facebook, deixa de ser um estado de espírito e passa a ser um ato que desempenhamos com o mouse – deixa de ser um sentimento para virar uma opção de consumo. E curtir é, no geral, o substituto que a cultura comercial oferece para o ato de amar. (…)
Ocorre que a tentativa de ser perfeitamente curtível é incompatível com os relacionamentos amorosos. Mais cedo ou mais tarde, por exemplo, você se verá numa briga horrível, aos berros, e ouvirá saindo de sua boca palavras que você mesmo não curte nem um pouco, coisas que estilhaçam sua autoimagem de pessoa justa, gentil, bacana, atraente, controlada, divertida e curtível. Alguma coisa mais real do que a curtibilidade surgiu de você e de repente você se vê levando uma vida real. Subitamente existe uma escolha de verdade a ser feita – não uma falsa escolha de consumidor entre BlackBerry e iPhone, e sim uma pergunta: será que eu amo esta pessoa? E, para o outro, será que esta pessoa me ama? Não existe a possibilidade de curtir cada partícula da personalidade de uma pessoa real. É por isso que um mundo de curtição acaba se revelando uma mentira. Mas é possível pensar na ideia de amar cada partícula de uma determinada pessoa. E é por isso que o amor representa tamanha ameaça existencial à ordem tecnoconsumista: ele denuncia a mentira.”
Trecho do artigo Curtir é covardia, de Jonathan Franzen
Publicado quarta-feira, 15 de junho de 2011 às 3:31 pm e categorizado como Blog. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.