Otto Lara Resende agora brilha como cantor
A dengue hemorrágica chegou sorrateiramente e, em poucos dias, levou o garoto de olhos amendoados à uti. Ele mal completara 5 anos quando a doença o castigou com diarreias incessantes, vômitos caudalosos e um febrão obstinado. Duas transfusões de sangue não bastaram para reanimá-lo. À beira da cama em que o filho agonizava, o dramaturgo Bruno Lara Resende lhe acariciou as mãos e se desmanchou numa declaração de amor. A criança o escutou por uns segundos, mas logo se aborreceu. “Mahler, papai, Mahler!”, suplicou baixinho. O pai entendeu de imediato o pedido. O menino desejava ouvir a Sinfonia Nº 1, de Gustav Mahler. “Era como se me dissesse: ‘Deixe de choramingo, cara! Eu quero energia!” Sem hesitar, o pai entoou um trecho da composição enquanto imitava os gestos exaltados de um maestro.
O moribundo felizmente sobreviveu e hoje não só continua fissurado por peças eruditas como se delicia com um vasto repertório popular. Neto mais jovem do escritor mineiro Otto Lara Resende, de quem herdou nome e sobrenome, o garoto festejou 13 anos em maio e, há seis meses, vem colecionando admiradores no Instagram justamente por causa do apreço pela música. Toda semana, a rede social abriga um novo vídeo do rapazinho. São produções caseiras, sem cortes ou efeitos especiais, em que o pré-adolescente canta sambas, baiões, serestas, choros e sucessos da mpb, sempre a cappella.
Ele costuma gravar as cenas no jardim do sobrado onde mora com os pais e dois gatos vira-latas. Trajando roupas informais, se acomoda sobre um banco de madeira e, diante de uma câmera que nunca se move, solta a voz. Quase não gesticula durante as apresentações. Às vezes, batuca nas pernas para marcar o ritmo ou espicha os braços para enfatizar um verso. Enuncia as letras das canções com extrema clareza e frequentemente alonga os erres das palavras: rrresta, brilharrr, melhorrr, forrrnalha. Quando termina o solo, assume um tom professoral e dá algumas explicações: “A música que acabei de cantarrr, Juízo Final, é de Nelson Cavaquinho. Eu amo a interrrpretação da guerrrreira Clara Nunes. Salve, Nelson Cavaquinho! Salve, Clara Nunes! E viva o samba brasileiro!” Carioca, torcedor do Botafogo e portelense, o cantor tem síndrome de Down.
Otto Iantas de Lara Resende demorou muito para caminhar e falar. Em compensação, antes dos 2 anos, já se revelava capaz de identificar composições eruditas. “Ele adorava uns dvds infantis com músicas clássicas que ganhou logo depois de nascer. Assistia à coleção sem parar, absolutamente hipnotizado. Um dia, ouviu Für Elise, do Beethoven, num aplicativo do iPad. Para minha surpresa, largou o tablet, engatinhou até a pilha de dvds e examinou um por um. De repente, sem nenhuma ajuda, localizou o que trazia Für Elise e o separou”, recorda a atriz Raquel Iantas, mãe do menino.
Um pouco mais tarde, o garoto descobriu os regentes. Gostava de vídeos em que Leonard Bernstein, Herbert von Karajan, Claudio Abbado ou Gustavo Dudamel comandavam as principais orquestras do mundo. A criança observava os maestros com tanta atenção que aprendeu a distinguir um do outro. “Suponha que a gente botasse para tocar a Nona Sinfonia de Beethoven, sob a regência do Bernstein”, prossegue a atriz. “Otto arranjava um jeito de nos avisar que preferia ouvir a mesma sinfonia conduzida pelo Karajan.”
Quando se alfabetizou, com 7 anos, o menino compreendeu a engrenagem das canções populares. Perceber que a música poderia se associar às letras para criar um universo tão reluzente quanto o erudito lhe soou como uma iluminação. De início, se encantou por Adriana Partimpim e pelo grupo Palavra Cantada. Em seguida, vieram os Beatles, Frank Sinatra, Elvis Presley, Noel Rosa, Cartola, Paulinho da Viola, Luiz Gonzaga, Tom Jobim, Chico Buarque… Ora os pais mostravam os artistas, ora o próprio garoto os caçava na internet. O pesquisador mirim desenvolveu, então, a habilidade de memorizar não apenas as canções como os nomes de seus intérpretes, autores e instrumentistas.
Em 2015, ele andava enfeitiçado por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Na ocasião, os baianos comemoravam cinco décadas de carreira com uma turnê que passaria pelo Rio de Janeiro, onde o menino vive. A família resolveu levá-lo, mas só atentou que a casa de espetáculos vetava a entrada de crianças depois de comprar os ingressos.
Às vésperas do show, Bruno Lara Resende – que já exerceu a advocacia – redigiu uma carta questionando a proibição. Argumentou não existir nada na lei brasileira que justificasse impedir qualquer menor de ver uma exibição como aquela em companhia dos pais. O assunto chegou à imprensa, e um juiz autorizou o comparecimento do menino. Foi assim que o pequeno fã acabou visitando os camarins dos ídolos. Desde então, Caetano o convida para os concertos que faz na cidade.
No finzinho de março, o garoto se sentia desanimado, uma vez que a pandemia do novo coronavírus o privava de frequentar a escola, as aulas particulares de canto e percussão, as rodas de samba ou chorinho e a temporada carioca de shows. Para estimular o filho, Raquel Iantas lhe sugeriu cantarolar algo. Com um boné de adulto e sem camisa, o pré-adolescente – que só tem uma irmã, bem mais velha – atacou de Carinhoso enquanto tomava sol.
A atriz registrou a brincadeira doméstica, publicou a cena no Instagram dela mesma e recebeu 411 comentários elogiosos. Uma semana depois, o garoto protagonizou outro vídeo, agora interpretando Desde que o Samba É Samba, de Caetano. O compositor se emocionou com a homenagem e a compartilhou. A partir daí, as gravações do menino pelo celular da mãe se tornaram rotineiras e a fama dele cresceu. Hoje, o perfil da atriz ultrapassa os 7,9 mil seguidores. Em março, somava 2,8 mil.
“Odara, claro!”, respondeu o rapazinho quando lhe perguntei qual a canção de que mais gosta. Não precisei indagar o motivo. Assim que o jovem cantor deu uma palinha da música, concluí que a própria letra de Caetano se encarregava de esclarecer: Deixa eu cantar/Que é pro mundo ficar odara/Pra ficar tudo joia rara/ Qualquer coisa que se sonhara/Canto e danço que dará.
(revista piauí)