Como idosos lidam com a pandemia num prédio de Copacabana
Pela manhã, quando abri a porta de casa para apanhar o jornal, ouvi uma conversa nada corriqueira no andar logo acima do meu. “Que barbaridade, Seu Zé! O senhor tem certeza?”, indagava a moradora da cobertura. Ela vive ali com o marido e sem empregados ou animais de estimação. Nunca vi o casal, nem sequer de relance, mas sei que amos já passaram dos 90 anos e estão no prédio há quase seis décadas. “Tenho certeza, sim! Internaram o moço ontem, lá no Copa D’Or. Um rapaz novinho de tudo, universitário”, respondeu Seu Zé com um quê de impaciência. “Quer dizer, não posso garantir a data da internação. Foi ontem à noite, parece. Ou hoje bem cedo? Não importa…”
O cearense José Cordeiro de Farias é zelador no pequeno edifício de Copacabana para onde me mudei em outubro de 2017. Ele e minha vizinha, imagino, conversavam à beira da escadaria acinzentada que percorre os onze andares do prédio. Embora não pudesse enxergá-los, escutei perfeitamente: “Deus do céu! O que vai acontecer agora?”, perguntou a vizinha, mais para si mesma do que para o zelador. “Será que a gente corre perigo?”
Era dia 18 de março, quarta-feira. Na antevéspera, o novo coronavírus levara à morte um aposentado em São Paulo. O Ministério da Saúde o identificou como a primeira vítima fatal da Covid-19 entre os brasileiros. Até o início daquela quarta, o vírus contaminara 33 pessoas no Rio de Janeiro, mas ainda não havia provocado nenhum óbito. Com o intuito de retardar a pandemia, o governador do estado, Wilson Witzel (PSC), começou a semana anunciando uma série de restrições temporárias, como a suspensão de aulas em instituições públicas ou particulares, o fechamento de teatros, cinemas, academias e shopping centers, a proibição de eventos esportivos e a recomendação para que ninguém fosse às praias. O isolamento social ganhava corpo, e o lema “Fique em casa” se espalhava.
Assim que tive oportunidade, procurei o zelador:
– Desculpe, mas ouvi parte da conversa de vocês na cobertura. Algum morador está internado?
– Morador, não. Um rapazinho que veio olhar o 301 no final da semana passada. Ele queria alugar o apartamento, que vagou faz uns dias. Espiou tudo bem espiado e depois bateu papo comigo aqui no hall de entrada. Agora me contaram que pegou o tal do vírus pouco antes de assinar o contrato.
– Quem contou?
– A faxineira que limpa o apartamento. Ela falou que já puseram o moço na UTI. Misericórdia! Eu cheguei perto do rapaz, apertei a mão dele… Não posso me contaminar. Sou do grupo de risco! E a Lourdes também!
O zelador se referia à sua mulher, a pernambucana Maria de Lourdes Barbosa de Farias, com quem divide as tarefas do condomínio. Em tese, o casal realmente figura entre os alvos preferenciais do novo coronavírus – não porque sofra de diabete, asma, bronquite, enfisema pulmonar ou hipertensão arterial, mas pela idade avançada. Taurinos, os dois aniversariam em maio. Ele vai completar 78 anos. Ela, 75. No entanto, jamais os tomei por velhos, embora tampouco os considerasse jovens, é claro. Eu simplesmente não pensava sobre o tempo quando os flagrava em plena atividade. Desde 1992, Farias e Lourdes são os únicos funcionários do edifício: limpam todos os andares, cuidam da portaria durante o dia (à noite, a partir das oito, não há porteiro), fazem reparos miúdos nas áreas comuns, recebem encomendas, distribuem correspondências e recolhem o lixo. Labutam como formiguinhas, sem muito tempo para o dolce far niente das cigarras. “Consigo subir do térreo até a cobertura, pelas escadas, num pique só”, gosta de trombetear o zelador. Não se trata de exagero.
