Mãe e filho, os dois fizeram o colegial juntos numa escola pública de São Paulo. Vinte anos depois, ela dirige um café filosófico na periferia e ele é o rapper Criolo, autor de um dos melhores discos de 2011
– Tive uma ideia! Por que você não se matricula também?
– Eu?! Ficou maluco, Klebinho?
– Maluco nada! O que custa tentar?
– Bobagem… A moça não vai nem me ouvir.
Ouviu.
O episódio, raro, se deu em janeiro de 1990. O garoto de 14 anos e a mãe, de 39, chegaram cedo à Escola Estadual Professora Esther Garcia, no Grajaú, distrito pobre e muito populoso da zona sul de São Paulo.
– Queria uma vaga para o Kleber…, arriscou a cearense Maria Vilani Cavalcante Gomes, dona de casa que dividia a criação dos cinco filhos com o marido, Cleon, metalúrgico igualmente oriundo de Fortaleza.
Enquanto a secretária preenchia os papéis da matrícula, o menino puxou da cartola a insólita sugestão. Desde pequeno, escutava falar que Maria não pudera estudar quando criança e se alfabetizara praticamente sozinha. Sabia, ainda, que a mãe adorava ler e que, adulta, se esforçou para terminar o Curso de Madureza Ginasial, precursor dos atuais supletivos.
– Vamos fazer o colegial juntos!, insistiu o rapazinho.
A secretária, tão espantada quanto Maria, acabou acolhendo a ideia e a levou à direção da escola, que não impôs nenhum obstáculo. Mãe e filho completaram, assim, o 2o grau. Frequentavam as aulas noturnas, compartilhando sempre a mesma classe. Em dezembro de 1992, se formaram – com baile, canudo e beca.
Hoje, “séculos depois”, como ambos costumam dizer, não restam dúvidas de que aqueles três anos se tornaram um divisor de águas para a dupla. Maria pegou gosto pelos estudos e logo ingressou no ensino superior. Optou por filosofia. Tirou o diploma, transformou-se em professora e, mais tarde, resolveu entrar na faculdade de pedagogia. Novamente, cumpriu todos os créditos. Não bastasse, enfrentou duas pós-graduações: a primeira, em língua, literatura e semiótica; a outra, em filosofia clínica, título que lhe permite atuar como uma espécie de psicoterapeuta. Paralelamente às atividades escolares, fundou uma ONG no Grajaú, o Centro de Arte e Promoção Social (Caps), onde segue trabalhando. A instituição patrocina rodas de poesia, feiras de sustentabilidade e, algo inusual em bairros da periferia, um café filosófico cujos participantes analisam, há dois meses, um livro célebre do francês Michel Foucault: A Ordem do Discurso.
À semelhança da mãe, Kleber se aproximou do universo acadêmico. O flerte, no entanto, não vingou. Ele passou por faculdades de artes e de pedagogia sem nunca as concluir. Preferiu apostar em uma carreira menos ortodoxa e muitíssimo errática: a de rapper. Lançou-se nos palcos um pouco antes do colegial. De início, em cena, se apresentava como Kleber mesmo. Depois, virou Criolo Doido e, mais recentemente, apenas Criolo – pseudônimo que, de abril para cá, se espalhou pelas redes sociais e invadiu as páginas de cultura dos maiores jornais brasileiros. Tudo por causa do álbum Nó na Orelha e da música que lhe serve de carro-chefe, Não Existe Amor em SP. Sob a máscara de Criolo, Kleber assina e interpreta as dez composições de seu segundo disco. Só uma das faixas, Mariô, tem um coautor, Kiko Dinucci. Colocado na internet, o trabalho – que diversos críticos já apontam como um dos melhores de 2011 – ultrapassou a marca dos 55 mil downloads gratuitos em cerca de 40 dias. Trata-se, lógico, de um desempenho significativo para uma produção independente, mas nada parecido com o de Oração, balada que arrancou do anonimato A Banda Mais Bonita da Cidade. O grupo de Curitiba, igualmente sem o aval de nenhuma gravadora, postou o vídeo da canção no YouTube em maio. Após três semanas, o clipe de seis minutos somava quase 5 milhões de visitas. Uma avalanche.
