E se o destino bater tarde demais à minha porta?
E se o destino bater tarde demais à minha porta?
“No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.
A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.
Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.
Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.”
A garota, muito bonita e inflamada, usando a camisa da seleção brasileira, passa diante de dois rapazes que veem a manifestação contra Dilma em São Paulo.
– Que gata, hein?, comenta um dos moços.
– Lindíssima! Podia me apaixonar por ela, mas é coxinha. Quero distância!
– Eu idem. Não vou chegar nem perto. Gostosa filha da puta!
Enquanto observava a cena, me perguntei se estávamos mesmo na avenida Paulista ou na Verona do século 16. Será que, como em Romeu e Julieta, os Montecchios e Capuletos de hoje só irão se reconciliar depois de pagarem um preço alto demais?
“A massa [que se manifestou ontem nas ruas do Brasil] odeia o PT, odeia a presidenta e odeia a corrupção do PT e da presidenta. Esse ódio é bem variado de fato: vai desde um grito pelo assassinato da presidenta, passando pelo golpe militar, resvalando na suástica nazista que tenebrosamente tremulava em Copacabana, até chegar ao cidadão chamado de bem, aquele que estava realmente protestando por um país melhor e pelo fim da corrupção. Só que isso, para mim, é uma pauta vazia, boba e mal direcionada, ainda que as pessoas tenham o direito de defendê-la. (…) A pauta contra a corrupção é vazia porque todos nós somos contra a corrupção na frente dos outros. O corrupto é contra a corrupção. O imoral clama sempre por moralidade.
Acho que o cidadão que participou com boas intenções das passeatas deve ao menos ter a postura crítica de perceber o papel que lhe cabe como indivíduo dentro de um movimento complexo de massa. Refletir serenamente sobre seus ideais, seus valores e perceber se eles batem com o que a manifestação, no fundo, prega. Adolf Eichmann, tenente alemão responsável pela logística dos trens que levavam os judeus para os campos de extermínio, era um ser humano que foi engolido pela máquina nazista. No relato de Hanna Arendt em A Banalidade do Mal, ele era um burocrata estúpido que só cumpria ordens. O destino fatal dos judeus não lhe dizia respeito, ele apenas fazia o seu trabalho maquinalmente. Ele não tinha nada contra os judeus, apenas estava exercendo seu ofício. Eichmann é o retrato da falência do humano, do ser que se objetifica, que serve como peça num quebra-cabeça gigantesco que não se enxerga quando está nele.
Aos colegas que estiveram nas ruas, cuidado para não se tornarem uma mera peça. Estudem, leiam, reflitam sobre a realidade do país e a sua própria. Angustiem-se agora com suas escolhas e pensem sempre muito bem antes de se juntarem a uma multidão em que as vozes mais ferozes sobressaem e abafam as vozes humanas. Reflitam e entendam que não existe um inimigo. Existe uma estrutura corrupta que precisa ser reformada. E isso exige tempo e, principalmente, democracia para acontecer.“
“Os homens estão me cansando. Acho que vou tirar um ano sapático.”
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