Senhores de 81 anos ainda podem escalar o Everest?
Era terça-feira de Carnaval. Subvertendo a tradição modorrenta de outros tempos, as ruas paulistanas se encontravam repletas de foliões, que desfilavam com muito ímpeto e pouca ginga em blocos um tanto improvisados. Na contramão da farra, o apartamento onde meu pai vive há três décadas continuava silencioso e recatado como de praxe.
– Por acaso você tem aquele livro sobre o sertão de Minas? Um romance famosíssimo… Qual o título mesmo?, perguntou o velho, displicentemente, enquanto assistíamos à novela das seis (se é que alguém ainda diz “novela das seis”).
– Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa. Tenho, sim. Está na redação ou em casa, não lembro direito.
– Me empresta? Quero ler.
Estranhei bastante o pedido. Na tragicomédia que minha família protagoniza desde o início do século 20, quando abandonou o sul da Itália e migrou para o sudeste do Brasil, meu pai jamais desempenhou o papel de intelectual. Pelo menos, assim me parecia, considerando especialmente as primeiras imagens que guardo dele: um sujeito prático, com martelo e prego nas mãos, sempre atarefado, que confeccionava sofás e poltronas sob a luz fluorescente de uma pequena oficina doméstica. Híbrido de artesão e comerciante, nasceu e se criou em meio às imposições da pobreza. Por isso, precisou trabalhar logo cedo e mal pôde frequentar a escola, o que não o impediu de se tornar um adulto bem-informado, perspicaz e cortês, com notório domínio de aritmética e da língua portuguesa. Para aprimorar a ortografia, se valeu das palavras cruzadas, que fazia religiosamente na juventude. À época em que morávamos juntos, recordo-me de vê-lo escarafunchar jornais e revistas (Gazeta de Pinheiros, Folha, Casa e Jardim, Seleções), mas não de flagrá-lo concentrado diante de um livro, qualquer livro.
– Empresto, claro. Só que é um romance difícil…
– Mais difícil que Dom Quixote?
– Não sei… Os dois são bem difíceis.
– Acho que dou conta. Terminei de ler Dom Quixote no mês passado.
– O senhor leu Dom Quixote?! Na íntegra?!
Curiosamente, sigo tratando meu pai de senhor, hábito que adquiri quando garoto, menos por força de uma educação muito rígida e mais pelo fato de as crianças daquele período orbitarem um mundo em que o pátrio poder não manifestava nenhum constrangimento de se reconhecer como tal. Hoje, gosto de me iludir afirmando que já não me sinto propriamente filho de ninguém. “Meu pai virou um igual”, costumo alardear em pensamento. “Navegamos ambos no mesmo barco – o dos indivíduos que se admitem tão comuns quanto frágeis e temem resignadamente a morte.” Toda vez que o visito, porém, a linguagem me trai. Chamo-o de senhor e, distraído, o reitero na posição extraordinária que nunca deixou de ocupar em mim.
– Sim, li o texto integral. Um pouquinho por dia, sem pressa. Demorei quase três anos… Escuto falar do livro desde moço – a história de um fidalgo sonhador, que só se mete em confusão – e sempre desejei comprá-lo. Certa ocasião, passeando pelo shopping, avistei o romance na vitrine de uma loja. “Vou levar”, resolvi. “Uma hora, arranjo a paz de espírito necessária para enfrentá-lo.”
Ergueu-se da cadeira, adentrou o escritório próximo à sala e retornou com um Dom Quixote de La Mancha em dois volumes. A edição de 1984, traduzida do espanhol e ilustrada, soma 1.058 páginas. Reúne não apenas um emaranhado de letras miúdas como inúmeros trechos em versos. Na esperança de apreender melhor a trama, escrita por Miguel de Cervantes entre 1602 e 1615, meu pai decidiu resumir o catatau à medida que o desbravava. Digitou a síntese em Word e depois a imprimiu. Também anotou num punhado de sulfites todos os vocábulos que ignorava, com os respectivos significados.
– Você deve conhecer a maioria deles.
Eu, na verdade, não conhecia nenhum: albarda, biscainha, cincerro, ensancha, galeote, hissope, palafrém, récua, taleigo, venábulo, zagal… Examinando a lista, compreendi finalmente que meu pai, aos 81 anos, realizara uma façanha. Quantas vezes, em festas ou compromissos de trabalho, me deparei com artistas, professores e jornalistas que inflavam o peito antes de proclamar: “Estou lendo o maior clássico da literatura ocidental!”. Já meu pai – o menos previsível dos homens previsíveis, agora sei – degustou o livro discretamente, sem ter a exata noção de que domava um Everest. Moveu-o apenas o prazer de explorar uma narrativa mirabolante. E ainda há quem julgue que, na velhice, ninguém pode mais se aventurar… (revista VIP)
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terça-feira, 1 de abril de 2014 às 7:17 pm e categorizado como Artigos.