Comparações à parte, o fato é que Criolo nunca se destacara tanto. Em 2006, quando estreou no mercado fonográfico com o disco Ainda Há Tempo, não atingiu nem um milésimo da projeção que conquistou agora. Junto à nata do hip-hop, porém, coleciona elogios desde então por força de uma iniciativa realmente louvável, a Rinha dos MCs. Ele e um velho amigo, Cassiano Sena, o DJ Dandan, criaram a festa itinerante que até hoje promove batalhas de freestyle (improvisação) entre rappers. As competições trouxeram à tona pelo menos um grande talento, o jovem paulistano Emicida.
Elite e favela Contagiante e engenhoso, Nó na Orelha tem produção de Marcelo Cabral e Daniel Ganjaman, músico do coletivo Instituto que pertenceu à banda Planet Hemp. Os dois contribuíram imensamente para a sonoridade refinada do disco, que lembra e não lembra um álbum típico de rap.
Lembra porque:
• disseminando versos repletos de gírias, traça um perfil agudo, caótico e fragmentado do cotidiano nas periferias das metrópoles (“aqui ninguém vai pro céu”, avisa um dos trechos de Não Existe Amor em SP);
• mistura denúncia social com palavras de ordem dignas de qualquer passeata (“não baixe a guarda, a luta não acabou”, instiga o refrão de Samba Sambei);
• reverencia, nas letras, nomes importantes do hip-hop nacional, como Sabotage, Dina Di, Rappin Hood, DJ Primo e o grupo Facção Central.
Mas não lembra porque:
• abdica do rap em diversas faixas e abraça o afrobeat, o reggae, o samba ou o bolero;
• exibe inusitados arranjos à base de violinos;
• revela um cantor de altíssima qualidade, o próprio Criolo, que teima em se definir apenas como MC;
• esbanja bom humor, artigo escasso no universo francamente carrancudo de Mano Brown, MV Bill & cia. (“sabão de coco não é Pompom com Protex”, ironiza uma das estrofes de Grajauex);
• presta tributo à MPB e cita, em Mariô, um clássico de Chico Buarque (Roda Viva);
• repete a dose em Sucrilhos e parafraseia Um Índio, de Caetano Veloso.
Sendo e não sendo um álbum típico de rap, Nó na Orelha conseguiu amealhar fãs de diferentes tribos. Não à toa, em junho, os espetáculos de Criolo que lançaram o CD no Sesc Vila Mariana, de São Paulo, atraíram manos e minas mas também moços e moças de áreas nobres da cidade.
A conciliação, portanto, se insinua como o principal atributo do disco – conciliação entre vários gêneros musicais, entre cantor e MC, entre ícones da MPB e do hip-hop, entre o tom panfletário e a irreverência, entre a elite e a favela. Com tal estratégia, Criolo se aproxima do time de Kassin, Marcelo Jeneci, Tulipa Ruiz, Romulo Fróes, Céu, Mariana Aydar, Fernando Catatau, Rodrigo Campos, Kiko Dinucci e mais um punhado de intérpretes na faixa dos 20 e 30 anos que estão revigorando a música brasileira. É uma turma que se notabiliza pela ausência quase completa de preconceitos estéticos e pela tentativa de amalgamar tradições culturais tidas como antagônicas. Ou, em outras palavras, que sobressai pela conciliação. Já houve os meninos da bossa nova, os meninos das canções de protesto, os da jovem guarda, os do tropicalismo, os da vanguarda paulista, os do rock e os do mangue beat. Agora há os meninos da geração sem rótulos nem bandeiras.
Pacto Em que medida o álbum de Criolo reflete as experiências do adolescente Kleber na Escola Estadual Professora Esther Garcia? Será que, de alguma maneira, o CD ecoa um acontecimento tão peculiar e marcante quanto dividir a sala de aula com a própria mãe? Se pensarmos em termos literais, não. Nenhuma das composições de Nó na Orelha, mesmo as mais autobiográficas, menciona o episódio. A única música de Criolo que trata de Maria, o samba Casa de Mãe, não integra o repertório do disco (aqui, um parêntese: solteiro, o artista de 35 anos ainda vive com os pais num imóvel simples e inacabado do Grajaú; daí, cantar “eu não tenho casa/ eu moro em casa de mãe/ casa de mãe é bom/ mas é casa de mãe”).