O térreo, aliás, é onde o casal mora. Eles ocupam um apartamento com quarto, sala, cozinha, dois banheiros, lavanderia e um quintalzinho. No imóvel abarrotado de coisas, terminaram de criar a filha, Giseli, uma dona de casa que cursou administração de empresas e direito, mas nunca se formou, e lhes deu um par de netos. Bem menor que a cobertura dúplex da vizinha nonagenária, a residência do casal revela-se maior que os demais vinte apartamentos do prédio, cada um com 50 m2 e apenas um dormitório.
Inaugurado em 1964, o edifício também abriga salas comerciais. Tem uma garagem modesta, com apenas duas vagas, e não exibe nenhum “penduricalho”: nem playground, nem salão de festas, nem piscina. Apesar de franciscano, fica muito perto da praia, numa região privilegiada do Rio, o ponto em que Copacabana se aproxima de Ipanema – divisa batizada pelos cariocas de Copanema.
“Sou do grupo de risco!” A frase do zelador não só me fez atinar que o prédio se encontra sob a guarda de dois “velhinhos” – dispostos, prestativos, mas agora ameaçados – como me lembrou que moro no epicentro da terceira idade.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) calcula que o país reúne, atualmente, 34 milhões de pessoas com 60 anos ou mais. Cerca de 1,5 milhão está no município do Rio de Janeiro. Apenas São Paulo, entre as capitais, o supera. Lá vivem 2,3 milhões de indivíduos que pertencem àquela faixa etária. Em termos relativos, porém, a situação muda – e o Rio se converte na capital com a maior porcentagem de idosos. Essa população representa 22,7% dos 6,7 milhões de habitantes. Porto Alegre, Vitória e Belo Horizonte aparecem, respectivamente, em segundo, terceiro e quarto lugares no ranking (22,3%, 19,7% e 18,8%). Florianópolis, Curitiba e São Paulo compartilham a quinta colocação (18,4%).
O IBGE também estima que Copacabana seja o bairro carioca com maior número de idosos. O Censo de 2010 – a pesquisa mais recente sobre o assunto – indicou haver 43,4 mil moradores sexagenários ou acima dos 70 anos por aqui. Depois, vinham Campo Grande (41,4 mil) e Tijuca (39,5 mil).
O zelador, sua mulher e eu moramos, assim, no bairro com mais idosos da capital que detém a maior proporção deles. Um epicentro, portanto, ou algo do gênero. Alheio à demografia, Farias se angustiava cada vez mais: “Quem entrou em contato com um infectado precisa se isolar? A Lourdes pode pegar o vírus de mim? Como vou me isolar se tenho que ganhar a vida?”
O casal se conheceu em Copacabana mesmo. Ele trabalhava de garagista num edifício da Rua Bolívar. Ela, comerciária, costumava andar pelos arredores do prédio. “Eu vendia de tudo naquele tempo: roupa, sapato, qualquer coisa. Era empregada de lojas finas, sabe? O Zé manobrava carro, e a gente se paquerava de leve.” Um dia, o flerte vingou, enveredou para o namoro e… “Casamos em 1972”, recorda o zelador, que foi garçom “numa pensão de português” antes de se tornar garagista.
Depois do casamento, Lourdes virou depiladora e manicure. Farias comprou um Opala Comodoro (“o melhor carro da ocasião”) e se transformou num híbrido de motorista e guia turístico. Levava hóspedes do hotel Sheraton para visitar as atrações do Rio. Em abril de 1992, quando surgiu uma vaga de porteiro no nosso edifício, não titubeou. “Me ofereceram carteira assinada e a chance de sair do aluguel. Dava para recusar? Aqui moro de graça. Não pago nem a luz. Sem contar que contrataram a Lourdes também, como auxiliar de portaria.” Ele só ganhou o cargo de zelador há poucos meses – apesar de, na prática, exercer a atividade desde que chegou. Sua parceira segue com a mesma função.
Hoje ambos estão aposentados, mas permanecem na ativa porque ajudam financeiramente os familiares. “Nosso neto mais jovem peleja com uns problemas de saúde e, por causa disso, a Giseli não pode trabalhar. Precisa cuidar do menino”, explica a auxiliar de portaria. O que o genro deles fatura como taxista não é suficiente para saldar as contas.
