Num lugar tão repleto de estranhezas quanto São Paulo, poucas me parecem mais divertidas do que a “rave em câmera lenta”. É assim que alguns frequentadores da pequenina Rua Campo Alegre definem o pisca-pisca incomum da iluminação pública local. O endereço, no bairro de Pinheiros, reúne um par de botecos que, à noite, espalham mesas sobre as calçadas e atraem jovens ávidos por birita, papo-furado e xaveco. O maior dos estabelecimentos, inaugurado em 1957, se chama Bar das Batidas, mas todo mundo o conhece como Cu do Padre. Localiza-se, afinal, bem atrás da igreja Nossa Senhora do Monte Serrat. A área em nada se diferencia das zonas boêmias de qualquer metrópole, exceto por um detalhe: a principal lâmpada da ruazinha está com defeito e oscila sem parar, ainda que num ritmo muito preguiçoso. Fica 25 segundos acesa, apaga durante outros 25 segundos e acende novamente.
Numa quinta-feira de agosto, sob um dos longuíssimos momentos de penumbra, a moça que me acompanhava murmurou: “Tenho um segredo”. O tom cavernoso que imprimiu à voz me deu a sensação de que ouviria uma confidência grave, desconcertante e um tanto fora de propósito. Eu e Nanã (vou chamá-la desse modo, em alusão à deusa dos mistérios no candomblé) não nos julgamos propriamente amigos. Talvez nos encaixemos melhor na categoria dos velhos conhecidos. Balzaquiana de feições indígenas, alta e sinuosa, costumo encontrá-la para trocar banalidades, não revelações. Por que haveríamos de mudar agora as regras implícitas que nos guiam desde tempos imemoriais? Nanã preferiu não responder. Apenas se refugiou no breu intermitente e avançou: “Defendo a fidelidade, mas não sou fiel”. Sem problemas. Milhões (ou bilhões?) de criaturas se comportam do mesmo jeito: apregoam uma coisa e fazem o oposto. “O meu caso é diferente”, insistiu.
A escuridão, sem dúvida, a enchia de coragem para seguir adiante. Existia, porém, outro aspecto que a impulsionava: Nanã tomara bons copos de caipirinha e se esquecera de que o homem à frente dela permanecia sóbrio. Por motivos que ignoro (os extraídos da psicanálise me soam forçados), nunca liguei para álcool. Uísque, rum, vinho, cachaça, tequila, chope, nada atiça de fato o meu paladar. Tampouco aprecio a vertigem, o torpor e a alegria indomável que derivam da embriaguez. Em razão disso, não cultivo o hábito de beber – no máximo, beberico. Tal condição acaba me aproximando de gatos, onças e leopardos. À semelhança dos felinos, em incursões noturnas, vejo e ouço tudo muito claramente, para azar das trôpegas presas que me rodeiam. Pior: lembro-me de minúcias na manhã seguinte, e na seguinte, e na seguinte.
“Saio com dois caras de uma vez só”, continuou Nanã. O namorado e um reserva? De novo: não se trata de nenhum absurdo. Quem nunca pulou a cerca que atire o primeiro cinto de castidade. “Você não entendeu… Os dois são reservas!” Nanã, botafoguense roxa, estava querendo me dizer que não apenas dribla o titular como toca a bola para um duo de atacantes furtivos? “Exato! Mas dou os passes simultaneamente. Transo com a dupla de reservas na mesma cama.” Em outras palavras: um ménage à trois clandestino? “E duradouro…” Duradouro quanto? Cinco semanas? Três meses? Um semestre? “Doze anos.”
Se a memória não me trai, Nanã engatara quatro namoros sérios desde 2001. Com um dos pretendentes, quase se casou. “Adivinhe por que não juntamos os trapinhos? Porque nunca consegui me desvencilhar dos dois reservas. Sempre mantive a relação secreta em paralelo às assumidas.” Ela demonstrava se sentir mais confusa que culpada diante do enrosco. “Quando começamos o triângulo, estávamos os três solteiros. Éramos amicíssimos e o negócio rolou naturalmente, como se o imenso afeto que nos unia necessitasse transbordar. Hoje, penso que também agíamos por farra e para desafiar a rigidez da educação que recebemos de nossos pais. Acontece que a situação fugiu do controle. Tentamos nos afastar, mas não conseguimos. Ficamos dependentes uns dos outros. Você sabe: em tese, prezo a monogamia e não curto bancar a mulher fatal, daquela que seduz batalhões. Mesmo assim… Me ajude: como me livro dessa armadilha?” Questãozinha capciosa… E se Nanã saísse em separado com cada um dos reservas? Talvez descobrisse gostar mais de beltrano que de sicrano. “Já saí. Não adiantou. Só funcionamos juntos.” Então lhes resta apenas uma alternativa, ousei sugerir: oficializar o ménage à trois. “Será? Jamais cogitei a hipótese.” Por que não? Vivemos tempos tão revolucionários… “Deus do céu, acho que preciso de outra caipirinha.” Aproveitei e pedi uma para mim também. Naquele instante, compreendi que, em raras (raríssimas) ocasiões, a sobriedade deve ceder espaço à solidariedade. (revista VIP)
Publicado
terça-feira, 1 de outubro de 2013 às 7:24 pm e categorizado como Reportagens.
