Quando o algoz também é vítima
Nem mesmo nós, os moderninhos, escapamos de praticar o machismo – e sofrer os reflexos dele
Houve um período em que, sob a ótica comportamental, Ipanema estava muito à frente do Brasil. No início dos anos 70, o lendário bairro da zona sul carioca gozava de uma irreverência, de uma liberalidade que o resto do país mal conhecia. Foi ali, por exemplo, que nasceu um dos tabloides mais contestadores e escrachados da imprensa nacional: O Pasquim. Também ali a atriz e vedete Leila Diniz fez um gesto bastante transgressor para a época: grávida, resolveu ir à praia de biquíni, exibindo o barrigão majestoso. Ironicamente, há coisa de três ou quatro semanas, escutei em Ipanema um diálogo que me soou pouquíssimo ipanemense. Tomava uma água de coco no calçadão quando reparei que, perto de mim, duas charmosas balzaquianas papeavam sobre casamento.
“Perdi completamente! Perdi…”, lamentava a morena de tatuagem floral. “O desejo?”, perguntou a ruiva, já antevendo a resposta. Pelo sotaque, a dupla parecia de São Paulo. “Sim, o desejo. Mal nos casamos, e o Sérgio não me atrai mais. Em questão de meses, vi meu interesse diminuir, diminuir, diminuir.” A ruiva indagou se a amiga continuava gostando do marido. “Continuo. Mesmo assim… Ontem, tive um insight e descobri a causa do problema. Ou melhor: levantei uma hipótese que, por ser bem plausível, me chateou à beça. Você não vai acreditar…” Contou, então, que o marido jamais ganhou rios de dinheiro – nem riachos, ribeirões ou córregos. Sérgio enfrenta revezes financeiros desde que concluiu a faculdade. Embora talentoso e aplicado, não consegue arranjar empregos que o remunerem satisfatoriamente. A morena, em compensação, sempre desfrutou de sucesso profissional. Por isso, assume hoje o grosso do orçamento doméstico. “Juro que não me incomodava com nossas diferenças salariais. Mas agora noto que a fragilidade econômica do Sérgio o torna menos sedutor para mim”, segredou. “Estou descobrindo que, no fundo, preferia um homem clássico – daqueles que nos inspiram segurança em todos os terrenos, inclusive o da grana. Não é ridículo? Bancar a mulherzinha antiquada, que sonha com um macho protetor…”
A ruiva sorriu, cúmplice: “Xi… Acho que já me senti desse jeito uns tempos atrás. E sabe por quê? Porque o namorado da vez tinha um carro muito mais velho do que o meu!”. Às gargalhadas, a morena deu o xeque-mate: “O que acontece com a gente, menina?! Não somos tão feministas quanto imaginávamos?”
Se ouvisse a conversa, Leila Diniz provavelmente lascaria um sermão nas jovens, recheado de palavrões: “Quer dizer que as bandeiras libertárias da minha geração não serviram para porra nenhuma?”. Eu, bem menos aguerrido, evitei posar de abelhudo e me guardei em monástico silêncio. No entanto, saí de lá incomodado, recordando-me de um colega que, certa ocasião, prenunciou: “Mesmo nós, moderninhos de ambos os sexos, nunca estaremos inteiramente livres do machismo. Ou o exerceremos, ainda que de maneira sutil e inconsciente, ou sofreremos no próprio lombo os reflexos dele”.
O papo em Ipanema me pareceu ilustrar à perfeição o vaticínio. Quando (e sem perceber o motivo) as moças se distanciaram dos parceiros, viraram algozes e reiteraram um ideário tipicamente machista: o homem deve faturar mais do que a mulher. Por tabela, não apenas prejudicaram os companheiros como se prejudicaram – deixaram, afinal, de viver em paz. Todos acabaram perdendo. Para meu colega, trata-se de um beco sem saída, já que, de tão arraigado na cultura brasileira, o machismo nos atingirá cedo ou tarde. Não compartilho de tamanha descrença em nossa capacidade de transformação. O inimigo é, de fato, bravio, obstinado e frequentemente sorrateiro, mas não invencível. Contra o bicho, penso que existem no mínimo duas armas eficazes: vigilância eterna e tolerância zero.
(revista VIP)
Verdade isso. Pior mesmo é quando o cara, por uma adversidade, tem que diminuir o padrão. Elas não perdoam…
E com isso levam para o buraco relacionamento de anos, amizades, segurança dos filhos, familias envolvidas.
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