Sem álcool, com Jaguar

Lembranças de um amnésico alcoólico que se tornou abstêmio


De repente, após dar mais um gole na cerveja sem álcool, o homem de 84 anos vira um menino de 7 ou 8. “Não posso sair assim. Preciso avisar a fera”, diz, repousando a latinha de Brahma sobre um móvel da sala ampla e agradável. Ergue-se vagarosamente da cadeira, arruma o boné azul-marinho que lhe esconde a calvície e caminha em direção à ala íntima do apartamento. Quase não tira os pés do chão. Arrasta-os como se deslizasse com patins invisíveis e lentíssimos. É magro, mas oculta sob a camiseta branca uma barriga avantajada, que o incomoda. “Costumava andar pela orla inteira, do Leblon até o Leme. Andava pra cacete, todos os dias, compreende? Quilômetros e quilômetros. Por isso, ficava enxutão. A barriguinha em ordem e tal. Só que agora… Arranjei uns calos plantares que me torram o saco. Nos dois pés, acredita? Uma dor infernal. Não consigo mais andar direito.” Expõe o drama sem fazer drama nenhum. Termina a explicação com uma gargalhada peculiar, que volta e meia o assalta, à semelhança de um cacoete, mesmo quando não está contando nada engraçado.
“Vou descer”, grita diante de um quarto. Sua mulher responde lá de dentro, sem abrir a porta: “Descer? Por quê?” Ela tem a voz cavernosa de quem já fumou muito. “Vamos fugir do barulho, dessas marteladas de merda”, esclarece o marido. Uma reforma no vizinho de cima torna a sala pouco adequada para entrevistas. “Não se atrase, hein? Nem sonhe esquecer o nosso compromisso de hoje à tarde. Converse por uma hora e suba”, ordena a mulher. Observo os porta-retratos espalhados pelo ambiente e me pergunto qual das imagens femininas corresponde à da senhora linha-dura. Não consigo adivinhar, todas me parecem amistosas.
“Ela é sempre brava?”, arrisco quando entramos no elevador que nos conduzirá do nono andar para o térreo, onde um hall iluminado (e silencioso) nos abrigará. “Brava? Pooorra!”, confirma o octogenário, alisando o cavanhaque inteiramente alvo e soltando outra gargalhada, que agora lhe avermelha o rosto. “Sangue quente! Filha de um italiano que fugiu da Úmbria por causa do fascismo. Faz o tipo aguerrida, sabe? Integrou o Partido Comunista no tempo em que ainda havia esquerda e direita. Pobre de mim se a contrariar. Ela…” Interrompe a frase e, depois de uns segundos, confessa: “No fundo, acho tudo uma curtição.” O lendário Jaguar – Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, um dos maiores cartunistas do país, anárquico, mordaz, sacana, à beira dos 65 anos de profissão – gosta mesmo é de rédeas curtas.

Chapeuzinho
Passa um pouco das onze e quinze. Naquela manhã de quinta-feira, em pleno outubro, a temperatura do Rio de Janeiro se revela mais baixa que de costume. Não à toa, por cima da camiseta, o desenhista veste uma jaqueta jeans. Tão logo se acomoda no sofá do hall, retoma o papo sobre a mulher, Celia Regina Pierantoni, e a cobre de elogios. “É médica das boas, professora universitária, uma sumidade em saúde pública. Carioca como eu, o que sempre me espanta – estão praticamente extintos os cariocas que não fugiram do Rio. Um brotinho, graças aos céus! Quase 20 anos mais nova que o Matusalém aqui. Moramos juntos desde 1989, e a louca ainda sente ciúme de mim. Imagine, amargar ciúme por uma ruína dessas… Às vezes, reclama da nossa relação, promete que vai embora. Eu boto panos quentes, jogo uma conversa, e seguimos adiante.” A  gargalhada irrompe de novo e com tal intensidade que o faz cerrar os olhos.
