Mísera fortuna

“Era sexta-feira, 9 de janeiro, no início da noite. (…) [Durante a primeira manifestação do ano contra o aumento de 50 centavos na tarifa do ônibus em São Paulo,] os black blocs e alguns outros tinham se adiantado e começavam a dar chutes em portas de ferro, arrancavam latas de lixo e  espalhavam o conteúdo no meio da rua. Foi quando o vi. Vestido de amarelo, ele estava alheio aos mascarados de preto. Mas seguia-os. Sabendo como os black blocs agem nos protestos, ele me contaria em seguida, costuma segui-los para recolher as latinhas de refrigerante e cerveja. E assim fazia esse balé surreal em que ele parecia recortado de uma outra cena, alheio ao que acontecia, atento apenas ao chão, caminhando lentamente na vanguarda da marcha enquanto ao redor o caos se instalava.
Abordei-o, me apresentei como jornalista, e ele me disse que se chamava Ailton da Silva, tinha 58 anos e morava em São Miguel Paulista, na zona leste, uma das regiões mais pobres da capital. Aquela que alaga a cada chuva e é a primeira a ficar sem água nas torneiras nesses tempos em que São Paulo se aproxima mais e mais de um cenário de distopia. Para juntar o equivalente ao valor de uma passagem de ônibus, depois do aumento – R$ 3,50 –, Ailton precisaria, pelos seus cálculos, de quase 100 latinhas. Ele estava bem longe disso. Algo para aqueles que dizem ‘é só 50 centavos’ pensarem. ‘Só’ para quem?”

Trecho do artigo Meu ‘confronto’ com a polícia de Alckmin, escrito por Eliane Brum

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