Um casal de veterinários, uma guerra e uma legião de animais abandonados
Assim que Leonid e Valentina Stoyanov iniciaram a conversa por vídeo, uma sinfonia desordenada de gorjeios, assobios, grasnidos, arrulhos, pios e cacarejos se misturou às vozes deles. “Mil desculpas pela barulheira. É que estamos cuidando de umas cem aves”, explicou Valentina. Nenhum dos bichos aparecia na tela do computador. A sala em que a dupla se acomodou para a entrevista abrigava somente um camaleão. O pequeno réptil descansava num aquário retangular, espaçoso e sem água. Embora risonho, o casal de veterinários não conseguia esconder o cansaço.
Eram onze e meia da manhã no Rio de Janeiro. Em Odessa, onde nasceram e ainda moram, os Stoyanov estavam seis horas à frente. Naquela segunda-feira de abril, a terceira maior cidade da Ucrânia, com 1 milhão de habitantes, aguardava novos ataques russos. Desde que as tropas de Vladimir Putin invadiram o país, em fevereiro, a litorânea Odessa e seus arredores têm sofrido bombardeios frequentes. Os mísseis vêm de navios no Mar Negro. Às vezes, a fuzilaria também parte de aviões supersônicos. Os ataques visam sobretudo fábricas, refinarias, depósitos de combustíveis e outros pontos que a Rússia considera estratégicos para abalar a infraestrutura ucraniana. De tempos em tempos, drones sobrevoam a cidade com o intuito de mapear futuros alvos. Muitas das agressões têm como efeito colateral a destruição de moradias, já que as explosões espalham uma quantidade significativa de estilhaços.
As autoridades acionam sirenes tão logo detectam o risco de ataques. Nessas ocasiões, as igrejas badalam os sinos freneticamente. Uns saem das ruas ou se afastam das janelas caso estejam em ambiente fechado. Outros buscam proteção nos abrigos subterrâneos que a Ucrânia instalou quando pertencia à União Soviética. Há, ainda, quem procure as centenas de galerias, também subterrâneas, que atravessam Odessa. Escavadas a partir do século XVIII, somam pelo menos 2,5 mil km de extensão. A maioria funcionava como mina de calcário, rocha sedimentar usada na construção civil. Algumas integravam o sistema de esgoto. Hoje todas estão inativas e muitas viraram atração turística. Ironicamente, mesmo contando com uma rede tão vasta de túneis, a cidade não dispõe de metrô.
Nos momentos de maior perigo, o governo decreta toques de recolher, que podem suspender a circulação pelas ruas por mais de 24 horas. Milhares de pessoas saíram de Odessa desde que a guerra começou. Uma parcela dos egressos abandonou os animais de estimação, seja pela dificuldade de transportá-los, seja pelo temor de não conseguir entrar nos países fronteiriços com os bichos.
Sem intenção de ir embora da Ucrânia, os Stoyanov resolveram acolher uma legião de cães, gatos, roedores, pássaros, galinhas, cacatuas, papagaios, tartarugas, lagartos e camaleões deixados para trás. “Fora as cem aves, resgatamos 120 animais até agora”, diz Leonid. “Uma loucura! Estamos tão atarefados que já não sabemos direito o que é dormir.” A dupla levou boa parte dos recolhidos para a clínica que comanda perto do Centro de Odessa. Os restantes ficam na casa térrea dos veterinários, que tem um quintal amplo e arborizado, ou nos domicílios de familiares e amigos. “Ultimamente, nenhum dos nossos conhecidos ousa atender às minhas ligações. Eles logo pensam: ‘Aposto que aquele maluco vai querer me empurrar mais um cachorro…’”, reclama Leonid, em tom de zombaria.
Odessa é uma cidade bilíngue. Lá se fala tanto russo quanto ucraniano. Não raro, os nativos misturam os dois idiomas num mesmo diálogo. O casal preferiu dar a entrevista de quase três horas em russo. George Yurievitch Ribeiro, filho de uma pedagoga moscovita e um historiador paulistano, a traduziu. “Conseguem escutar as sirenes?”, pergunta Valentina após quarenta minutos de conversa. “Acabaram de soar.” Por estar dentro da clínica, numa espécie de porão, a dupla não precisou buscar abrigo.