“Na verdade, somos muito parceiros.” Se alguns enxergam um quê de autoritarismo no pulso firme da médica, Jaguar o encara como zelo. “Ninguém manda em ninguém, não. Ninguém obedece ninguém.” Subitamente, e mais uma vez, o menino de 7 ou 8 anos toma a palavra: “Celia sabe que não tenho capacidade de sobreviver por minha conta, que preciso de cuidados especiais. Ela me salvou…”
madrugada ia alta quando Jaguar viu a médica entrar no Lamas. O cartunista – à época, um beberrão contumaz – frequentava o centenário bar e restaurante do Flamengo com um séquito de comparsas: o pintor Ferdy Carneiro, o jornalista e agitador cultural Albino Pinheiro, o cineasta Paulo César Saraceni… Na ocasião, porém, enchia a cara sozinho. Recém-saída de um congresso, Celia Pierantoni estava morrendo de fome, mas a cozinha do Lamas já fechara. “Eu mal conhecia a moça”, relembra Jaguar. “Mesmo assim, me aproximei e lancei a isca: ‘Se você topar, posso acompanhá-la até o Centro. Os restaurantes de lá continuam abertos.’” Ela sorriu.
Depois do jantar, Chapeuzinho levantou-se da mesa para se despedir. “Me leva com você?”, sugeriu o Lobo Mau. “Para onde?”, surpreendeu-se a doutora. “Adivinha”, rebateu o cinquentão. O romance começou naquele amanhecer.
Ocorre que o cartunista acabara de encerrar um relacionamento longo e andava de rolo com uma artista plástica, também habituê do Lamas. “Uma milionária do Piauí. Ou do Maranhão? Teresina ou São Luís? O fato é que a ricaça tinha um apartamento gigante no Rio e outro bem maior no Norte. Ou Nordeste? Sabe Deus por que, a dama se engraçou com o papai que vos fala e me convidou para coabitar.  Queria viver comigo lá no Nordeste, saca? Ou no Norte? Eu aceitei, lógico. Era a minha chance de amarrar o burro. Podre de rica a mulher… Ela comprou as passagens e me informou que viajaríamos no dia tal.” Só que, no dia tal, Jaguar acordou ao lado da médica. “Entendeu a confusão? Me enrosquei com a Celia na véspera de embarcar.” Sem o menor tato, ligou para a artista: “Não vou mais. Arrumei outra.” A piauiense – ou maranhense? – jamais o perdoou. “Ficou putaça, evidentemente. Quem não ficaria?”
Assim que bateu os olhos no novo parceiro da mãe, a filha da médica, ainda criança, protestou: “Ele é muito velho! Credo!” Velho e meio sujo. “Eu não fazia a barba. Parecia um mendigo, pô!” O namoro com a descendente de italianos se transformou no quarto casamento do cartunista. Ou quinto? O número oscila tanto quanto a memória de Jaguar, que já se definiu como “um amnésico alcoólico”. Embora derrape nas estatísticas conjugais, o desenhista lembra perfeitamente que “se enforcou” bem cedo. “Casei pela primeira vez em 1955” – com a poeta, romancista e tradutora paraense Olga Savary. Os pombinhos estavam na flor dos 20 anos e mantiveram a união por mais de duas décadas.
Ironicamente, o rei da esbórnia acabou se convertendo em Homo matrimoniales. “Depois da Olga, emendei uma mulher na outra. Pum, pum, pum. Nunca morei uma semana sozinho.” Aprumando-se no sofá, ajeita os óculos redondos e assume um ar circunspecto. “Vou lhe confessar um negócio seriíssimo: não tenho vocação para pular a cerca. Salvo raras exceções, sou um sujeito fiel. Menos por virtude e mais por preguiça. Dá um trabalhão administrar filiais. Basta a matriz.” E cai na gargalhada.

