“É justo, é correto, é bom fazer o bem por razões que não são as do bem? É certo agir corretamente, mas por razões tortas? Essa pergunta não é nova, mas é a que me ocorre quando me deparo com o desafio do balde de gelo. (…) Sem o prazer de ver famosos pagando mico não doaríamos? Ora, o que parece fazer mais sentido eticamente é: a satisfação de fazer o bem é o próprio bem. Deveria ser uma satisfação pura, independente dos resultados que proporcione. Isso é, bem sumariamente, Kant. Uma decisão ética não pode levar em conta os efeitos que ela terá – significando as vantagens ou desvantagens que trará, para todos, mas particularmente para mim. Dessa maneira se recortam, para usar uma linguagem mais recente, a esfera da ética e a da prudência. Ajo com prudência quando busco resultados positivos. Procuro a vantagem pessoal. Ou, na melhor das hipóteses, diante de uma injustiça percebo que reagir acarretará problemas sérios para mim, ou mesmo para o injustiçado, e procuro uma via indireta para reduzir danos. Já a ação ética não deve levar em conta o que ela há de produzir. Uma injustiça é uma injustiça, ponto, e deve ser confrontada.
Deixemos claro: a maior parte das pessoas, a maior parte das vezes, age (ou pensa agir) com prudência. Mas quem faz a diferença é a pequena minoria de pessoas – e ações – que responde a um clamor ético. Nosso mundo seria um horror não fossem os heróis que, de tempos em tempos, afrontam as potestades, deixam de lado a prudência (‘ho perduto la prudenza’, diz uma personagem doDon Giovanni, de Mozart) e partem para a luta. Muitas vezes sucumbem, mas, se a vida humana tem algum valor além do biológico, é graças a eles. O que seria a humanidade, não fossem esses faróis que abrem caminhos antes insuspeitos? Sem eles, teríamos escravidão, mutilação genital, subordinação das mulheres aos homens, dos pobres aos ricos, dos plebeus aos nobres, tudo isso que – pelo menos nos últimos 200 anos – vem sendo questionado e, ao ser vencido, melhora nosso mundo.
Ou seja, eu dar dinheiro porque um espetáculo semicircense me motivou não é ético. É uma diversão. Traz efeitos positivos, sim, porque o dinheiro vai para uma entidade (nem discuto aqui a entidade ou a causa, porque estou tratando do assunto em tese). Mas justamente o fato de me divertir e de serem bons os resultados caracteriza essa ação como não sendo ética. Não quer dizer que seja imoral ou antiética, tampouco. Apenas está fora do âmbito da ética. Possivelmente, traz ganhos para a causa. Será então vantajosa. Mas aumentará o que chamarei, com alguma impropriedade, de ‘teor ético’ na sociedade? Penso que não.”
Trecho de A ética no tempo do espetáculo, artigo de Renato Janine Ribeiro
Publicado
sexta-feira, 29 de agosto de 2014 às 6:59 pm e categorizado como Blog.
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Há ética entre os que se proclamam éticos?
“É justo, é correto, é bom fazer o bem por razões que não são as do bem? É certo agir corretamente, mas por razões tortas? Essa pergunta não é nova, mas é a que me ocorre quando me deparo com o desafio do balde de gelo. (…) Sem o prazer de ver famosos pagando mico não doaríamos? Ora, o que parece fazer mais sentido eticamente é: a satisfação de fazer o bem é o próprio bem. Deveria ser uma satisfação pura, independente dos resultados que proporcione. Isso é, bem sumariamente, Kant. Uma decisão ética não pode levar em conta os efeitos que ela terá – significando as vantagens ou desvantagens que trará, para todos, mas particularmente para mim. Dessa maneira se recortam, para usar uma linguagem mais recente, a esfera da ética e a da prudência. Ajo com prudência quando busco resultados positivos. Procuro a vantagem pessoal. Ou, na melhor das hipóteses, diante de uma injustiça percebo que reagir acarretará problemas sérios para mim, ou mesmo para o injustiçado, e procuro uma via indireta para reduzir danos. Já a ação ética não deve levar em conta o que ela há de produzir. Uma injustiça é uma injustiça, ponto, e deve ser confrontada.
Deixemos claro: a maior parte das pessoas, a maior parte das vezes, age (ou pensa agir) com prudência. Mas quem faz a diferença é a pequena minoria de pessoas – e ações – que responde a um clamor ético. Nosso mundo seria um horror não fossem os heróis que, de tempos em tempos, afrontam as potestades, deixam de lado a prudência (‘ho perduto la prudenza’, diz uma personagem do Don Giovanni, de Mozart) e partem para a luta. Muitas vezes sucumbem, mas, se a vida humana tem algum valor além do biológico, é graças a eles. O que seria a humanidade, não fossem esses faróis que abrem caminhos antes insuspeitos? Sem eles, teríamos escravidão, mutilação genital, subordinação das mulheres aos homens, dos pobres aos ricos, dos plebeus aos nobres, tudo isso que – pelo menos nos últimos 200 anos – vem sendo questionado e, ao ser vencido, melhora nosso mundo.
Ou seja, eu dar dinheiro porque um espetáculo semicircense me motivou não é ético. É uma diversão. Traz efeitos positivos, sim, porque o dinheiro vai para uma entidade (nem discuto aqui a entidade ou a causa, porque estou tratando do assunto em tese). Mas justamente o fato de me divertir e de serem bons os resultados caracteriza essa ação como não sendo ética. Não quer dizer que seja imoral ou antiética, tampouco. Apenas está fora do âmbito da ética. Possivelmente, traz ganhos para a causa. Será então vantajosa. Mas aumentará o que chamarei, com alguma impropriedade, de ‘teor ético’ na sociedade? Penso que não.”
Trecho de A ética no tempo do espetáculo, artigo de Renato Janine Ribeiro
Publicado sexta-feira, 29 de agosto de 2014 às 6:59 pm e categorizado como Blog. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.