Farias e a companheira têm origem parecida. Filho de um caixeiro-viajante e de uma dona de casa, o zelador nasceu em Santa Quitéria, cidadezinha do interior cearense. Ainda bebê, perdeu o pai (“Dizem que morreu de nó nas tripas”) e acabou educado pelos avós maternos. “Minha mãe tolerou a viuvez por um período curto e depois se casou de novo. Formou outra família. Somos treze irmãos no total – dois do primeiro casamento dela e o resto do segundo.”
Exímio boiadeiro, o avô de Farias gerenciava uma fazenda. “Era uma propriedade gigante, com açude e quinhentas cabeças de gado. Se um boi escapasse do pasto e desaparecesse mata adentro, um punhado de vaqueiros saía à procura do bicho. Demoravam três, quatro, cinco dias para encontrar, tamanha a imensidão daquelas terras.”
Em 1958, Farias trocou Santa Quitéria pelo Rio. Estava com quase 17 anos, mas ainda não concluíra o ensino fundamental. “Meu padrinho, um carpinteiro, veio antes. Ele já morava no bairro de Botafogo quando me convidou: ‘Esquece a roça! Você não vai ter futuro nenhum se ficar no Nordeste.’ Eu escutei o conselho e parti.” No Rio, não retomou os estudos. “Só quis saber de trabalhar.”
A auxiliar de portaria também é de uma pequena cidade interiorana – Gravatá, em Pernambuco – e passou parte da infância na zona rural. “Meu pai plantava fumo, milho, aipim, feijão, café, inhame, algodão, batata-doce… Tudo no nosso sítio, um cafundó sem iluminação, sem vizinho, sem nada. Me lembro apenas de um senhor que morava perto da gente, um ex-escravo velhíssimo. Ele vivia num ranchinho. Vivia, não. O homem se escondia… Ficava assustado quando via algum de nós e se enfurnava dentro do rancho. Sempre que dava tempestade, os coqueiros do sítio balançavam à beça e os relâmpagos cortavam a escuridão. Eu morria de medo.” Depois de cada colheita, o pai transportava a produção para um armazém dele próprio, onde a negociava.
“Tive 27 irmãos”, prossegue a auxiliar de portaria. “Minha mãe se casou duas vezes, e meu pai, três. Por isso, espalharam tanto filho pelo mundo. Uma porção já morreu. Nem sei quantos. Não conheci todos.” Beirando os 9 anos, Lourdes se mudou para o Recife com a família. “Estudei bem pouco. Desisti da escola porque a matemática nunca entrou na minha cabeça. Somar, dividir, multiplicar, resolver expressão… Complicado demais para mim.”
Durante a adolescência, mesmo sem terminar o antigo ginásio, conseguiu “um empregão” na Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Como recepcionista e ajudante geral, servia um grupo de técnicos oriundos da França, principalmente engenheiros agrônomos. Em 1967, assim que saiu da autarquia, decidiu migrar para Niterói, onde já estavam duas sobrinhas. “Mas não gostei de lá, não. Preferi tentar a sorte no Rio.”
Baixa e rechonchuda, a auxiliar de portaria tem a pele muito clara, com manchas de sol tão numerosas que a deixam um tanto rajada. “Sou do tipo galega”, resume. Na juventude, orgulhava-se dos cabelos loiros, que agora se tornaram avermelhados. “Tintura, né? Quando não pinto, ficam brancos como as páginas de um caderno.” Ela não dispensa uma boa conversa e normalmente a tempera com ironias sutis ou expressões em francês. Aprendeu o básico do idioma na Sudene. Bonjour! Comment ça va?, costuma me dizer pela manhã.
De poucas palavras, Farias se considera “pavio curto, um sujeito sem papas na língua” e não aparenta a idade. Embora meça apenas 1,60 metro, é troncudo e aprumado, uma herança da época em que praticou jiu-jítsu. No horário de trabalho, veste invariavelmente calça escura e camisa social de mangas curtas, azul ou amarela.