Viação Jurema
Jaguar pode até preferir a fidelidade, mas Mara Branca definitivamente não a priorizava. “Era surubeira”, diz o cartunista sobre a gaúcha com quem permaneceu casado durante dez anos. Conheceu-a logo após se separar de Olga Savary? “Não me pergunte a ordem das coisas, por favor. Ordem não é comigo. A gaúcha se chamava… Peraí… Cacete! Esqueci o nome da gaúcha. Acho que tinha algo de alemão… Eu a apelidei de Mara Branca. Um pedaço de mulher, muito bonita. Trabalhava de secretária e adorava sauna. Ou melhor: adorava as sacanagens que rolavam dentro das saunas. A tarada passava o rodo no que pintasse – machos, fêmeas, extraterrestres. De vez em quando, levava umas meninas da sauna lá para casa e promovíamos um grupal. Ou, então, eu posava de voyeur e apenas admirava as estripulias das donzelas. Não me importava a mínima com as loucuras da Mara, embora impusesse os meus limites: ‘Pelo amor de Deus, só traga mulheres para cá. Marmanjos, nem a pau!’”
O desenhista vai se mostrando capaz de narrar os episódios mais picantes com a naturalidade de quem descreve uma ida à feira e sem baixar o tom de voz, especialmente grave e alto. Um sátiro em pele de vovô. Enquanto ele relata as peripécias de alcova, moradores do condomínio – um edifício sofisticado no bairro do Leblon – adentram o hall e, à espera do elevador, ouvem trechos da conversa. Parecem oscilar entre a curiosidade, o espanto e o constrangimento.
Muito antes da Mara Branca, houve a Mara Preta. “Chamava-se Maria Auxiliadora – ou Aparecida? – não sei das quantas.” Era negra, mineira, empregada doméstica e analfabeta. Reza a lenda que prestava serviços no apartamento onde Jaguar vivia com a primeira mulher. Ele não confirma, nem desmente. “Sem comentários. Boquinha de siri, porque a história toda me desabona. Só conto que troquei as mordomias de Ipanema por Duque de Caxias.”
No município da Baixada Fluminense, o cartunista e Mara Preta compartilharam “um cafofo” fronteiriço à cidade de Belford Roxo. A relação também perdurou uma década. “Diferenças à parte, a gente se gostava bastante. Ela me recebia em casa dançando. Não precisava de música, não. Dançava em silêncio. Linda, engraçada e imensa. Media 1,82 metro. ‘Me amarro em baixinhos’, dizia, para me deixar menor do que sou (tenho 1,72 metro). Eu lhe comprei um anel de casório e a mimava com roupas africanas. Depois, lhe descolei emprego de garçonete num hotel da praia. Ela ia trabalhar fantasiada de baiana. Às vezes, claro, o pau comia entre nós. Certa ocasião, a filha da puta gritou quando me pegou mastigando uma saladinha: ‘Não engula, por favor!’ A desgraçada havia moído vidro na gororoba porque me flagrou de papo com uma perua. Queria me matar! Só que, na hora H, se arrependeu.”
Religiosa, Mara Preta incorporava espíritos repentinamente. “Estávamos transando e, do nada, baixava um caboclo ou algo que o valha. Ela revirava os olhos e falava grosso, como um monstro. Eu me cagava de medo.” Em determinado momento, o casal se mudou para a Lapa, o célebre bairro boêmio. “Mas a Lapa daquele tempo nem de longe lembrava a de agora. Princesinhas da Zona Sul e turistas não pintavam por lá. A bandidagem imperava.” O cartunista e a mulher habitavam um treme-treme e tinham como vizinho um dos mais cultuados malandros do Rio: Madame Satã, filho de Ogum e Iansã, capoeirista e homossexual. “Quando a Mara incorporava e me punha cabreiro demais, só me restava apelar. Eu saía correndo e batia na porta do Satã: ‘Acode! Acode!’ Ele aparecia com aquelas unhas longuíssimas – ‘Jaguar, porra!’ (o homem usava ‘porra’ como vírgula) –, me acompanhava até o apê, segurava a Mara e cantava para o santo subir.”
