Xô, esquerda!

Pastores da Universal agora livram os fiéis de possessões comunistas?

“Você é de esquerda ou de direita?” Todo de branco, exceto por um inusitado par de luvas negras, o pastor faz a pergunta para o espírito que se apoderou de uma mulher. Trata-se de uma alma espalhafatosa. Sob influência dela, a mulher gargalha, solta gritos esganiçados e se remexe inteira. “De esquerda!”, responde a entidade pela boca da possuída. Pouco depois, o pastor avisa que vai promover “uma troca de banda”. Ou melhor: vai expulsar da mulher o espírito de esquerda para permitir que as forças de direita a confortem. Ele apresenta, então, um mural que se divide em duas partes. Uma reúne somente palavras de cunho negativo: desânimo, ódio, azar, brigas, vícios, angústia, miséria, depressão, medo… São os males reservados àqueles que se deixam enfeitiçar por criaturas sobrenaturais de esquerda. Já os que se entregam à “banda da direita” desfrutam unicamente de benesses, conforme demonstra a outra parte do mural: prosperidade, amor, saúde, alívio, coragem, entusiasmo, vigor, autocontrole, justiça…
Um vídeo de apenas 49 segundos, que circula pela internet, exibe as cenas sem trazer nenhuma informação adicional. Como o pastor se chama? Ele estava em que igreja? Quando ocorreu o ritual? As imagens não esclarecem. Mesmo assim, no dia 9 de novembro, o Esquerda Diário – site do Movimento Revolucionário de Trabalhadores, o MRT – postou o vídeo e o usou como mote para um artigo indignado. “Manipulação religiosa”, diz o enunciado que encabeça a matéria. Em seguida, a manchete proclama: “Um caso de exorcismo político no Brasil. Pastor da Universal exorciza ‘entidade de esquerda’.”
Assinado coletivamente pela redação do portal, o artigo começa com a citação de uma frase que atribui a Dom Quixote, o cavaleiro sonhador criado por Miguel de Cervantes: “Coisas verás, Sancho, que não acreditarás.” Os autores da matéria sustentam que a sentença espelha perfeitamente a realidade brasileira – ainda que o novelista espanhol jamais a tenha escrito, contrariando o que apregoa o senso comum. No parágrafo seguinte, o artigo afirma: “O papel de manipulação e charlatanice de alguns pastores chega a níveis surpreendentes. Depois de fazerem campanha para o candidato racista, homofóbico e machista, que defende a tortura e a violência, agora fazem sessões de exorcismo em seus fiéis para libertá-los das ‘entidades de esquerda’. Veja abaixo.”
Além de divulgar as imagens, o site reproduz o comentário que uma professora da rede pública carioca, Fabiana Oliveira, redigiu no Facebook, onde publicara o vídeo. Ela se declarava chocada com a cena e a associava igualmente à denominação do bispo Edir Macedo. “O diabo agora tem partido! A Igreja Universal inventou a ‘entidade de esquerda’! […] Alguém precisa PROCESSAR esse POVO!”
A partir daí, o artigo deixa de abordar o ritual e tece considerações mais genéricas sobre como as lideranças evangélicas ludibriam os devotos para lhes impor “a ideologia da classe dominante”, “os interesses dos capitalistas e dos ricos”. Também reitera que, durante o recente processo eleitoral, Silas Malafaia e outros pastores abraçaram a extrema direita e fizeram “lavagem cerebral” numa infinidade de cristãos com o intuito de levar Jair Bolsonaro à Presidência da República.
Entre os leitores que resolveram opinar, uma parcela ecoou o tom exasperado da matéria e se insurgiu contra o exorcismo. “Falsos profetas”, “uma vergonha”, “puro charlatanismo”, “exploradores da fé alheia”, escreveram. No entanto, houve quem alertasse que, por ignorância ou malandragem, o site disseminava uma mentira. “Entidades de esquerda existem, mas não têm a ver com política”, esclareceu um rapaz. “Perfeito. É muita merda que a gente lê”, concordou outro. Segundo tais internautas, portanto, o pastor não estaria enxotando da mulher um “encosto” petista, militante do PSOL ou adepto do comunismo.