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Uma façanha
Senhores de 81 anos ainda podem escalar o Everest?
Era terça-feira de Carnaval. Subvertendo a tradição modorrenta de outros tempos, as ruas paulistanas se encontravam repletas de foliões, que desfilavam com muito ímpeto e pouca ginga em blocos um tanto improvisados. Na contramão da farra, o apartamento onde meu pai vive há três décadas continuava silencioso e recatado como de praxe.
– Por acaso você tem aquele livro sobre o sertão de Minas? Um romance famosíssimo… Qual o título mesmo?, perguntou o velho, displicentemente, enquanto assistíamos à novela das seis (se é que alguém ainda diz “novela das seis”).
– Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa. Tenho, sim. Está na redação ou em casa, não lembro direito.
– Me empresta? Quero ler.
Estranhei bastante o pedido. Na tragicomédia que minha família protagoniza desde o início do século 20, quando abandonou o sul da Itália e migrou para o sudeste do Brasil, meu pai jamais desempenhou o papel de intelectual. Pelo menos, assim me parecia, considerando especialmente as primeiras imagens que guardo dele: um sujeito prático, com martelo e prego nas mãos, sempre atarefado, que confeccionava sofás e poltronas sob a luz fluorescente de uma pequena oficina doméstica. Híbrido de artesão e comerciante, nasceu e se criou em meio às imposições da pobreza. Por isso, precisou trabalhar logo cedo e mal pôde frequentar a escola, o que não o impediu de se tornar um adulto bem-informado, perspicaz e cortês, com notório domínio de aritmética e da língua portuguesa. Para aprimorar a ortografia, se valeu das palavras cruzadas, que fazia religiosamente na juventude. À época em que morávamos juntos, recordo-me de vê-lo escarafunchar jornais e revistas (Gazeta de Pinheiros, Folha, Casa e Jardim, Seleções), mas não de flagrá-lo concentrado diante de um livro, qualquer livro.
– Empresto, claro. Só que é um romance difícil…
– Mais difícil que Dom Quixote?
– Não sei… Os dois são bem difíceis.
– Acho que dou conta. Terminei de ler Dom Quixote no mês passado.
– O senhor leu Dom Quixote?! Na íntegra?!
Curiosamente, sigo tratando meu pai de senhor, hábito que adquiri quando garoto, menos por força de uma educação muito rígida e mais pelo fato de as crianças daquele período orbitarem um mundo em que o pátrio poder não manifestava nenhum constrangimento de se reconhecer como tal. Hoje, gosto de me iludir afirmando que já não me sinto propriamente filho de ninguém. “Meu pai virou um igual”, costumo alardear em pensamento. “Navegamos ambos no mesmo barco – o dos indivíduos que se admitem tão comuns quanto frágeis e temem resignadamente a morte.” Toda vez que o visito, porém, a linguagem me trai. Chamo-o de senhor e, distraído, o reitero na posição extraordinária que nunca deixou de ocupar em mim.
– Sim, li o texto integral. Um pouquinho por dia, sem pressa. Demorei quase três anos… Escuto falar do livro desde moço – a história de um fidalgo sonhador, que só se mete em confusão – e sempre desejei comprá-lo. Certa ocasião, passeando pelo shopping, avistei o romance na vitrine de uma loja. “Vou levar”, resolvi. “Uma hora, arranjo a paz de espírito necessária para enfrentá-lo.”
Ergueu-se da cadeira, adentrou o escritório próximo à sala e retornou com um Dom Quixote de La Mancha em dois volumes. A edição de 1984, traduzida do espanhol e ilustrada, soma 1.058 páginas. Reúne não apenas um emaranhado de letras miúdas como inúmeros trechos em versos. Na esperança de apreender melhor a trama, escrita por Miguel de Cervantes entre 1602 e 1615, meu pai decidiu resumir o catatau à medida que o desbravava. Digitou a síntese em Word e depois a imprimiu. Também anotou num punhado de sulfites todos os vocábulos que ignorava, com os respectivos significados.
– Você deve conhecer a maioria deles.
Eu, na verdade, não conhecia nenhum: albarda, biscainha, cincerro, ensancha, galeote, hissope, palafrém, récua, taleigo, venábulo, zagal… Examinando a lista, compreendi finalmente que meu pai, aos 81 anos, realizara uma façanha. Quantas vezes, em festas ou compromissos de trabalho, me deparei com artistas, professores e jornalistas que inflavam o peito antes de proclamar: “Estou lendo o maior clássico da literatura ocidental!”. Já meu pai – o menos previsível dos homens previsíveis, agora sei – degustou o livro discretamente, sem ter a exata noção de que domava um Everest. Moveu-o apenas o prazer de explorar uma narrativa mirabolante. E ainda há quem julgue que, na velhice, ninguém pode mais se aventurar…
(revista VIP)
Publicado terça-feira, 1 de abril de 2014 às 7:17 pm e categorizado como Artigos. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.