– Depressa, tragam as velas!, suplica a mulher quando constata que o marido, muito doente, está prestes a morrer.
– Não precisa, querida, balbucia o pobre homem.
– Por que não, meu velho?
– Prefiro ir a remo.
– Depressa, tragam as velas!, suplica a mulher quando constata que o marido, muito doente, está prestes a morrer.
– Não precisa, querida, balbucia o pobre homem.
– Por que não, meu velho?
– Prefiro ir a remo.
“Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra exista música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.”
“Ai, que saudades de 2014, quando o único que tinha quebrado era o Eike!”
“Hoje me tornei oficialmente cidadão de Portugal. Eles não dizem isso quando lhe entregam os documentos: ‘Você é oficialmente cidadão da República Portuguesa’. Os funcionários do consulado estão ocupados, além do mais veem portugueses repentinos como eu o tempo todo. Não têm tempo para palavras ritualísticas. Deram-me o cartão de cidadão e já está: sou português.
Não me perguntaram se um dia pensei que viraria português. Não, nunca tinha pensado nisso. Um dia acordei e já está. Do mesmo modo, um dia nasci e era carioca. Do mesmo modo, um dia meus pais resolveram ir viver no Chile e virei chileno.
Outras coisas que não me perguntaram no consulado:
1. O que você é agora? Sou, desde antes, um hahai. Este é o nome que os nômades Afar, do Chifre Africano, dão aos migrantes que atravessam o continente em direção ao Mar Vermelho. Hahai quer dizer ‘povo do vento’ – um nome bonito a ser dado por povos nômades. Mais vento que um nômade.
2. Você já viveu em Portugal? Nunca, mas meu tempo aqui em São Paulo se aproxima do fim. Ouço os anseios do mar, como o d. Dinis do Pessoa, já plantei as naus a haver.
3. Promessas feitas por poetas lhe parecem o bastante para migrar? Não, eu mesmo invento minhas promessas. Eu mesmo as nego. Só gosto desse poema.
4. O que você pretende fazer em Portugal? Tornar-me português. Reaprender as ênclises. Andar os 1.230 km de costa a ver se, no final da caminhada, fiquei português propriamente. Tenho fome de identidade.
5. Não tem medo do desemprego? Sou formado em Letras. Graduei-me com medo. Só estou apto a trabalhar como tradutor de português para português.
6. Não tem medo da situação política? Não.
7. Tem um plano sólido? Não.
8. Tem todos os documentos? Tenho documentos demais. Pick a card, any card. Os documentos são a parte mais pesada da minha mala.
9. Brios o bastante para ser correspondente de guerra? Sim.
10. Trabalhar na colheita com os romenos? Sim.
11. Dinheiro? Nenhum.
12. Não lhe parece uma empreitada natimorta? Sim.
13. Não lhe parece melhor ficar onde está? Sim.
14. Você pode só passar as férias? Sim.
15. Você vai do mesmo jeito? Sim.
16. E o amor às raízes? Aos botânicos.”
“Deixa ver se entendi: o senhor quer registrar uma ocorrência de desaparecimento porque não responderam seu e-mail?”
“Quem olha nossas postagens no Instagram pode pensar que estamos vivendo o melhor momento de nossas vidas. Não me interpretem mal – nós até estamos, mas nem sempre tomamos sorvetes ao sol e curtimos paisagens bonitas… Até agora, acho que já esfregamos 135 banheiros, espalhamos 250 quilos de esterco de vaca, movemos duas toneladas de pedras com pá, assentamos 60 metros de calçada, arrumamos 57 camas e lustramos nem sei quantos copos de vinho. Nosso orçamento ficou muito apertado e somos forçados a usar a criatividade, além de recorrer a pequenas conversas estimulantes, para contornar a maioria dos problemas (e algumas crises de choro leves). Comemos geleia com biscoitos na maior parte dos dias, dormimos apenas cinco horas por noite e carregamos nossas malas extremamente pesadas por ruas de paralelepípedos à uma da madrugada, tentando encontrar acomodação (porque nosso orçamento não inclui as tarifas de ônibus, claro).”
“Se condenado por atropelamento, Pitangui Filho pode pegar de cinco a 30 minutos de prisão.”
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