– E então, rapaz, vai de Aécio ou Dilma?
– Eu não voto, mano. Jamais votei.
– Como assim? Você está querendo dizer que sempre anula o voto?
– Não! Estou dizendo que nunca vi uma urna de perto. Nunca botei os pés na porra do… Qual o nome do lugar em que a galera vota?
– Zona eleitoral.
– Pode crer. Não sei nem onde é a minha.
– Sério? Mas, pelo menos, você vai até os Correios para justificar a ausência?
– Vou o caralho! Nem pago a multa. Quem não justifica tem de pagar uma multa, não tem?
– Tem.
– Dane-se! Nunca paguei.
– E não dá merda?
– Que tipo de merda?
– Podem cancelar o seu título de eleitor.
– Beleza. Não preciso do bagulho mesmo…
– Mas há outras punições. Se você quiser tirar passaporte, não conseguirá.
– Fala sério, cabeção! Eu lá viajo para o exterior?!
– Se precisar de empréstimo num banco público, também não conseguirá.
– Tô cagando. Bancos me fodem de qualquer jeito, não importa se peço ou deixo de pedir grana emprestada. O negócio com banco é o seguinte: o banqueiro sempre lucra e o babaca aqui sempre sai no prejuízo.
Faz duas semanas que Claudio me procurou pelo Facebook para jogar conversa fora. O segundo turno da disputa presidencial iria ocorrer dentro de seis dias, e o papo acabou tomando o rumo incontornável da política. Grafiteiro e ilustrador, Claudio vive no Capão Redondo, distrito da periferia paulistana que ganhou certa notoriedade por causa dos Racionais MC’s. O mais influente grupo brasileiro de hip hop surgiu ali e, desde a década de 1980, costuma retratar o cotidiano do bairro nos raps que compõe.
Não lembro direito quando conheci Claudio. Foi em 2002 ou 2003. Só recordo que, na ocasião, ele enfrentava os sobressaltos da adolescência, agravados pelos percalços financeiros e pela tentação frequente de se tornar soldado do narcotráfico ou ladrão de carros, repetindo o destino de alguns jovens que o rodeavam. Uma família sólida e a índole pacata o livraram das “fitas ruins” e permitiram que terminasse o ensino médio.
Em dezembro, meu amigo completará 31 anos. Continua solteiro, não tem filhos e ainda mora com os pais – um técnico de manutenção predial, oriundo de Minas, e uma empregada doméstica baiana. Os três dividem um pequeno apartamento, já pago, e uma renda mensal que dificilmente ultrapassa os 1.500,00. Pelos critérios do governo federal, pertencem à nova classe média, nomenclatura que não os convence muito. Sentem-se menos pobres do que em outras ocasiões, mas ainda pobres.
– Você pensa que sou otário por não votar?
– Otário? Não… Já ouviu falar em Thoreau? Era um intelectual da gringa. Henry Thoreau. Ele defendia que as pessoas não deveriam pagar impostos nem votar se considerassem o Estado injusto. Chamava isso de “desobediência civil”.
– Uma espécie de protesto?
– Exato.
– E você concorda com o cara?
– Concordo mais com Platão, o filósofo grego. Conhece?
– Tô ligado no Platão.
– Ele dizia o seguinte: o problema de quem não gosta de política é que acabará governado por aqueles que gostam.
– Vixe! Matou a pau o Platão!
Três dias depois, Claudio me acessou novamente pelo Facebook.
– Fiquei brisando no Platão, mano.
– Refletiu sobre aquela frase dele?
– Refleti à pampa. O homem entendia das coisas, né? Tenho muito que aprender com os pensadores da antiga.
– Decidiu votar, então?
– Sim. Percebi que não votar é coisa de orgulhoso, de gente antissocial. Tipo o coxinha que se julga melhor do que os outros. Quando deixo de votar, entro numas de bancar o superior e me coloco acima de todo mundo que sai de casa para escolher um candidato.
– Boa conclusão. E já resolveu se vai de Aécio ou Dilma?
– Vou apoiar a Dilma.
– Por quê?
– Porque morei em barraco de madeira na infância.
– Morou? Não sabia…
– Morei, truta! E quem viveu na favela não pode votar em playboy. É nóis!
Ontem, após uma semana sem notícias do meu amigo, tomei a iniciativa de chamá-lo pelo Whatsapp.
– Feliz com a vitória da Dilma?
– Não dei a mínima.
– Ué? Você não votou nela?
– Nem. Fui grafitar.