Por outro lado, se considerarmos novamente a vocação conciliatória do álbum, localizaremos um ponto de contato entre Nó na Orelha e aqueles tempos de colegial. “À época”, recorda Maria, “selei um acordo com o Klebinho. Abandonaríamos os papéis de mãe e filho na escola para virar exclusivamente colegas. O que ocorresse ali não deveria chegar à seara doméstica, e vice-versa. Certa ocasião, Kleber colocou os pés na carteira em que se sentava. O professor, irritado, me pediu para adverti-lo. Rebati de imediato: ‘O senhor cometeu um erro. Não sou mãe nesta sala’.” O pacto acabou por estabelecer uma sólida cumplicidade de Maria com o garoto. “Às vezes, Kleber me socorria nas lições de inglês, matéria que nunca dominei. Eu retribuía ajudando-o nas de português.”
Quando evoca o período, Criolo não hesita em usar o adjetivo “maravilhoso”. “Havia uma galera no colégio que me zoava: ‘Terror, hein, mano? Encarar a mãe na mesma classe…’ Terror? Eu achava da hora! A presença dela não me oprimia. Pelo contrário, me reconfortava. Era motivo de orgulho também. Imagine: uma cearense arretada, quarentona, batalhando para superar as deficiências do passado… O convívio escolar me ensinou a respeitá-la de verdade, independentemente da hierarquia familiar.”
Se pais e filhos teenagers costumam guerrear, Maria e Kleber encontraram um jeito especial de fugir à sina. Negociaram, amainaram as diferenças, fizeram um trato. Conciliaram, enfim. Os laços que teceram em sala de aula deram ânimo para Maria buscar outros consensos: com as vizinhas fofoqueiras, que torciam o nariz diante de uma aluna tão extemporânea; com o marido, que de início manifestara ciúme pelo fato de, agora, a mulher “andar rodeada de mocinhos” (depois, o metalúrgico se apaziguou e se tornou entusiasta da parceira); consigo própria, em razão da culpa que amargava por já não cuidar tanto quanto gostaria de Cleon Júnior, seu caçula, ainda bem pequeno.
Vitória Régia Kleber cursava a 5a série quando viu um colega soltar os cachorros porque não iria passar de ano. “Ele protestava declamando uns versos rimados que acabara de bolar. Naquele instante, mesmo sem ter plena consciência da coisa, entendi para que serve o hip-hop.” Converteu-se, então, num autor prolífico, quase obsessivo – característica que continua ostentando. Por muito tempo, só fazia rap. Há uma década, enveredou pelo samba, reggae, bolero e outros gêneros, provavelmente sob influência dos vinis ecléticos que os pais escutavam: LPs de Agnaldo Timóteo, Moreira da Silva, Nelson Ned, Raul Seixas, Clara Nunes e Martinho da Vila. Por não tocar nenhum instrumento, compõe tudo de ouvido. Com 13 anos, se apresentou em público pela primeira vez, numa associação de bairro. “Ao perceber que o Kleber queria seguir a carreira artística, não o desencorajei, mas sofri. É um caminho acidentado demais”, diz Maria, que cultiva o hábito de escrever poemas e assiná-los como Vitória Régia.
Aliás, o pseudônimo Criolo Doido remete à família do rapper. “Escolhi Criolo porque tenho um pai negro, lindo”, explica o cantor. “Já o Doido deriva de minha mãe e não desse meu jeito atrapalhado. Sou filho da Doida, né? Somente um louco poderia topar os desafios incríveis que dona Maria topou. Ela é tão doida, mas tão doida, que, com o tempo, julguei melhor abrir mão do adjetivo. Não o mereço.” Textos complementares
Arte em família Quando cursava o 2o grau, Maria já organizava saraus literários. Nessas ocasiões, adotava o pseudônimo de Vitória Régia e declamava versos que ela própria escrevia. Também constituía com os filhos uma trupe, a Turma da Xaréu, que se exibia num circo-escola da periferia paulistana. Kleber sempre apresentava os espetáculos. Uma de suas irmãs, Cleane, fazia contorcionismo. Hoje, aos 35 anos, o rapper ainda mora com Maria, que homenageou no samba Casa de Mãe.
Canudo e beca Em dezembro de 1992, Kleber e Maria se formaram no colegial. Ele tinha 17 anos. Ela, 42. Ao longo de todo o curso, ambos frequentaram a mesma classe da Escola Estadual Professora Esther Garcia, no Grajaú, distrito pobre e populoso de São Paulo. Assistiam às aulas noturnas. Boa de gramática, a mãe auxiliava o filho nas lições de português. O garoto retribuía lhe dando uma força com o inglês. (revista Bravo!)
Publicado
sexta-feira, 1 de julho de 2011 às 7:26 pm e categorizado como Reportagens.
