Como conciliar a ligeireza da paixão com um casamento duradouro?
Horror. Eis o que Jeanne sentia quando o marido se aproximou do cômodo onde o casal iria passar a noite de núpcias. Ela, muito jovem e recém-egressa de um convento, aguardara sofregamente aquela ocasião. Estava apaixonada por Julien e imaginava que os dois construiriam juntos um futuro luminoso. Mesmo assim, não conseguiu evitar que um medo gigantesco lhe paralisasse todo o corpo tão logo a criada a despiu. Sozinha no aposento, escutou o companheiro bater de leve à porta – uma, duas, três vezes. E agora? “As moças costumam se impressionar com a realidade quase brutal que se disfarça por trás dos sonhos”, avisara-lhe o pai, enigmático, horas antes das bodas. Procurava alertá-la para o que ocorreria dentro do quarto. Igualmente dilacerado pelo nervosismo e pela inexperiência, Julien adentrou o recinto e se deitou perto de Jeanne. Usava apenas meias e cuecas. Mal esbarrou nas pernas frias e peludas do rapaz, a garota sufocou um grito de repulsa. Julien arriscou tocar-lhe os seios. Jeanne, ainda petrificada, resistiu. Impaciente e atrapalhado, o parceiro tentou lhe impor um abraço. Depois, a cobriu de beijos e roubou-lhe a virgindade. Dor e decepção. Eis o que Jeanne sentia quando o marido finalmente se afastou.
O triste episódio é descrito no romance Uma Vida, que o francês Guy de Maupassant lançou em 1883. Filha única de um barão, criada sob as rédeas da inocência e do pudor, Jeanne se decepcionou não só com a lua-de-mel, mas principalmente com a rotina conjugal que a esperava. Em pouco tempo, o desastrado Julien – um visconde da Normandia – se revelou também avarento, rude, infiel e pai de uma criança bastarda. Como tudo pôde sair tão errado? A pergunta certamente inquietou muitos leitores da época. Os personagens da trama, afinal, seguiram ipsis litterisa cartilha do romantismo e se juntaram por ingerência exclusiva do coração. Ninguém, exceto o Cupido, os forçou àquela aventura em dupla. Não houve pressões familiares nem legais. Jeanne e Julien deveriam, portanto, estar livres dos infortúnios que marcavam os casamentos arranjados. Era, pelo menos, o que se acreditava na Europa do século 19. O matrimônio imposto, que continua hegemônico em certas sociedades tradicionais, já se provara suficientemente desastroso. Entre os males que estimulara, sobressaíam o adultério, a prostituição, o tratamento opressivo reservado às mulheres e a proliferação de herdeiros ilegítimos. Não à toa, diversos pensadores sustentavam que o inferno doméstico se dissiparia caso a atração física e o apego mútuo determinassem a união dos pretendentes. O segredo para o happy end consistia em substituir a obrigação pelo desejo. Na prática, porém, a nova fórmula não livrou os casais da frustração, conforme reiterava a catástrofe protagonizada por Jeanne e Julien.
Cientes dos problemas que as núpcias consensuais ainda enfrentavam, Stendhal, Honoré de Balzac, Victor Hugo e outros intelectuais de renome ousaram sugerir como remédio a quebra de um tabu arraigadíssimo: o de as jovens só poderem transar quando casadas. Libertá-las de uma sina tão contrária às urgências da mocidade favoreceria tanto as damas quanto os cavalheiros, já que ambos passariam a dispor de um elemento fundamental para escolher a metade da laranja com quem dividiriam o resto dos dias. O bom entrosamento na cama, ratificado antes de os pombinhos trocarem alianças, reduziria bastante – ou mesmo anularia – o risco de o matrimônio naufragar. Os séculos 20 e 21 acabaram provando a inconsistência da tese. Hoje, é mais fácil o Irã ganhar a Copa do que uma ocidental se casar virgem. A mudança de comportamento, no entanto, não consolidou a paz entre os sexos nem desestimulou as separações.
Diante de tal quadro, me soa bem adequada a indagação que serve de título para um pequeno livro do filósofo parisiense Pascal Bruckner: Fracassou o Casamento por Amor?. O ensaio, lançado recentemente no Brasil pela Difel, tem apenas 104 páginas. Embora saboroso, gira em torno de uma constatação amarga: sim, o casamento por amor fracassou. O castelo do afeto recíproco, que a maioria de nós julgava firme e encantador o suficiente, se mostrou incapaz de atender às nossas expectativas. Segundo Bruckner, o motivo é mais simples do que parece: relações desse tipo buscam conciliar dois polos antagônicos. Ou melhor, atribuem para si uma tarefa impossível. Por um lado, almejam tudo o que as uniões compulsórias reivindicavam – construção de um sólido patrimônio financeiro, perenidade, filhos e abrigo contra as intempéries da solidão. Mas, por outro, pleiteiam manter sempre flamejante a chama das paixões. Ocorre que, em geral, o erótico possui fôlego curto. Selvagem e fugidio, nutre-se da surpresa, do risco e da instabilidade. Como, então, conservá-lo vivo num cenário que se edifica sobre a ambição de controle? Seria o mesmo que pretender cavalgar um tigre. Cedo ou tarde, diz o autor, todos os casais se dão conta do paradoxo em que se meteram. Àqueles que não quiserem o divórcio, resta abdicar do êxtase e continuar aproveitando as benesses da mansidão. Loucura? Nem tanto. Para o filósofo, a obrigatoriedade infinita de gozo é somente mais uma das tolices que nossa época inventou. (revista VIP)
Publicado
sábado, 1 de fevereiro de 2014 às 7:55 pm e categorizado como Artigos.