Vários amigos do desenhista não aprovavam aquela união. “Um tremendo preconceito! Bancavam os intelectuais, os libertários, mas na hora do vamos ver… Apenas o Ivan Lessa gostava da Mara. Já ouviu falar do Ivan, não? Jornalista, escritor, uma língua afiadérrima. Ele se divertia à beça com a Mara. Dizia barbaridades para a danada, que morria de rir. Agora, os outros… Um cartunista argentino deixou de andar comigo quando soube do meu casamento. ‘Você é um deficiente moral!’, esbravejou. Um editor dos mais importantes me convidou para jantar na casa dele, mas fez a ressalva: ‘Não traga a preta.’ Resultado: briguei com a maioria dos caras e me isolei em Duque de Caxias.” Na Baixada Fluminense, contudo, a situação se inverteu. “Os crioulos de lá não suportavam ver aquela negona gostosa junto de um branco azedo. Me discriminavam, acredita? O único problema da Mara é que me traía com a Viação Jurema inteira. Um dia, me trocou de vez por um cobrador. Negão…”

AA
T
odas as mulheres de Jaguar fumavam desbragadamente. Celia Pierantoni só conseguiu largar o vício há pouco tempo. “Era uma chaminé. Traçava quatro maços diários de cigarro. Sem contar as cigarrilhas, os charutos… Uma noite, degustou um Havana e me disse: ‘Chega!’ Nunca mais tocou em cigarro, cigarrilha, charuto. Só que não jogou nada fora. Manteve o estoque doméstico e o desovou lentamente, oferecendo fumo para os amigos que nos visitavam.”
O cartunista desejou com veemência aderir à “esquadrilha da fumaça”. Como sempre admirou os fumantes, por julgá-los mais divertidos, tentava imitá-los. Acendia um cigarro, dava umas tragadas, mas… “Sabe o que tenho em comum com Marcel Proust e Che Guevara? A asma!” Por causa dela, passava mal tão logo poluía os pulmões. Tossia, se asfixiava, quase vomitava. Padecia o mesmo quando se aproximava da maconha. “Melhor assim. Bebendo o tanto que bebia, não poderia fumar nem consumir outros tipos de droga. Se combinasse o álcool com cigarro, erva, cocaína ou ácido, estaria mortinho agora. Devo minha sobrevivência à asma.” Também lhe deve boa parte da formação intelectual. “Na juventude, a doença me impossibilitava de dormir direito. Para suportar a insônia, lia à pampa – romances, contos, poemas. Depois que a asma acalmou um pouquinho, não li mais porra nenhuma.”
Jaguar tomou o primeiro drinque na adolescência. Beirava os 15 anos e saboreou uma caipirinha. Daí em diante, meteu o pé na jaca como um talibã a serviço de Baco. Só parou com 78 anos. “Parei, não. Me pararam. O médico mandou.” Quando recebeu a intimação, já colecionava um carcinoma no fígado e dois avcs. Milagrosamente, nenhum dos males lhe deixou sequelas. “Eu virava 12 latas de cerveja por dia, fora o chope, o uísque, o gim, a cachaça, o Steinhäger e o Underberg. Uísque, aliás, é a bebida imbatível. Uísque oito anos. Puta que pariu! Há quem o deguste… Viadagem! Sempre tomei uísque de um gole só, para dar aquele tranco, manja? De vinho, não gostava, à exceção dos vagabundos, os de garrafão, horrorosos. Sangue de Boi, conhece? Me esbaldava com Sangue de Boi. Entornava litros daquela porcaria. Hoje cumpro o dever de casa e me limito à cerveja sem álcool. Quinze latinhas diárias ou mais. Falam que, em cada uma, há 0,5% de álcool. Não é tão ruim. De 0,5 em 0,5, chega-se a um resultado expressivo.”
O cartunista afirma, orgulhoso, que jamais enfrentou uma ressaca e que dificilmente ficava de porre. “Tinha uma resistência inacreditável.” E um anjo da guarda zelosíssimo. “Eu curtia moto, lambreta, buggy.” De madrugada, saía alcoolizado dos bares e dirigia até Arraial do Cabo, a 160 quilômetros do Rio. Nunca sofreu nenhum acidente grave. Driblou todos os perigos à maneira torta de Garrincha. “Por isso, no dia em que meu fígado pifou, levei um susto. Encarei aquilo como uma traição. O maldito me corneou.”