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O doido e a doida
Mãe e filho, os dois fizeram o colegial juntos numa escola pública de São Paulo. Vinte anos depois, ela dirige um café filosófico na periferia e ele é o rapper Criolo, autor de um dos melhores discos de 2011
– Eu?! Ficou maluco, Klebinho?
– Maluco nada! O que custa tentar?
– Bobagem… A moça não vai nem me ouvir.
Ouviu.
O episódio, raro, se deu em janeiro de 1990. O garoto de 14 anos e a mãe, de 39, chegaram cedo à Escola Estadual Professora Esther Garcia, no Grajaú, distrito pobre e muito populoso da zona sul de São Paulo.
– Queria uma vaga para o Kleber…, arriscou a cearense Maria Vilani Cavalcante Gomes, dona de casa que dividia a criação dos cinco filhos com o marido, Cleon, metalúrgico igualmente oriundo de Fortaleza.
Enquanto a secretária preenchia os papéis da matrícula, o menino puxou da cartola a insólita sugestão. Desde pequeno, escutava falar que Maria não pudera estudar quando criança e se alfabetizara praticamente sozinha. Sabia, ainda, que a mãe adorava ler e que, adulta, se esforçou para terminar o Curso de Madureza Ginasial, precursor dos atuais supletivos.
– Vamos fazer o colegial juntos!, insistiu o rapazinho.
A secretária, tão espantada quanto Maria, acabou acolhendo a ideia e a levou à direção da escola, que não impôs nenhum obstáculo. Mãe e filho completaram, assim, o 2o grau. Frequentavam as aulas noturnas, compartilhando sempre a mesma classe. Em dezembro de 1992, se formaram – com baile, canudo e beca.
Hoje, “séculos depois”, como ambos costumam dizer, não restam dúvidas de que aqueles três anos se tornaram um divisor de águas para a dupla. Maria pegou gosto pelos estudos e logo ingressou no ensino superior. Optou por filosofia. Tirou o diploma, transformou-se em professora e, mais tarde, resolveu entrar na faculdade de pedagogia. Novamente, cumpriu todos os créditos. Não bastasse, enfrentou duas pós-graduações: a primeira, em língua, literatura e semiótica; a outra, em filosofia clínica, título que lhe permite atuar como uma espécie de psicoterapeuta. Paralelamente às atividades escolares, fundou uma ONG no Grajaú, o Centro de Arte e Promoção Social (Caps), onde segue trabalhando. A instituição patrocina rodas de poesia, feiras de sustentabilidade e, algo inusual em bairros da periferia, um café filosófico cujos participantes analisam, há dois meses, um livro célebre do francês Michel Foucault: A Ordem do Discurso.
À semelhança da mãe, Kleber se aproximou do universo acadêmico. O flerte, no entanto, não vingou. Ele passou por faculdades de artes e de pedagogia sem nunca as concluir. Preferiu apostar em uma carreira menos ortodoxa e muitíssimo errática: a de rapper. Lançou-se nos palcos um pouco antes do colegial. De início, em cena, se apresentava como Kleber mesmo. Depois, virou Criolo Doido e, mais recentemente, apenas Criolo – pseudônimo que, de abril para cá, se espalhou pelas redes sociais e invadiu as páginas de cultura dos maiores jornais brasileiros. Tudo por causa do álbum Nó na Orelha e da música que lhe serve de carro-chefe, Não Existe Amor em SP. Sob a máscara de Criolo, Kleber assina e interpreta as dez composições de seu segundo disco. Só uma das faixas, Mariô, tem um coautor, Kiko Dinucci. Colocado na internet, o trabalho – que diversos críticos já apontam como um dos melhores de 2011 – ultrapassou a marca dos 55 mil downloads gratuitos em cerca de 40 dias. Trata-se, lógico, de um desempenho significativo para uma produção independente, mas nada parecido com o de Oração, balada que arrancou do anonimato A Banda Mais Bonita da Cidade. O grupo de Curitiba, igualmente sem o aval de nenhuma gravadora, postou o vídeo da canção no YouTube em maio. Após três semanas, o clipe de seis minutos somava quase 5 milhões de visitas. Uma avalanche.