Exus
“Parece uma Pombajira”, disse o sociólogo Reginaldo Prandi depois que lhe mostrei o vídeo. Estudioso das religiões afro-brasileiras, o professor emérito da USP se referia à entidade que tomou o corpo da mulher. No panteão da umbanda, Pombajiras são espíritos femininos que se manifestam com estardalhaço. Falam alto, dançam, rodopiam, fumam em piteiras e apreciam um bom champanhe. Destacam-se, ainda, pela sensualidade. Gostam de roupas provocantes, se perfumam e flertam sem nenhum pudor.
Nascida no Rio de Janeiro, durante as primeiras décadas do século XX, a umbanda resulta da mistura entre o catolicismo, o candomblé e o espiritismo. Reverencia não apenas deuses – ou orixás, como Ogum, Xangô, Oxum, Iemanjá e Oxóssi –, mas também as almas de humanos que já morreram. Elas podem incorporar tanto nos sacerdotes quanto nos fiéis e se distribuem em dois grupos. “O povo da direita abarca aquelas que, quando vivas, tiveram condutas socialmente aceitáveis”, explicou Prandi. É o caso dos pretos velhos (antigos escravos), dos caboclos (índios ancestrais), dos boiadeiros e marinheiros (que representam os trabalhadores remunerados), dos baianos (migrantes), dos erês (crianças) e dos príncipes (membros da elite). Em contrapartida, o povo da esquerda agrega as entidades que se comportaram de maneira antissocial enquanto viveram. Foram traficantes, ladrões, homicidas, trambiqueiros, prostitutas ou cafetinas. Os homens dessa linhagem recebem o nome de Exus e as mulheres, de Pombajiras. “Digamos que o povo da esquerda revela-se mais livre, mais identificado com a ética do candomblé, e o da direita se deixa influenciar pela moralidade cristã”, comparou o sociólogo, autor de Mitologia dos Orixás, entre outros livros.
Ele frisou, porém, que os umbandistas não hierarquizam os grupos. Não consideram a turma da esquerda pior que a da direita ou algo do gênero. Ambos os povos se equivalem no desejo de auxiliar os devotos. “Quando precisa de alguma coisa que não fere as regras sociais, como a cura de uma doença, o fiel clama pelos espíritos de direita. Mas, se almeja conquistar alguém casado, por exemplo, invoca os de esquerda.”
A conclusão é que, na umbanda, tais polaridades não guardam qualquer nexo com a política. “O mesmo vale para as cerimônias evangélicas de exorcismo”, ressaltou o antropólogo Ronaldo de Almeida, que escreveu o livro A Igreja Universal e Seus Demônios:Um Estudo Etnográfico. Por sugestão minha, o professor da Unicamp também assistiu às imagens replicadas pelo Esquerda Diário. “Tudo indica que, de fato, aquele ritual aconteceu dentro da Universal.”
De acordo com o pesquisador, a denominação fundada há quatro décadas introduziu e popularizou no país um tipo muito particular de exorcismo: antes do esconjuro, o pastor entrevista o espírito maligno, que quase sempre confessa ser um Exu ou uma Pombajira. “Para combater as crenças afro-brasileiras, a Universal se apropriou de códigos da umbanda e os reelaborou, adequando-os à dualidade cristã do bem e do mal. A esquerda virou, assim, o campo demoníaco, das trevas, em que habitam os ‘encostos’. E a direita se tornou o território divino, da luz. Os dois polos travam uma batalha infindável, só que em termos metafísicos, não políticos”, elucidou o antropólogo.
Após ver as imagens, a assessoria de comunicação da Universal confirmou por e-mail que o pastor exorcista faz parte da igreja, mas não informou o nome dele. Também salientou que o vídeo trata exclusivamente “de questões espirituais”. “Cremos naquilo que cremos e não aceitamos patrulhamento de qualquer espécie”, acrescentou.

Reacionarismo
S
ocialista, o Movimento Revolucionário de Trabalhadores surgiu em 1999. De início, se chamava Liga Estratégia Revolucionária – Quarta Internacional ou simplesmente LER-QI. Dezesseis anos depois, transformou-se em MRT. A organização, embora crítica dos governos petistas, reivindica a imediata libertação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. De quebra, rejeita “a casta autoritária de juízes”, “a entrega de recursos naturais para os imperialistas”, o pagamento da dívida pública, a violência sofrida por mulheres e LGBTs, “o racismo disfarçado de democracia racial” e as ameaças que rondam o Estado laico. Condena, ainda, a reforma da Previdência e exige a anulação da trabalhista.
Essas e outras bandeiras são desfraldadas pelo Esquerda Diário. O site compõe uma rede internacional que funciona como porta-voz de partidos ou agrupamentos marxistas espalhados por doze países, além do Brasil: Uruguai, Chile, Argentina, Bolívia, Peru, Venezuela, México, Estados Unidos, França, Alemanha, Itália e Espanha.
Os próprios militantes do MRT financiam o braço digital do movimento e integram a redação. Com sede em São Paulo, o Esquerda Diário afirma que totalizou 7 milhões de acessos – únicos ou recorrentes – no mês das eleições presidenciais. “Outubro rendeu. Para você ter uma noção, em setembro, contabilizamos 3,5 milhões de visitas. Dobramos a audiência num período muito curto”, festeja o sociólogo e editor do portal, André Augusto. Ele, que coordena o site a distância, mora em Natal e cursa mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
“Não, o artigo não passa uma ideia errada dos evangélicos. Não dá margem para nenhum mal-entendido nem incorre em abusos”, respondeu quando argumentei que a matéria sobre o exorcismo confundia a esquerda religiosa com a política. “Pretendíamos criticar especificamente a campanha que as cúpulas de igrejas pentecostais promoveram em favor de Bolsonaro. Atacávamos não o reacionarismo dos fiéis e, sim, o de certos pastores, que costumam caluniar os setores progressistas da sociedade. A questão do exorcismo é bastante secundária no texto. Você leu o artigo com atenção? Uma leitura cuidadosa dissipará qualquer dúvida. Mas precisa ler a matéria inteira, né? Não basta ler só a manchete.”
(revista piauí)

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