No inventário trágico de Jaguar, não há nada pior do que parar de beber. “Nem parar de foder me doeu tanto. Juro! A bebida me deixava inteligente pra caralho. Mais bonito, mais descontraído. No fundo, me considero um camarada tímido. Preciso de aditivos para me soltar. Ultimamente, venho sentindo de novo o sabor do uísque. Na imaginação, né? E me pego salivando – o que é uma merda, porque enche o uísque de água.”
Dispensável acrescentar que, até pendurar “as chuteiras de pinguço”, o desenhista nem sequer cogitou procurar tratamento contra a dependência etílica. Terapia? No, thanks. Grupos de AA? “Esqueça! Não sou um alcoólico anônimo. Sou um alcoólico notório.”

Dry Martini
Q
uando resolveu abandonar os tragos, Jaguar agiu como Celia Pierantoni em relação às baforadas: preservou o estoque doméstico de bebidas, com a diferença de que nunca o desovou por completo. No apartamento do Leblon, junto à sala de estar, criou um cantinho que evoca os botecos cariocas. Um freezer e uma miniadega refrigerada se espalham por lá, além de duas pequenas mesas, típicas de bar adquiridas do cantor Paulinho da Viola. “Sempre preparo a bebida dos amigos e da Celia. Eu, aliás, ensinei o caminho das pedras para muito barman famoso do Rio. Os aloprados simplesmente não sabiam fazer Dry Martini. Aprenderam comigo, modéstia à parte. Minha receita é um estouro. Quer ver?” Com indisfarçável prazer, destrincha a lição: “Ponha no freezer uma taça em formato de ípsilon e uma garrafa de gim inglês – Gordon’s ou Tanqueray. Pegue um limão e o descasque. Jogue fora todas as azeitonas do recinto. Botar azeitona no Dry Martini configura crime hediondo, já que impregna de óleo a porra do gim. É coisa de americano babaca. Também se livre das coqueteleiras. Nada daquela palhaçada de chacoalhar o Dry Martini. Retire a taça do freezer e esfregue na borda a casquinha de limão. Depois, encha a taça com o gim. Arranje uma garrafa de Noilly Prat, o vermute francês, e pingue seis gotinhas na taça. Pronto! Minimalismo puro. Somente aquele britânico, o primeiro-ministro bochechudo… Como se chamava?” Winston Churchill? “Sim, o Churchill. Somente ele, que tinha bronca da França, preparava um Dry Martini mais minimalista. Era assim: despeje o gim na taça, passe a casquinha de limão pela borda, olhe fixamente para a garrafa de Noilly Prat e tome o gim.”
De tanto perambular por bares, Jaguar se tornou expert em retratá-los. Assina cartuns sobre bebidas e bebedores desde 1952, quando iniciou a carreira, na revista Manchete (uma minúscula amostra deles, concebida em diferentes épocas, ilustra esta reportagem). Por 17 anos, dividiu-se entre a prancheta e o Banco do Brasil, onde exercia a função de escriturário. Das inúmeras publicações em que trabalhou, destacam-se outra revista, a Senhor, e os jornais Tribuna da Imprensa, Última Hora e O Dia, que deixou há três meses. “Deixei o cacete! Tomei um pé na bunda. Demitiram o idoso! Agora só me resta ver novela e futebol europeu.” Em 1969, integrou a equipe que fundou O Pasquim – é criador do ratinho Sig, o mascote neurótico do semanário. No auge da ditadura militar, o tabloide veiculou uma colagem que levou praticamente toda a redação para a cadeia, incluindo Jaguar. Tratava-se de uma paródia do ufanista Independência ou Morte, quadro que o pintor Pedro Américo concluiu em 1888. No original, envergando uma espada e sobre o cavalo, D. Pedro I dá o grito do Ipiranga. Na versão de O Pasquim, o imperador berra “Eu quero mocotó!”, repetindo o refrão de um samba rock de Jorge Ben.