Comparações à parte, o fato é que Criolo nunca se destacara tanto. Em 2006, quando estreou no mercado fonográfico com o disco Ainda Há Tempo, não atingiu nem um milésimo da projeção que conquistou agora. Junto à nata do hip-hop, porém, coleciona elogios desde então por força de uma iniciativa realmente louvável, a Rinha dos MCs. Ele e um velho amigo, Cassiano Sena, o DJ Dandan, criaram a festa itinerante que até hoje promove batalhas de freestyle (improvisação) entre rappers. As competições trouxeram à tona pelo menos um grande talento, o jovem paulistano Emicida.
Contagiante e engenhoso, Nó na Orelha tem produção de Marcelo Cabral e Daniel Ganjaman, músico do coletivo Instituto que pertenceu à banda Planet Hemp. Os dois contribuíram imensamente para a sonoridade refinada do disco, que lembra e não lembra um álbum típico de rap.
Lembra porque:
• disseminando versos repletos de gírias, traça um perfil agudo, caótico e fragmentado do cotidiano nas periferias das metrópoles (“aqui ninguém vai pro céu”, avisa um dos trechos de Não Existe Amor em SP);
• mistura denúncia social com palavras de ordem dignas de qualquer passeata (“não baixe a guarda, a luta não acabou”, instiga o refrão de Samba Sambei);
• reverencia, nas letras, nomes importantes do hip-hop nacional, como Sabotage, Dina Di, Rappin Hood, DJ Primo e o grupo Facção Central.
Mas não lembra porque:
• abdica do rap em diversas faixas e abraça o afrobeat, o reggae, o samba ou o bolero;
• exibe inusitados arranjos à base de violinos;
• revela um cantor de altíssima qualidade, o próprio Criolo, que teima em se definir apenas como MC;
• esbanja bom humor, artigo escasso no universo francamente carrancudo de Mano Brown, MV Bill & cia. (“sabão de coco não é Pompom com Protex”, ironiza uma das estrofes de Grajauex);
• presta tributo à MPB e cita, em Mariô, um clássico de Chico Buarque (Roda Viva);
• repete a dose em Sucrilhos e parafraseia Um Índio, de Caetano Veloso.
Sendo e não sendo um álbum típico de rap, Nó na Orelha conseguiu amealhar fãs de diferentes tribos. Não à toa, em junho, os espetáculos de Criolo que lançaram o CD no Sesc Vila Mariana, de São Paulo, atraíram manos e minas mas também moços e moças de áreas nobres da cidade.
A conciliação, portanto, se insinua como o principal atributo do disco – conciliação entre vários gêneros musicais, entre cantor e MC, entre ícones da MPB e do hip-hop, entre o tom panfletário e a irreverência, entre a elite e a favela. Com tal estratégia, Criolo se aproxima do time de Kassin, Marcelo Jeneci, Tulipa Ruiz, Romulo Fróes, Céu, Mariana Aydar, Fernando Catatau, Rodrigo Campos, Kiko Dinucci e mais um punhado de intérpretes na faixa dos 20 e 30 anos que estão revigorando a música brasileira. É uma turma que se notabiliza pela ausência quase completa de preconceitos estéticos e pela tentativa de amalgamar tradições culturais tidas como antagônicas. Ou, em outras palavras, que sobressai pela conciliação. Já houve os meninos da bossa nova, os meninos das canções de protesto, os da jovem guarda, os do tropicalismo, os da vanguarda paulista, os do rock e os do mangue beat. Agora há os meninos da geração sem rótulos nem bandeiras.
Em que medida o álbum de Criolo reflete as experiências do adolescente Kleber na Escola Estadual Professora Esther Garcia? Será que, de alguma maneira, o CD ecoa um acontecimento tão peculiar e marcante quanto dividir a sala de aula com a própria mãe? Se pensarmos em termos literais, não. Nenhuma das composições de Nó na Orelha, mesmo as mais autobiográficas, menciona o episódio. A única música de Criolo que trata de Maria, o samba Casa de Mãe, não integra o repertório do disco (aqui, um parêntese: solteiro, o artista de 35 anos ainda vive com os pais num imóvel simples e inacabado do Grajaú; daí, cantar “eu não tenho casa/ eu moro em casa de mãe/ casa de mãe é bom/ mas é casa de mãe”).
