“Eu tinha medo de dormir na casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredores, escadarias, portas grossas e pesadas que rangiam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas, pátios calçados com pedras antigas… De dia, tudo era luminoso. Mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava no sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio. (…) Quando todos dormiam, ele acordava, e começava a contar estórias. Só muito mais tarde vim a entender o que ele dizia: ‘Tempus fugit‘. E eu ficava na cama, incapaz de dormir, ouvindo sua marcação sem pressa, esperando a música do próximo quarto de hora. Eu tinha medo. Hoje, acho que sei por quê: ele batia a Morte. (…) Tenho saudades daquele relógio. Por sua tranquila honestidade, repetindo sempre, incansável, ‘Tempus fugit‘. Ainda comprarei um outro que diga a mesma coisa. Relógio que não se pareça com este meu, no meu pulso, que marca a hora sem dizer nada, que não tem estórias para contar. Meu relógio só me diz uma coisa: o quanto eu devo correr, para não me atrasar. Com ele, sinto-me tolo como o Coelho da estória da Alice, que olhava para seu relógio, corria esbaforido, e dizia: ‘Estou atrasado, estou atrasado…’ Não é curioso que o grande evento que marca a passagem do ano seja uma corrida, corrida de São Silvestre? Correr para chegar aonde? Passagem de ano é o velho relógio que toca o seu carrilhão. O sol e as estrelas entoam a melodia eterna: ‘Tempus fugit‘. E porque temos medo da verdade que só aparece no silêncio solitário da noite, reunimo-nos para espantar o temor, e abafamos o ruído tranquilo do pêndulo com enormes gritarias. Contra a música suave da nossa verdade, o barulho dos rojões… Pela manhã, seremos, de novo, o tolo Coelho da Alice: ‘Estou atrasado, estou atrasado…’ Mas o relógio não desiste. Continuará a nos chamar à sabedoria.”
Trecho de O Relógio, crônica de Rubem Alves
Publicado
terça-feira, 5 de janeiro de 2016 às 11:05 pm e categorizado como Blog.
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Por um 2016 menos apressado
“Eu tinha medo de dormir na casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredores, escadarias, portas grossas e pesadas que rangiam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas, pátios calçados com pedras antigas… De dia, tudo era luminoso. Mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava no sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio. (…) Quando todos dormiam, ele acordava, e começava a contar estórias. Só muito mais tarde vim a entender o que ele dizia: ‘Tempus fugit‘. E eu ficava na cama, incapaz de dormir, ouvindo sua marcação sem pressa, esperando a música do próximo quarto de hora. Eu tinha medo. Hoje, acho que sei por quê: ele batia a Morte. (…)
Tenho saudades daquele relógio. Por sua tranquila honestidade, repetindo sempre, incansável, ‘Tempus fugit‘. Ainda comprarei um outro que diga a mesma coisa. Relógio que não se pareça com este meu, no meu pulso, que marca a hora sem dizer nada, que não tem estórias para contar. Meu relógio só me diz uma coisa: o quanto eu devo correr, para não me atrasar. Com ele, sinto-me tolo como o Coelho da estória da Alice, que olhava para seu relógio, corria esbaforido, e dizia: ‘Estou atrasado, estou atrasado…’
Não é curioso que o grande evento que marca a passagem do ano seja uma corrida, corrida de São Silvestre? Correr para chegar aonde? Passagem de ano é o velho relógio que toca o seu carrilhão. O sol e as estrelas entoam a melodia eterna: ‘Tempus fugit‘. E porque temos medo da verdade que só aparece no silêncio solitário da noite, reunimo-nos para espantar o temor, e abafamos o ruído tranquilo do pêndulo com enormes gritarias. Contra a música suave da nossa verdade, o barulho dos rojões… Pela manhã, seremos, de novo, o tolo Coelho da Alice: ‘Estou atrasado, estou atrasado…’ Mas o relógio não desiste. Continuará a nos chamar à sabedoria.”
Trecho de O Relógio, crônica de Rubem Alves
Publicado terça-feira, 5 de janeiro de 2016 às 11:05 pm e categorizado como Blog. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback a partir do seu site.