– Desencanou outra vez de votar? E aquele papo de orgulho, de gente antissocial?
– Depois da nossa conversa, troquei uma ideia sobre o assunto com uns colegas da quebrada, um pessoal que odeia política e também não costuma votar. Fiquei até com medo de levar um couro dos malucos: ‘Qualé, Claudio, vai ouvir blá-blá-blá de bacana?’.
– Eu sou o bacana?
– Para os meus colegas, sim… Eles continuaram buzinando na minha orelha: ‘Ô, feio, vai eleger vacilão? PT, PSDB, tanto faz! Tudo corja! Antissocial é quem aceita as regras do jogo sujo e diz amém nas urnas’.
– Por que você não contra-argumentou citando a frase do Platão?
– Citei, mas os caras responderam que a época do Platão já passou. Na periferia, a chapa é quente, brother! Não tem filósofo grego que segure a onda, não.
– Abdicando de votar, você perde a moral para cobrar os políticos.
– Cobrar o quê?
– Melhorias, ué. Na saúde, na educação, no transporte…
– Tá me tirando, mano? Você realmente acredita que tubarão vai ligar para cobrança de peixinho? Político só escuta a voz do dinheiro.
– Quanto pessimismo, velho!
– Pessimismo? Você precisa colar por aqui. Faz tempo que não aparece. Quando vier, a gente dá um rolê. Vou lhe mostrar o inferno…
– Sei do que você está falando. Já andei muito pela periferia.
– Desculpe, irmão, você não sabe. Uma coisa é visitar a quebrada, outra coisa é morar na quebrada. Você apenas imagina o inferno. Eu frito no caldeirão do demônio desde que nasci.
– E fritará para sempre?
– Para sempre, man! Nada vai mudar. A temperatura do caldeirão pode até diminuir um pouquinho dependendo de quem toca o barco lá em Brasília, mas o inferno jamais deixará de ser o inferno.
Segundo o Tribunal Superior Eleitoral, Aécio ganhou de Dilma no Capão Redondo, tradicionalmente um reduto petista. Ele abocanhou 50,43% dos votos válidos. Ela, 49,57%.
Publicado
segunda-feira, 3 de novembro de 2014 às 8:42 pm e categorizado como Blog.
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Abstenção
– E então, rapaz, vai de Aécio ou Dilma?
– Eu não voto, mano. Jamais votei.
– Como assim? Você está querendo dizer que sempre anula o voto?
– Não! Estou dizendo que nunca vi uma urna de perto. Nunca botei os pés na porra do… Qual o nome do lugar em que a galera vota?
– Zona eleitoral.
– Pode crer. Não sei nem onde é a minha.
– Sério? Mas, pelo menos, você vai até os Correios para justificar a ausência?
– Vou o caralho! Nem pago a multa. Quem não justifica tem de pagar uma multa, não tem?
– Tem.
– Dane-se! Nunca paguei.
– E não dá merda?
– Que tipo de merda?
– Podem cancelar o seu título de eleitor.
– Beleza. Não preciso do bagulho mesmo…
– Mas há outras punições. Se você quiser tirar passaporte, não conseguirá.
– Fala sério, cabeção! Eu lá viajo para o exterior?!
– Se precisar de empréstimo num banco público, também não conseguirá.
– Tô cagando. Bancos me fodem de qualquer jeito, não importa se peço ou deixo de pedir grana emprestada. O negócio com banco é o seguinte: o banqueiro sempre lucra e o babaca aqui sempre sai no prejuízo.
Faz duas semanas que Claudio me procurou pelo Facebook para jogar conversa fora. O segundo turno da disputa presidencial iria ocorrer dentro de seis dias, e o papo acabou tomando o rumo incontornável da política. Grafiteiro e ilustrador, Claudio vive no Capão Redondo, distrito da periferia paulistana que ganhou certa notoriedade por causa dos Racionais MC’s. O mais influente grupo brasileiro de hip hop surgiu ali e, desde a década de 1980, costuma retratar o cotidiano do bairro nos raps que compõe.
Não lembro direito quando conheci Claudio. Foi em 2002 ou 2003. Só recordo que, na ocasião, ele enfrentava os sobressaltos da adolescência, agravados pelos percalços financeiros e pela tentação frequente de se tornar soldado do narcotráfico ou ladrão de carros, repetindo o destino de alguns jovens que o rodeavam. Uma família sólida e a índole pacata o livraram das “fitas ruins” e permitiram que terminasse o ensino médio.
