“Walmor Chagas foi casado com Cacilda Becker, o grande nome feminino do teatro brasileiro à sua época. Cacilda morreu em 1969, aos 48 anos, entre o primeiro e o segundo ato da peça Esperando Godot, de Samuel Beckett. Ou melhor: teve um derrame, e foi morrer cinco semanas depois, mas não saiu do coma. Foi como se morresse entre o primeiro e o segundo ato. Esperando Godot, da época do existencialismo e do teatro do absurdo, transcorre sem outro artifício senão o diálogo aparentemente sem rumo entre dois vagabundos, Estragon e Vladimir, enquanto esperam por um tal Godot, que não se sabe quem é nem se saberá, até o fim da peça. Cacilda fazia Estragon, e quem fazia Vladimir era Walmor. Não podia haver morte mais desorganizada. Cacilda foi recolhida ao hospital nos trajes andrajosos de Estragon. Imagina-se que Walmor deve ter demorado para se livrar dos andrajos de Vladimir. Nem é preciso imaginar, vai de si a situação de perplexidade, de alvoroço, de atropelo, de improviso. Estragon foi arrancado de Vladimir de uma maneira que não estava no script, e Cacilda foi arrancada de Walmor de maneira que menos ainda estava no script. O teatro do absurdo saltava do palco para a vida real. O público ficou esperando por um segundo ato que, como Godot, não veio.
É tentador supor que o tipo de morte escolhido por Walmor decorre do tipo de morte que vitimou Cacilda. Sobre Cacilda a morte desabou em sua versão de suprema traiçoeira das gentes. Esperava-a na coxia, e atacou-a de emboscada. Nem o segundo ato a deixou encenar, quanto mais o muito que lhe restava de vida e de teatro. Walmor, naquela sexta-feira em Guaratinguetá, tinha decidido que, em vez de esperá-la atacar, tomaria a iniciativa. Tomou café da manhã como de hábito, banhou-se, depois deixou-se ficar ao sol. No almoço comeu ‘um macarrãozinho bem fininho, com molho de shoyu’, segundo contou um amigo ao programa Fantástico. Horas depois, sozinho em casa, sentou-se em uma cadeira, a arma na mão. Adivinha-se que o plano já lhe girasse na cabeça haveria dias, talvez meses. Foi executado com método, sem alvoroço nem improviso. Amigos informaram que a decadência física começava a limitar os movimentos do ator e que, com a vista atacada por complicações do diabetes, ele enxergava cada vez pior. São fatores que podem ter ajudado na decisão; ele teria se antecipado ao aprofundamento dos estragos. Mas, sobretudo, teria concluído que o estoque de vida que lhe coubera, a vida em seus múltiplos aspectos, não apenas na questão da saúde, se esgotara.
Cacilda, atraiçoada, deixou tudo pela metade: a peça que representava, a carreira, a vida. Ficou intocado o enorme estoque que ainda tinha para gastar, e, na história das artes cênicas do Brasil, entrou com uma página truncada. Walmor não foi surpreendido entre o primeiro e o segundo ato porque não havia segundo ato a representar. A peça já tinha terminado. Ele próprio assim determinara, ao tomar nas mãos a autoria do desfecho.”
Trecho de Ato Final, artigo de Roberto Pompeu de Toledo
Publicado
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013 às 4:43 pm e categorizado como Blog.
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Melhor trair a morte do que a deixar nos trair?
“Walmor Chagas foi casado com Cacilda Becker, o grande nome feminino do teatro brasileiro à sua época. Cacilda morreu em 1969, aos 48 anos, entre o primeiro e o segundo ato da peça Esperando Godot, de Samuel Beckett. Ou melhor: teve um derrame, e foi morrer cinco semanas depois, mas não saiu do coma. Foi como se morresse entre o primeiro e o segundo ato. Esperando Godot, da época do existencialismo e do teatro do absurdo, transcorre sem outro artifício senão o diálogo aparentemente sem rumo entre dois vagabundos, Estragon e Vladimir, enquanto esperam por um tal Godot, que não se sabe quem é nem se saberá, até o fim da peça. Cacilda fazia Estragon, e quem fazia Vladimir era Walmor. Não podia haver morte mais desorganizada. Cacilda foi recolhida ao hospital nos trajes andrajosos de Estragon. Imagina-se que Walmor deve ter demorado para se livrar dos andrajos de Vladimir. Nem é preciso imaginar, vai de si a situação de perplexidade, de alvoroço, de atropelo, de improviso. Estragon foi arrancado de Vladimir de uma maneira que não estava no script, e Cacilda foi arrancada de Walmor de maneira que menos ainda estava no script. O teatro do absurdo saltava do palco para a vida real. O público ficou esperando por um segundo ato que, como Godot, não veio.
É tentador supor que o tipo de morte escolhido por Walmor decorre do tipo de morte que vitimou Cacilda. Sobre Cacilda a morte desabou em sua versão de suprema traiçoeira das gentes. Esperava-a na coxia, e atacou-a de emboscada. Nem o segundo ato a deixou encenar, quanto mais o muito que lhe restava de vida e de teatro. Walmor, naquela sexta-feira em Guaratinguetá, tinha decidido que, em vez de esperá-la atacar, tomaria a iniciativa. Tomou café da manhã como de hábito, banhou-se, depois deixou-se ficar ao sol. No almoço comeu ‘um macarrãozinho bem fininho, com molho de shoyu’, segundo contou um amigo ao programa Fantástico. Horas depois, sozinho em casa, sentou-se em uma cadeira, a arma na mão. Adivinha-se que o plano já lhe girasse na cabeça haveria dias, talvez meses. Foi executado com método, sem alvoroço nem improviso. Amigos informaram que a decadência física começava a limitar os movimentos do ator e que, com a vista atacada por complicações do diabetes, ele enxergava cada vez pior. São fatores que podem ter ajudado na decisão; ele teria se antecipado ao aprofundamento dos estragos. Mas, sobretudo, teria concluído que o estoque de vida que lhe coubera, a vida em seus múltiplos aspectos, não apenas na questão da saúde, se esgotara.
Cacilda, atraiçoada, deixou tudo pela metade: a peça que representava, a carreira, a vida. Ficou intocado o enorme estoque que ainda tinha para gastar, e, na história das artes cênicas do Brasil, entrou com uma página truncada. Walmor não foi surpreendido entre o primeiro e o segundo ato porque não havia segundo ato a representar. A peça já tinha terminado. Ele próprio assim determinara, ao tomar nas mãos a autoria do desfecho.”
Trecho de Ato Final, artigo de Roberto Pompeu de Toledo
Publicado segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013 às 4:43 pm e categorizado como Blog. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.