A omissão dos justos

“[Durante a festa de aniversário na praça,] a cadelinha corria de um lado para o outro, confraternizando com todos, sem discriminação entre humanos e animais. Até aparecer um cachorro preto, também muito simpático, que tinha o dobro do tamanho da cadelinha e que passeava desavisado, na coleira, ao lado da dona. A cadelinha da raça Jack Russell notou imediatamente o recém-chegado e se aproximou, como vinha fazendo com os outros seres vivos. Mas em poucos segundos já estava engalfinhada com o pobre cachorro, depois de ter avançado no pescoço dele com fúria assassina, latindo e rosnando, como se estivesse num teste para o filme A Profecia. O cachorro tentava entender e se defender como podia da violência do ataque. Quando a dona da cadelinha enfim se adiantou para apartar a briga, como se tudo aquilo fosse a coisa mais natural do mundo, o marido, já com a caipirinha na mão, virou-se pra mim e disse, com um sorriso maroto de cumplicidade: ‘Basta preto querer entrar na festa’. Como eu demorei a entender, ele repetiu, para não haver dúvida: ‘Ela não deixa preto entrar na festa’.
Eu não sabia como reagir. Decidi sair de perto. Continuo inconformado com a  cara-de-pau do sujeito que conta a um estranho na rua a mesma piada que deve ser sucesso garantido entre os amigos que ele recebe no aconchego do lar. Que é que faz um sujeito supor que outro branco, por ser branco, numa festa de crianças nos Jardins (na qual havia negros entre os convidados), deve ser necessariamente racista, como ele? O episódio aconteceu poucas semanas antes de um júri nos Estados Unidos decidir não indiciar o policial branco Darren Wilson pela morte de um jovem negro desarmado, Michael Brown, em Ferguson, Missouri, desencadeando uma série de protestos contra a discriminação racial, nas principais cidades do país. A propósito do caso, a escritora de origem haitiana Edwidge Danticat publicou no blog da The New Yorker uma pequena lista com os nomes de vítimas negras da arbitrariedade policial americana dos quais ela se lembra desde que se mudou para os Estados Unidos, supondo que muitos outros nomes nunca chegaram nem chegarão à mídia ou aos seus ouvidos. Fiquei tentando me lembrar do nome de alguma vítima da discriminação racial da polícia brasileira. Em vão. E fiquei pensando se o fato de eu não lembrar (não saber) nenhum nome e de nunca ter pensado nisso não me faz, mesmo a contragosto, um candidato natural a ouvinte das piadas do dono da cadelinha Jack Russell.”

Trecho de Preto Não Entra, artigo de Bernardo Carvalho

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