“O bicho humano nasce antes da hora, como um feto que custa muito a poder subsistir por si na selva da vida, diferentemente de outros animais. Nos primeiros anos, depende totalmente dos adultos. Sua dependência não é só de alimento, mas de reconhecimento: o infante (a criança que ainda não fala) precisa que os adultos, e especialmente a mãe, o mimem, o imitem, o mimetizem, para que ele venha a saber, em meio às sensações desconexas de que é feito, que ele é ele mesmo. Ninguém se torna um eu sem passar pelo auxílio luxuoso e capcioso do espelho, ou desse jogo de espelhos em que só nos tornamos nós acreditando nessa imagem que está fora de nós. O espelho oferece à criança uma superfície onde projetar a imagem inteiriça de seu corpo próprio, que lhe falta, e que depende desesperadamente do outro. Algo, ou muito, dessa fragilidade e dessa dependência congênita fica inscrito no cerne renitentemente infantil do nosso ser. Ele corresponde ao registro do imaginário (imaginário aqui não no sentido de fantasia imaginativa, mas de constituição da nossa identidade sobre a imagem alienada de si). Para criar uma criança é essencial mimá-la, isto é, alimentá-la com imagens dela mesma. Mimar de menos psicotiza o bichinho, mimar demais neurotiza o cidadão. No jogo instável em que ninguém é equilibrado, no máximo equilibrista, o humano é constituído sobre uma fome de reconhecimento tão crucial, no plano psíquico, quanto a fome de alimento para a vida do organismo.”