À diferença do marido, a auxiliar de portaria não se alarmou quando tomou conhecimento do rapaz internado. “Vou me apavorar com vírus? Tenho mais medo de levar uma facada ou de um carro me atropelar. Se bem que é besteira pensar nessas infelicidades também. Estamos todos nas mãos de Deus. Ele decide a nossa hora. Nem vírus, nem ladrão, nem motorista bêbado vai nos matar se o Senhor não quiser.”
Evangélica há trinta anos, ela pertence à Igreja Internacional da Graça de Deus – denominação neopentecostal liderada pelo pastor R. R. Soares –, mas já integrou a Universal do Reino de Deus, capitaneada por Edir Macedo. “Hoje percebo que, no fundo, não seguia religião nenhuma antes de virar crente. Eu às vezes acompanhava a missa dos católicos. Outras vezes, botava o cordão protetor da Igreja Messiânica ou aparecia no centro espírita para jogar búzios. E jamais deixava de olhar o horóscopo. Era viciada. Comprava o jornal mesmo quando o dinheiro minguava, só para checar o meu signo.”
A auxiliar de portaria acredita que Deus “mandou a pandemia” com a intenção de alertar a humanidade. “A Bíblia afirma que Jesus vai voltar, certo? Que vai caminhar novamente sobre a Terra. Acontece que Jesus é santo. Como um santo vai andar num lugar tão pecaminoso feito a Terra de agora? Enquanto o pessoal cometer erros, as pestes vão atormentar a gente. As pragas não são novidade. Já enfrentamos muitas, e outras piores virão. Peste serve para os humanos se corrigirem. O campo precisa ficar mais limpo, entende? Caso contrário, Jesus não pode voltar.”
E o que ocorrerá quando Cristo retornar? “Ele vai salvar todos os que se converteram. Vai levar os fiéis para o Céu. Depois, meteoros atingirão a Terra. O planeta vai se consumir em fogo, e os raros que não se converteram sofrerão as consequências. Vão continuar na Terra, mas uma Terra destruída, sem água, sem comida. Pior: vão ganhar uma marca na testa, o número 666, que é o da Besta.”
Ela observava a inquietação do marido e comentava: “O Zé ainda não se tornou evangélico. Então treme de medo quando pensa na morte. Ele toma todo o cuidado para se manter vivo, mas não adianta: se Deus chamar, tchau! A minha salvação é Jesus. A do Zé, o álcool em gel e lavar a mão.”
O zelador, sorrindo, retrucou: “A Lourdes adora me tachar de ateu. Bobagem! Sou católico. Rezo o Pai-Nosso antes de dormir e me levantar, gosto de Nossa Senhora Aparecida e, se passo na frente de uma igreja, me benzo. Só não vou à missa nem acredito que Deus envia praga. Ele não tem culpa da nossa desgraça. Imagina se iria mandar coisa ruim para a gente… O Satanás, talvez. Deus, nunca!”
Na quinta-feira, 19 de março, Farias me interfonou:
– Era mentira!
– O quê, Seu Zé?
– O papo da internação. O rapaz não pegou a doença. Está com a saúde em dia.
– Como assim? Quem inventou a história?
– A própria faxineira que cuida do 301. Inventou porque queria me assustar. Filha da mãe! Brincadeira mais sem graça! Fiquei sabendo quando liguei para a proprietária do apartamento, atrás de notícias do moço.
Um boato, afinal – ou uma fake news à moda antiga. O zelador, porém, não parecia bravo. Pelo contrário: dava a impressão de que levou a “pegadinha” macabra na esportiva.
– Que alívio! Porra! – suspirou.
Àquela altura, a síndica do prédio, Rosa Maranhão, já tomava uma série de providências na esperança de minimizar os perigos corridos pelo casal de funcionários e pelos moradores ao longo da pandemia. Fixou regras para o recebimento de entregas e o uso dos elevadores. Solicitou que o zelador e a mulher colocassem luvas antes de mexer com o lixo. Explicou como desinfetar o hall de entrada e os corredores.