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A namorada tem namorados
Um caso muito peculiar de infidelidade
Num lugar tão repleto de estranhezas quanto São Paulo, poucas me parecem mais divertidas do que a “rave em câmera lenta”. É assim que alguns frequentadores da pequenina Rua Campo Alegre definem o pisca-pisca incomum da iluminação pública local. O endereço, no bairro de Pinheiros, reúne um par de botecos que, à noite, espalham mesas sobre as calçadas e atraem jovens ávidos por birita, papo-furado e xaveco. O maior dos estabelecimentos, inaugurado em 1957, se chama Bar das Batidas, mas todo mundo o conhece como Cu do Padre. Localiza-se, afinal, bem atrás da igreja Nossa Senhora do Monte Serrat. A área em nada se diferencia das zonas boêmias de qualquer metrópole, exceto por um detalhe: a principal lâmpada da ruazinha está com defeito e oscila sem parar, ainda que num ritmo muito preguiçoso. Fica 25 segundos acesa, apaga durante outros 25 segundos e acende novamente.
Numa quinta-feira de agosto, sob um dos longuíssimos momentos de penumbra, a moça que me acompanhava murmurou: “Tenho um segredo”. O tom cavernoso que imprimiu à voz me deu a sensação de que ouviria uma confidência grave, desconcertante e um tanto fora de propósito. Eu e Nanã (vou chamá-la desse modo, em alusão à deusa dos mistérios no candomblé) não nos julgamos propriamente amigos. Talvez nos encaixemos melhor na categoria dos velhos conhecidos. Balzaquiana de feições indígenas, alta e sinuosa, costumo encontrá-la para trocar banalidades, não revelações. Por que haveríamos de mudar agora as regras implícitas que nos guiam desde tempos imemoriais? Nanã preferiu não responder. Apenas se refugiou no breu intermitente e avançou: “Defendo a fidelidade, mas não sou fiel”. Sem problemas. Milhões (ou bilhões?) de criaturas se comportam do mesmo jeito: apregoam uma coisa e fazem o oposto. “O meu caso é diferente”, insistiu.
A escuridão, sem dúvida, a enchia de coragem para seguir adiante. Existia, porém, outro aspecto que a impulsionava: Nanã tomara bons copos de caipirinha e se esquecera de que o homem à frente dela permanecia sóbrio. Por motivos que ignoro (os extraídos da psicanálise me soam forçados), nunca liguei para álcool. Uísque, rum, vinho, cachaça, tequila, chope, nada atiça de fato o meu paladar. Tampouco aprecio a vertigem, o torpor e a alegria indomável que derivam da embriaguez. Em razão disso, não cultivo o hábito de beber – no máximo, beberico. Tal condição acaba me aproximando de gatos, onças e leopardos. À semelhança dos felinos, em incursões noturnas, vejo e ouço tudo muito claramente, para azar das trôpegas presas que me rodeiam. Pior: lembro-me de minúcias na manhã seguinte, e na seguinte, e na seguinte.
“Saio com dois caras de uma vez só”, continuou Nanã. O namorado e um reserva? De novo: não se trata de nenhum absurdo. Quem nunca pulou a cerca que atire o primeiro cinto de castidade. “Você não entendeu… Os dois são reservas!” Nanã, botafoguense roxa, estava querendo me dizer que não apenas dribla o titular como toca a bola para um duo de atacantes furtivos? “Exato! Mas dou os passes simultaneamente. Transo com a dupla de reservas na mesma cama.” Em outras palavras: um ménage à trois clandestino? “E duradouro…” Duradouro quanto? Cinco semanas? Três meses? Um semestre? “Doze anos.”
Se a memória não me trai, Nanã engatara quatro namoros sérios desde 2001. Com um dos pretendentes, quase se casou. “Adivinhe por que não juntamos os trapinhos? Porque nunca consegui me desvencilhar dos dois reservas. Sempre mantive a relação secreta em paralelo às assumidas.” Ela demonstrava se sentir mais confusa que culpada diante do enrosco. “Quando começamos o triângulo, estávamos os três solteiros. Éramos amicíssimos e o negócio rolou naturalmente, como se o imenso afeto que nos unia necessitasse transbordar. Hoje, penso que também agíamos por farra e para desafiar a rigidez da educação que recebemos de nossos pais. Acontece que a situação fugiu do controle. Tentamos nos afastar, mas não conseguimos. Ficamos dependentes uns dos outros. Você sabe: em tese, prezo a monogamia e não curto bancar a mulher fatal, daquela que seduz batalhões. Mesmo assim… Me ajude: como me livro dessa armadilha?” Questãozinha capciosa… E se Nanã saísse em separado com cada um dos reservas? Talvez descobrisse gostar mais de beltrano que de sicrano. “Já saí. Não adiantou. Só funcionamos juntos.” Então lhes resta apenas uma alternativa, ousei sugerir: oficializar o ménage à trois. “Será? Jamais cogitei a hipótese.” Por que não? Vivemos tempos tão revolucionários… “Deus do céu, acho que preciso de outra caipirinha.” Aproveitei e pedi uma para mim também. Naquele instante, compreendi que, em raras (raríssimas) ocasiões, a sobriedade deve ceder espaço à solidariedade.
(revista VIP)
Publicado terça-feira, 1 de outubro de 2013 às 7:24 pm e categorizado como Reportagens. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.