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Sobre a impossibilidade de cavalgar um tigre
Como conciliar a ligeireza da paixão com um casamento duradouro?
Horror. Eis o que Jeanne sentia quando o marido se aproximou do cômodo onde o casal iria passar a noite de núpcias. Ela, muito jovem e recém-egressa de um convento, aguardara sofregamente aquela ocasião. Estava apaixonada por Julien e imaginava que os dois construiriam juntos um futuro luminoso. Mesmo assim, não conseguiu evitar que um medo gigantesco lhe paralisasse todo o corpo tão logo a criada a despiu. Sozinha no aposento, escutou o companheiro bater de leve à porta – uma, duas, três vezes. E agora? “As moças costumam se impressionar com a realidade quase brutal que se disfarça por trás dos sonhos”, avisara-lhe o pai, enigmático, horas antes das bodas. Procurava alertá-la para o que ocorreria dentro do quarto. Igualmente dilacerado pelo nervosismo e pela inexperiência, Julien adentrou o recinto e se deitou perto de Jeanne. Usava apenas meias e cuecas. Mal esbarrou nas pernas frias e peludas do rapaz, a garota sufocou um grito de repulsa. Julien arriscou tocar-lhe os seios. Jeanne, ainda petrificada, resistiu. Impaciente e atrapalhado, o parceiro tentou lhe impor um abraço. Depois, a cobriu de beijos e roubou-lhe a virgindade. Dor e decepção. Eis o que Jeanne sentia quando o marido finalmente se afastou.
O triste episódio é descrito no romance Uma Vida, que o francês Guy de Maupassant lançou em 1883. Filha única de um barão, criada sob as rédeas da inocência e do pudor, Jeanne se decepcionou não só com a lua-de-mel, mas principalmente com a rotina conjugal que a esperava. Em pouco tempo, o desastrado Julien – um visconde da Normandia – se revelou também avarento, rude, infiel e pai de uma criança bastarda. Como tudo pôde sair tão errado? A pergunta certamente inquietou muitos leitores da época. Os personagens da trama, afinal, seguiram ipsis litteris a cartilha do romantismo e se juntaram por ingerência exclusiva do coração. Ninguém, exceto o Cupido, os forçou àquela aventura em dupla. Não houve pressões familiares nem legais. Jeanne e Julien deveriam, portanto, estar livres dos infortúnios que marcavam os casamentos arranjados. Era, pelo menos, o que se acreditava na Europa do século 19. O matrimônio imposto, que continua hegemônico em certas sociedades tradicionais, já se provara suficientemente desastroso. Entre os males que estimulara, sobressaíam o adultério, a prostituição, o tratamento opressivo reservado às mulheres e a proliferação de herdeiros ilegítimos. Não à toa, diversos pensadores sustentavam que o inferno doméstico se dissiparia caso a atração física e o apego mútuo determinassem a união dos pretendentes. O segredo para o happy end consistia em substituir a obrigação pelo desejo. Na prática, porém, a nova fórmula não livrou os casais da frustração, conforme reiterava a catástrofe protagonizada por Jeanne e Julien.
Cientes dos problemas que as núpcias consensuais ainda enfrentavam, Stendhal, Honoré de Balzac, Victor Hugo e outros intelectuais de renome ousaram sugerir como remédio a quebra de um tabu arraigadíssimo: o de as jovens só poderem transar quando casadas. Libertá-las de uma sina tão contrária às urgências da mocidade favoreceria tanto as damas quanto os cavalheiros, já que ambos passariam a dispor de um elemento fundamental para escolher a metade da laranja com quem dividiriam o resto dos dias. O bom entrosamento na cama, ratificado antes de os pombinhos trocarem alianças, reduziria bastante – ou mesmo anularia – o risco de o matrimônio naufragar. Os séculos 20 e 21 acabaram provando a inconsistência da tese. Hoje, é mais fácil o Irã ganhar a Copa do que uma ocidental se casar virgem. A mudança de comportamento, no entanto, não consolidou a paz entre os sexos nem desestimulou as separações.
Diante de tal quadro, me soa bem adequada a indagação que serve de título para um pequeno livro do filósofo parisiense Pascal Bruckner: Fracassou o Casamento por Amor?. O ensaio, lançado recentemente no Brasil pela Difel, tem apenas 104 páginas. Embora saboroso, gira em torno de uma constatação amarga: sim, o casamento por amor fracassou. O castelo do afeto recíproco, que a maioria de nós julgava firme e encantador o suficiente, se mostrou incapaz de atender às nossas expectativas. Segundo Bruckner, o motivo é mais simples do que parece: relações desse tipo buscam conciliar dois polos antagônicos. Ou melhor, atribuem para si uma tarefa impossível. Por um lado, almejam tudo o que as uniões compulsórias reivindicavam – construção de um sólido patrimônio financeiro, perenidade, filhos e abrigo contra as intempéries da solidão. Mas, por outro, pleiteiam manter sempre flamejante a chama das paixões. Ocorre que, em geral, o erótico possui fôlego curto. Selvagem e fugidio, nutre-se da surpresa, do risco e da instabilidade. Como, então, conservá-lo vivo num cenário que se edifica sobre a ambição de controle? Seria o mesmo que pretender cavalgar um tigre. Cedo ou tarde, diz o autor, todos os casais se dão conta do paradoxo em que se meteram. Àqueles que não quiserem o divórcio, resta abdicar do êxtase e continuar aproveitando as benesses da mansidão. Loucura? Nem tanto. Para o filósofo, a obrigatoriedade infinita de gozo é somente mais uma das tolices que nossa época inventou.
(revista VIP)
Publicado sábado, 1 de fevereiro de 2014 às 7:55 pm e categorizado como Artigos. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.