Recomendou que utilizassem máscaras e álcool em gel durante o serviço. “O ideal seria conceder licença remunerada para os dois e arranjar substitutos temporários”, admite a síndica, uma psicanalista que ocupa o cargo desde 2012. “Só que, infelizmente, nosso caixa não tem reserva. E aumentar o condomínio em plena crise provocaria um fuzuê.”
Disciplinado, Farias procura seguir tanto as orientações da síndica quanto as das autoridades sanitárias. Suspendeu as visitas da filha e dos netos, guarda certa distância dos condôminos e entregadores, põe a máscara com regularidade, evita ir à rua e limpa tudo compulsivamente. “Sabe os botõezinhos dos elevadores? Passo álcool em cada um depois que alguém sobe ou desce.” Fumante dos 14 aos 38 anos (“Queimava dois maços de cigarro por dia”), sofreu um infarto há pouco menos de duas décadas, mas se recuperou bem. Para preservar a saúde do coração, andava à noite pela orla de Copacabana. Agora, perambula apenas dentro do edifício. “Caminho da porta de casa até a porta do prédio e volto. Faço isso um monte de vezes. Só paro quando completo 1 km.”
No resto das horas vagas, engrossa a audiência da Rede Globo (não assina canais pagos). Vê o Jornal Nacional, a novela das nove e o Big Brother Brasil. “Gosto demais do BBB! Não perco um.” Ele também adora futebol e torce pelo Flamengo, o que não o impede de acompanhar outras equipes. “Botafogo, Vasco, Fluminense… Jogo de qualquer time me interessa, e os da Seleção, mais ainda.”
Sua mulher, em contrapartida, quase não toma precauções. Vai às compras frequentemente e zanza sem necessidade pelo bairro. Não costuma usar máscara nem fica com “aquela psicose de álcool em gel pra cá, álcool em gel pra lá”. Agarra-se às crenças religiosas e à convicção de ter um sistema imunológico excepcional. “Na infância, comi um bocado de feijão, além de manga, jenipapo, laranja, banana, jaca, goiaba, araçá… Por isso, ganhei muita resistência. Minha única doença é a gula.”
Como o casal possui dois televisores, a auxiliar de portaria consegue driblar a Globo. “Deixo o Zé assistir às imoralidades dele e fujo para as novelas bíblicas ou para os cultos da Record.” De vez em quando, prestigia o apelativo Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes, comandado pelo jornalista José Luiz Datena, de quem se declara fã.
À semelhança do parceiro, jamais consulta a internet. “Não lidamos com negócio de computador, e-mail ou Facebook, e meu celular é de mil novecentos e bolinha.” Para “ouvir louvores”, mantém no apartamento um toca-CDs, que ela insiste em chamar de rádio.
“Não votei no Bolsonaro logo de cara, mas o homem está certo. A quarentena precisa acabar. Os idosos e as pessoas com sintomas devem permanecer em casa, lógico. Os jovens, não! Por que trancar um moço de 30 anos, uma mulher de 40? Se a turma não voltar rapidinho para o trabalho, o prejuízo será imenso. Vai começar a bagunça, o quebra-quebra, o fogaréu nos ônibus.” Quando discorre sobre o isolamento social que freou o país, Farias se exalta. No primeiro turno das últimas eleições presidenciais, ele votou em Alvaro Dias, do Podemos, “um político sério, limpo e competente”. No segundo, optou por Bolsonaro. “Deixar o Fernando Haddad vencer? Deus me defenda! Sou trabalhador, mas detesto o PT!”
A birra do zelador com os petistas começou no fim de 1989. Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva disputavam a Presidência da República. Farias apoiava o “caçador de marajás” e colou uma propaganda do candidato no vidro do Opala Comodoro. “Eu estava levando um turista para conhecer o Mosteiro de São Bento, se não me engano. Perto da Praça Mauá, tinha uns cabos eleitorais do PT. Assim que os caras viram a propaganda do Collor, me mandaram parar. ‘Tira o adesivo agora!’, gritaram. ‘Se não tirar, vamos destruir o carro!’ Me assustei à beça. Nunca vou perdoar aquele absurdo. Me fizeram arrancar a propaganda só porque eu não queria votar no Seu Lula?!”