Por outro lado, se considerarmos novamente a vocação conciliatória do álbum, localizaremos um ponto de contato entre Nó na Orelha e aqueles tempos de colegial. “À época”, recorda Maria, “selei um acordo com o Klebinho. Abandonaríamos os papéis de mãe e filho na escola para virar exclusivamente colegas. O que ocorresse ali não deveria chegar à seara doméstica, e vice-versa. Certa ocasião, Kleber colocou os pés na carteira em que se sentava. O professor, irritado, me pediu para adverti-lo. Rebati de imediato: ‘O senhor cometeu um erro. Não sou mãe nesta sala’.” O pacto acabou por estabelecer uma sólida cumplicidade de Maria com o garoto. “Às vezes, Kleber me socorria nas lições de inglês, matéria que nunca dominei. Eu retribuía ajudando-o nas de português.”
Quando evoca o período, Criolo não hesita em usar o adjetivo “maravilhoso”. “Havia uma galera no colégio que me zoava: ‘Terror, hein, mano? Encarar a mãe na mesma classe…’ Terror? Eu achava da hora! A presença dela não me oprimia. Pelo contrário, me reconfortava. Era motivo de orgulho também. Imagine: uma cearense arretada, quarentona, batalhando para superar as deficiências do passado… O convívio escolar me ensinou a respeitá-la de verdade, independentemente da hierarquia familiar.”
Se pais e filhos teenagers costumam guerrear, Maria e Kleber encontraram um jeito especial de fugir à sina. Negociaram, amainaram as diferenças, fizeram um trato. Conciliaram, enfim. Os laços que teceram em sala de aula deram ânimo para Maria buscar outros consensos: com as vizinhas fofoqueiras, que torciam o nariz diante de uma aluna tão extemporânea; com o marido, que de início manifestara ciúme pelo fato de, agora, a mulher “andar rodeada de mocinhos” (depois, o metalúrgico se apaziguou e se tornou entusiasta da parceira); consigo própria, em razão da culpa que amargava por já não cuidar tanto quanto gostaria de Cleon Júnior, seu caçula, ainda bem pequeno.
Kleber cursava a 5a série quando viu um colega soltar os cachorros porque não iria passar de ano. “Ele protestava declamando uns versos rimados que acabara de bolar. Naquele instante, mesmo sem ter plena consciência da coisa, entendi para que serve o hip-hop.” Converteu-se, então, num autor prolífico, quase obsessivo – característica que continua ostentando. Por muito tempo, só fazia rap. Há uma década, enveredou pelo samba, reggae, bolero e outros gêneros, provavelmente sob influência dos vinis ecléticos que os pais escutavam: LPs de Agnaldo Timóteo, Moreira da Silva, Nelson Ned, Raul Seixas, Clara Nunes e Martinho da Vila. Por não tocar nenhum instrumento, compõe tudo de ouvido. Com 13 anos, se apresentou em público pela primeira vez, numa associação de bairro. “Ao perceber que o Kleber queria seguir a carreira artística, não o desencorajei, mas sofri. É um caminho acidentado demais”, diz Maria, que cultiva o hábito de escrever poemas e assiná-los como Vitória Régia.
Aliás, o pseudônimo Criolo Doido remete à família do rapper. “Escolhi Criolo porque tenho um pai negro, lindo”, explica o cantor. “Já o Doido deriva de minha mãe e não desse meu jeito atrapalhado. Sou filho da Doida, né? Somente um louco poderia topar os desafios incríveis que dona Maria topou. Ela é tão doida, mas tão doida, que, com o tempo, julguei melhor abrir mão do adjetivo. Não o mereço.”
Textos complementares
Arte em família
Quando cursava o 2o grau, Maria já organizava saraus literários. Nessas ocasiões, adotava o pseudônimo de Vitória Régia e declamava versos que ela própria escrevia. Também constituía com os filhos uma trupe, a Turma da Xaréu, que se exibia num circo-escola da periferia paulistana. Kleber sempre apresentava os espetáculos. Uma de suas irmãs, Cleane, fazia contorcionismo. Hoje, aos 35 anos, o rapper ainda mora com Maria, que homenageou no samba Casa de Mãe.
Em dezembro de 1992, Kleber e Maria se formaram no colegial. Ele tinha 17 anos. Ela, 42. Ao longo de todo o curso, ambos frequentaram a mesma classe da Escola Estadual Professora Esther Garcia, no Grajaú, distrito pobre e populoso de São Paulo. Assistiam às aulas noturnas. Boa de gramática, a mãe auxiliava o filho nas lições de português. O garoto retribuía lhe dando uma força com o inglês.
(revista Bravo!)
Publicado sexta-feira, 1 de julho de 2011 às 7:26 pm e categorizado como Reportagens. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.