Em dezembro, meu amigo completará 31 anos. Continua solteiro, não tem filhos e ainda mora com os pais – um técnico de manutenção predial, oriundo de Minas, e uma empregada doméstica baiana. Os três dividem um pequeno apartamento, já pago, e uma renda mensal que dificilmente ultrapassa os 1.500,00. Pelos critérios do governo federal, pertencem à nova classe média, nomenclatura que não os convence muito. Sentem-se menos pobres do que em outras ocasiões, mas ainda pobres.
– Você pensa que sou otário por não votar?
– Otário? Não… Já ouviu falar em Thoreau? Era um intelectual da gringa. Henry Thoreau. Ele defendia que as pessoas não deveriam pagar impostos nem votar se considerassem o Estado injusto. Chamava isso de “desobediência civil”.
– Uma espécie de protesto?
– Exato.
– E você concorda com o cara?
– Concordo mais com Platão, o filósofo grego. Conhece?
– Tô ligado no Platão.
– Ele dizia o seguinte: o problema de quem não gosta de política é que acabará governado por aqueles que gostam.
– Vixe! Matou a pau o Platão!
Três dias depois, Claudio me acessou novamente pelo Facebook.
– Fiquei brisando no Platão, mano.
– Refletiu sobre aquela frase dele?
– Refleti à pampa. O homem entendia das coisas, né? Tenho muito que aprender com os pensadores da antiga.
– Decidiu votar, então?
– Sim. Percebi que não votar é coisa de orgulhoso, de gente antissocial. Tipo o coxinha que se julga melhor do que os outros. Quando deixo de votar, entro numas de bancar o superior e me coloco acima de todo mundo que sai de casa para escolher um candidato.
– Boa conclusão. E já resolveu se vai de Aécio ou Dilma?
– Vou apoiar a Dilma.
– Por quê?
– Porque morei em barraco de madeira na infância.
– Morou? Não sabia…
– Morei, truta! E quem viveu na favela não pode votar em playboy. É nóis!
Ontem, após uma semana sem notícias do meu amigo, tomei a iniciativa de chamá-lo pelo Whatsapp.
– Feliz com a vitória da Dilma?
– Não dei a mínima.
– Ué? Você não votou nela?
– Nem. Fui grafitar.
– Desencanou outra vez de votar? E aquele papo de orgulho, de gente antissocial?
– Depois da nossa conversa, troquei uma ideia sobre o assunto com uns colegas da quebrada, um pessoal que odeia política e também não costuma votar. Fiquei até com medo de levar um couro dos malucos: ‘Qualé, Claudio, vai ouvir blá-blá-blá de bacana?’.
– Eu sou o bacana?
– Para os meus colegas, sim… Eles continuaram buzinando na minha orelha: ‘Ô, feio, vai eleger vacilão? PT, PSDB, tanto faz! Tudo corja! Antissocial é quem aceita as regras do jogo sujo e diz amém nas urnas’.
– Por que você não contra-argumentou citando a frase do Platão?
– Citei, mas os caras responderam que a época do Platão já passou. Na periferia, a chapa é quente, brother! Não tem filósofo grego que segure a onda, não.
– Abdicando de votar, você perde a moral para cobrar os políticos.
– Cobrar o quê?
– Melhorias, ué. Na saúde, na educação, no transporte…
– Tá me tirando, mano? Você realmente acredita que tubarão vai ligar para cobrança de peixinho? Político só escuta a voz do dinheiro.
– Quanto pessimismo, velho!
– Pessimismo? Você precisa colar por aqui. Faz tempo que não aparece. Quando vier, a gente dá um rolê. Vou lhe mostrar o inferno…
– Sei do que você está falando. Já andei muito pela periferia.
– Desculpe, irmão, você não sabe. Uma coisa é visitar a quebrada, outra coisa é morar na quebrada. Você apenas imagina o inferno. Eu frito no caldeirão do demônio desde que nasci.
– E fritará para sempre?
– Para sempre, man! Nada vai mudar. A temperatura do caldeirão pode até diminuir um pouquinho dependendo de quem toca o barco lá em Brasília, mas o inferno jamais deixará de ser o inferno.
Segundo o Tribunal Superior Eleitoral, Aécio ganhou de Dilma no Capão Redondo, tradicionalmente um reduto petista. Ele abocanhou 50,43% dos votos válidos. Ela, 49,57%.
Publicado segunda-feira, 3 de novembro de 2014 às 8:42 pm e categorizado como Blog. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.