“- Por que você publica tão pouco?
– Porque tenho lata de lixo em casa.”
“Fracassei em tudo o que tentei na vida.
Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui.
Tentei salvar os índios, não consegui.
Tentei fazer uma universidade séria e fracassei.
Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei.
Mas os fracassos são minhas vitórias.
Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.”
“Todo ser humano sente ódio da sua pequenez.”
“Walmor Chagas foi casado com Cacilda Becker, o grande nome feminino do teatro brasileiro à sua época. Cacilda morreu em 1969, aos 48 anos, entre o primeiro e o segundo ato da peça Esperando Godot, de Samuel Beckett. Ou melhor: teve um derrame, e foi morrer cinco semanas depois, mas não saiu do coma. Foi como se morresse entre o primeiro e o segundo ato. Esperando Godot, da época do existencialismo e do teatro do absurdo, transcorre sem outro artifício senão o diálogo aparentemente sem rumo entre dois vagabundos, Estragon e Vladimir, enquanto esperam por um tal Godot, que não se sabe quem é nem se saberá, até o fim da peça. Cacilda fazia Estragon, e quem fazia Vladimir era Walmor. Não podia haver morte mais desorganizada. Cacilda foi recolhida ao hospital nos trajes andrajosos de Estragon. Imagina-se que Walmor deve ter demorado para se livrar dos andrajos de Vladimir. Nem é preciso imaginar, vai de si a situação de perplexidade, de alvoroço, de atropelo, de improviso. Estragon foi arrancado de Vladimir de uma maneira que não estava no script, e Cacilda foi arrancada de Walmor de maneira que menos ainda estava no script. O teatro do absurdo saltava do palco para a vida real. O público ficou esperando por um segundo ato que, como Godot, não veio.
É tentador supor que o tipo de morte escolhido por Walmor decorre do tipo de morte que vitimou Cacilda. Sobre Cacilda a morte desabou em sua versão de suprema traiçoeira das gentes. Esperava-a na coxia, e atacou-a de emboscada. Nem o segundo ato a deixou encenar, quanto mais o muito que lhe restava de vida e de teatro. Walmor, naquela sexta-feira em Guaratinguetá, tinha decidido que, em vez de esperá-la atacar, tomaria a iniciativa. Tomou café da manhã como de hábito, banhou-se, depois deixou-se ficar ao sol. No almoço comeu ‘um macarrãozinho bem fininho, com molho de shoyu’, segundo contou um amigo ao programa Fantástico. Horas depois, sozinho em casa, sentou-se em uma cadeira, a arma na mão. Adivinha-se que o plano já lhe girasse na cabeça haveria dias, talvez meses. Foi executado com método, sem alvoroço nem improviso. Amigos informaram que a decadência física começava a limitar os movimentos do ator e que, com a vista atacada por complicações do diabetes, ele enxergava cada vez pior. São fatores que podem ter ajudado na decisão; ele teria se antecipado ao aprofundamento dos estragos. Mas, sobretudo, teria concluído que o estoque de vida que lhe coubera, a vida em seus múltiplos aspectos, não apenas na questão da saúde, se esgotara.
Cacilda, atraiçoada, deixou tudo pela metade: a peça que representava, a carreira, a vida. Ficou intocado o enorme estoque que ainda tinha para gastar, e, na história das artes cênicas do Brasil, entrou com uma página truncada. Walmor não foi surpreendido entre o primeiro e o segundo ato porque não havia segundo ato a representar. A peça já tinha terminado. Ele próprio assim determinara, ao tomar nas mãos a autoria do desfecho.”
“Os defeitos da humanidade inteira estão dentro de cada um de nós.”
“No futuro, haverá lugares chamados academias, onde as pessoas pagarão para realizar trabalhos forçados.”
“Minha mãe definha, definha
e continua viva.
Seu coração forte a impulsiona
com a imprudência de um motor
uma noite após a outra.
Todos dizem Isto não pode continuar,
mas continua.
É como observar alguém se afogando.
Se ela fosse um barco, diríamos
que a lua brilha através de suas costelas
e ninguém maneja o leme,
mas não se pode dizer que esteja à deriva;
há alguém ali.
Seus olhos cegos iluminam-lhe o caminho.
Lá fora, em seu jardim abandonado,
o mato cresce de modo quase audível:
erva-moura, vara-de-ouro, cardo.
Todas as vezes que os arranco
uma nova onda começa a brotar,
subindo rumo à sua janela.
Demolem a parede de tijolos lentamente,
ocultam bordas e caminho,
borrando seus contornos.
Sua antiga ordem de palavras
desaba sobre si mesma.
Hoje, após semanas de silêncio,
ela compôs uma frase:
Acho que não.
Seguro sua mão, sussurro,
Olá, olá.
Se eu dissesse Adeus em vez disso,
se eu dissesse, Entregue-se,
o que ela faria?
Mas não posso dizê-lo.
Prometi que iria até o fim,
o que quer que isso signifique.
O que posso dizer a ela?
Estou aqui.
Estou aqui.”
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