Pelas mesmas razões do marido, a auxiliar de portaria advoga o término da quarentena. “Quem não é do grupo de risco deve pegar no batente. O país vai acabar se a maioria continuar de braço cruzado. Por enquanto, a favela está quieta, mas quando a fome apertar… O pessoal do morro vai descer e o pau vai cantar aqui embaixo.” Nas eleições de 2018, ela não compareceu às urnas. “Passei dos 70 anos. Não tenho mais que votar.” Mesmo assim admira Bolsonaro. “Também simpatizo com o Lula. Os dois falam a língua do povão. Só que, no prédio, ninguém suporta o Lula. Chamam de ignorante, de ‘sem-dedo’, de vagabundo. Por causa disso, não fico espalhando que gosto dele. Je ferme ma bouche, compreende? Calo a minha boquinha.”
Dirigindo o Opala Comodoro, Farias tomou outro susto – dessa vez, junto da família. “Foi em 1990. A gente voltava do Espírito Santo depois de quinze dias em Guarapari. Umas nove e meia da manhã, estacionamos num posto da estrada para abastecer. Aproveitei e bebi uma dose de conhaque. Um pouquinho mais tarde, cismei de ultrapassar um caminhão num trecho complicado da rodovia. Acho que o conhaque me tirou o juízo… No meio da ultrapassagem, percebi que iria me estrepar, porque o caminhão acelerou em vez de reduzir a velocidade. Resultado: joguei o Opala para a esquerda e capotei. Caí numa ribanceira. Estava com a Lourdes, a Giseli, uma amiga e um bebê de 8 meses. Ninguém se feriu, acredita? Um milagre dos grandes! Enquanto capotava, me lembrei de rezar: ‘Perdão, meu Deus! Fui muito descuidado. Se a gente ainda merecer, nos salve!’ Nunca vivi nada tão horroroso. Coronavírus é fichinha perto daqueles segundos em que o carro rolou pela ribanceira.”
No edifício de Copacabana, há mais nove idosos, além do zelador e da mulher. Dois resolveram passar a quarentena em outro lugar. Entre os que permaneceram, alguns se isolaram por completo e não aceitaram nem mesmo conversar. A pernambucana Gina, do 701, topou, mas com ressalvas: “Não venha aqui. Prefiro que você me encontre no térreo. E, por favor, não revele meu nome de verdade. Bote só o apelido. Odeio me expor.”
Ela acabou de comemorar 72 anos. Viúva de um motorista particular, deu aulas de matemática nos ensinos fundamental e médio até os 54. “Sou do tempo em que os professores acompanhavam os estudantes de perto. Se um aluno faltasse demais, a gente ia à casa dele e tentava descobrir o problema.” Gina conta que lecionou sempre no Rio, tanto em escolas públicas como em privadas. Mudou-se para a capital fluminense ainda criança, após deixar São José do Belmonte, onde nasceu.
Agora que está aposentada, virou estudante de novo. Cursa o último semestre de teologia na Pontifícia Universidade Católica (PUC). Também frequenta oficinas semanais de interpretação bíblica em igrejas da Zona Sul.
Embora tenha três filhas e sete netos, vive sozinha, o que nunca a incomodou. Com a chegada do novo coronavírus, porém, a solidão se transformou num fardo. Hipertensa e diabética, cumpre à risca o isolamento social. “Sai pouquíssimo, apenas para o mercado ou a farmácia, geralmente de luva, máscara, calça comprida e sapato fechado. Quando volta, se despe, toma banho, lava as roupas e esteriliza as compras. A contragosto, abandonou as caminhadas diárias pelo calçadão e já não papeia com os amigos nos cafés do bairro nem vai à missa ou à praia. Interrompeu as oficinas bíblicas e substituiu as aulas presenciais da PUC por virtuais.
Confinada no apartamento acanhado do sétimo andar, resta-lhe ouvir a JB FM, ler, cozinhar, ver filmes em canais pagos, fazer crochê e se exercitar sob a orientação de tutoriais que garimpa na internet. “Me ocupo bastante. Mesmo assim, é bem duro… A fase mais difícil que atravessei em 72 anos. Sinto saudades da antiga rotina e principalmente da família. Tenho adoração por meus netos. Sou chameguenta. Sofro muito com a distância deles.”