Família
F
oi o pai do cartunista quem ofereceu para o filho adolescente a caipirinha primordial. “O temível inspetor Jaguaribe. Alto funcionário do Banco do Brasil. Insubornável e, por isso, terror dos gerentes. Papai bebia como gente grande. Mas, comparado com mamãe, não passava de um amador. Ela enxugava, brincando, uma garrafa de uísque em três ou quatro dias. Exímia pianista, tocava nosso Steinway de cauda pelas manhãs – Chopin, Ravel, Debussy. Eu acordava escutando aquelas maravilhas. A merda é que mamãe só consumia Drurys, um uísque barra pesada, estoura-peito. Tomava à cowboy, sem frescura nenhuma. ‘Mamãe, vou lhe arrumar coisa melhor.’ E desabava no apartamento dela com um escocês de primeiríssima linha. ‘Pode levar’, me intimava. ‘Prefiro o meu. O que você trouxe é muito fraquinho.’”
Jaguar teve apenas um irmão. “Fernando, o caçula. Bancário também. Todo certinho, me julgava um devasso. Pouco nos víamos. Eu não sabia nada dele. Quer dizer: sabia que ia ao cinema diariamente e que, mesmo adulto, vivia grudado em mamãe. Uma vez, quebrou o gelo e me telefonou, chorando: ‘Vou morrer!’ Estava com uma infecção generalizada. No enterro, um sujeito se aproximou de mim. ‘Sou o namorado do Fernando’, revelou. Homossexual enrustido, percebe? Viado, mas nunca contou para os parentes. Creio que morreu de Aids.”
Com Olga Savary, o cartunista gerou dois filhos. A primogênita, não encontra “há séculos”. “É dramaturga e escritora: Flávia Savary. Ganhou um monte de prêmios. Procure na internet.” Já o filho mais novo – “bonitão, surfista, talentoso” – enfrentou sérios problemas psíquicos. “Um cara doidaço, talvez esquizofrênico. Subia a Pedra da Gávea e passava a noite lá em cima. No Aterro do Flamengo, escalava os postes e tirava as lâmpadas. Em Ipanema, passeava sobre o parapeito do edifício onde os avós moravam. Décimo segundo andar, na varanda! Cruzava o parapeito de um lado para outro. As pessoas o observavam da rua, em pânico. Às vezes, desaparecia por semanas, meses. Cheguei a buscá-lo no Amapá após um sumiço de quase dois anos. Acabou morrendo jovem, aos 40 e poucos. Despencou de um cavalo que montava em pelo no interior do Ceará.” Quando abordou publicamente o assunto, Olga Savary contou outra história. À revista Marie Claire, em junho de 2011, disse que o filho, dependente químico, morreu dormindo numa pensão de Natal.
A recordação dos infortúnios não comove o cartunista. “Família… Não sou muito de família, não.” Nem de crianças ou cachorros. “Odeio ambos.Infelizmente, a recíproca não é verdadeira. Crianças e cachorros me amam. Bastou me avistarem e logo se insinuam. Cambada de masoquistas!” Jaguar tampouco nutre apreço por Deus. “Não acredito que exista. Mas acredito que, após a morte, irei para a lata do lixo. Melhor: gostaria que me cremassem e jogassem as cinzas nos botecos onde bebi. Se bem que vai faltar cinza…”
Uma e meia da tarde. A conversa, que deveria durar 60 minutos, já ultrapassa os 120. Quando se dá conta, o cartunista salta do sofá. “Puta que pariu! A Celia vai me matar!” Atabalhoado, caminha para o elevador. Tiro meu smartphone do silencioso e constato que acusa três chamadas. A primeira chegou às 13h08. As demais, logo depois: às 13h16 e 13h23. Eram todas da médica, que gravou um recado: “Olha só, preciso falar urgentemente com o Jaguar. Vamos perder nosso compromisso! Ele desceu sem o celular…” Embora polida, a mensagem deixava claro: Celia Regina Pierantoni estava irritada. Não consta, porém, que tenha assassinado o marido.
(revista piauí)

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