Recentemente, Gina recebeu o telefonema desesperado de uma conhecida. “Fiquei péssima. Uma senhora tão bonitinha, uma artesã de mão-cheia, pensando em se matar… ‘Não aguento mais, Gina! Só aparece notícia ruim na televisão.’ Respondi: ‘Então desliga a tevê! Você precisa se desintoxicar! Suicídio é pecado mortal!’”
Às vezes, a professora se pergunta o que Deus está querendo nos dizer. “Ele parou o mundo inteiro. Por quê? Será que se entristeceu com tanta prostituição, tanto homossexualismo, tanto travesti?”
De tão magro, elétrico e desengonçado, o recifense Edmundo Amaral, do 801, lembra os mamulengos, aqueles fantoches típicos do Nordeste. No prédio, todos o tratam por Comandante. Ele próprio se apresenta desse jeito: “Muito prazer, Comandante Amaral.” Ingressou na Marinha quando adolescente e se aposentou em 1987, como capitão de mar e guerra. “Passei quase mil dias a bordo de navios.” Tem 82 anos e três filhos, incluindo um enteado. Com frequência, usa bonés, camisetas e bermudas que exibem o distintivo do Flamengo.
Foi morar sozinho em 2017, após se separar da segunda mulher, e ainda não aprendeu a cozinhar. “Sobrevivo à base de congelados. Lasanha, almôndega, essas bostas. Se me dá na telha, encomendo um franguinho de padaria.” Hoje goza de boa saúde, mas já amargou um câncer de pulmão.
Concordou em me encontrar no térreo e, durante nossa conversa de meia hora, proferiu uma enxurrada de declarações contundentes:
“Você é da Folha? Do Globo? Se for, não quero papo. Jornalecos sem-vergonha! Mentirosos, terroristas, ‘subversas’, comunas, safados, apátridas! Um nojo! Tomara que o Clube Naval cancele a assinatura dos dois.”
“Não me separei de ninguém, não. Ela é que se separou de mim. Resolveu cuidar da mãe doente em São Paulo. Compreendo, mas não dá, né? Até parece que vou me mudar para São Paulo… Lugarzinho irritante… Sem praia, com um clima terrível e repleto de gente dizendo ‘Orra, meu!’ Tô fora!”
“Como me definir em poucas palavras? Escreva: flamenguista e contra o PT. Ponto final.”
“Note bem: não gosto do Bolsonaro. Gosto é do que o Bolsonaro defende.”
“Se o entregador da farmácia pode trabalhar em plena epidemia, por que o vendedor de sapatos não pode? Isolamento, sim, mas só para o grupo de risco.”
“O coronavírus é uma sacanagem da China, meu amigo! Tenho certeza. Comunista não presta. Todos filhos da puta! Se necessário, matam sem dó. Os chineses deixaram o vírus se espalhar porque desejam que a economia do mundo vá para o buraco. Assim, conseguirão levar as empresas dos outros países a preço de banana. Está na cara!”
“Respeito a quarentena, claro. Sou velho pra cacete, porra! Mas acho um saco! Ridículo! Vontade de chutar o balde! Manja o leão trancado na jaula? Não posso nem ver as namoradas. Para suportar o tédio e diminuir a ansiedade, encaro dois fitoterápicos por dia, um de manhã e outro à noite.”
Toda vez que há panelaço nas redondezas contra o presidente da República, o Comandante vai até a janela e grita: “‘Fora, Bolsonaro’, merda nenhuma! ‘Fora, corona’, pô!”
Em meados de abril, quando desci para pegar uma encomenda, Farias me chamou. Ele tomava conta da portaria, como de hábito. “Andei pensando…”, me disse, circunspecto. “No fundo, estou em isolamento desde que cheguei aqui, há quase trinta anos. Zelador trabalha seis dias por semana e só folga um. Vive sempre confinado. É uma espécie de Big Brother, mas sem a piscina…”
(revista piauí)