Os Stoyanov já criavam diversos bichos quando o conflito estourou – as cadelas Alma, Bonitta e Aurora, o macaco Tosya, dez sapos, um camaleão e algumas tartarugas, além de cobras. “Somos exagerados”, admite Leonid. De acordo com o veterinário, no ano passado, 30% dos ucranianos tinham animais de estimação. Como o país reunia 43,7 milhões de habitantes à época, a fauna doméstica superava os 13 milhões de bichos, especialmente gatos. Quantos perderam os tutores de fevereiro para cá? “Difícil responder. Não existem levantamentos oficiais”, diz Valentina. A Organização das Nações Unidas calcula que 5 milhões de pessoas fugiram da Ucrânia e 7,1 milhões se deslocaram internamente em virtude dos recentes confrontos. Grande parte dos refugiados migrou para a Polônia, Moldávia, Hungria e Romênia. É o maior êxodo na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.
A minoria dos 220 animais que os Stoyanov acolheram chegou por intermédio dos próprios tutores. “A situação do Kasper nos parece a mais trágica”, diz Leonid. Cego, o husky siberiano morava com um jovem militar. “As Forças Armadas convocaram o rapaz para o front. Ele é órfão e não tem parentes vivos. Por isso, considera o cachorro um membro da família”, conta Valentina. Pouco antes de se juntar às tropas, o soldado entregou o husky para o casal e pediu, chorando: “Gostaria que vocês me enviassem imagens do Kasper todos os dias.” Os dois vêm cumprindo o desejo do combatente. “Só que não sabemos nada dele há três semanas. Mandamos as fotos e os vídeos, mas o rapaz segue em silêncio. Não se manifesta de jeito nenhum, ao contrário do que fazia antes”, lamenta a veterinária. “É inevitável pensar no pior…” Noventa por cento dos animais acolhidos pela dupla já não recebiam cuidados de ninguém. Ocupavam gaiolas largadas nas ruas, ou estavam amarrados em postes, ou padeciam dentro de casas vazias. “A gente mesmo resgatou os bichos, depois de avaliar denúncias enviadas por telefone e pelas redes sociais”, diz Leonid. Os Stoyanov acreditam que havia mais abandonos no princípio da guerra. Àquela altura, a comunidade internacional ainda não decidira se aceitaria refugiados com animais de estimação. “Agora as coisas mudaram”, festeja Valentina. “Muitos países facilitaram a entrada de bichos ucranianos, inclusive o Brasil.” Em março, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento permitiu o ingresso de cães e gatos originários da Ucrânia, sem a necessidade de certificação sanitária. A medida, porém, não vale para répteis, aves e demais mamíferos.
Um dos destaques entre os bichos que escaparam é Stepan, gato malhado com milhões de admiradores no Instagram e TikTok. O influencer de quatro patas vivia em Kharkiv e se tornou ainda mais célebre há quase seis meses, depois que a cantora norte-americana Britney Spears postou uma foto dele. A família responsável por Stepan deixou às pressas a cidade do nordeste ucraniano, severamente bombardeada. No início de março, cruzou a fronteira com a Polônia e seguiu para a França. De lá, o bichano continua atraindo novos fãs.
Os Stoyanov planejam oferecer os animais recolhidos à adoção logo que o confronto terminar. “Mas é claro que, se os tutores quiserem os bichos de volta, nós vamos devolver”, diz Leonid. Outros ativistas realizam ações similares às da dupla em toda a Ucrânia. Mesmo alemães, holandeses, romenos e poloneses viajam até as zonas de guerra para acudir pets desalojados. Eles também resgatam habitantes de zoológicos danificados pelos russos ou sob a ameaça de bombardeio.
Não bastasse o abandono, os animais ficam assustadíssimos com os tiroteios, estrondos e sirenes. “Hoje uma moradora de Odessa me escreveu, desesperada: ‘Minha tartaruga parou de comer! O que faço?’ Infelizmente, não tenho como ajudar. É o estresse que está tirando a fome da pobrezinha”, aflige-se Leonid. No zoo de Kiev, capital ucraniana, o elefante-asiático Horace toma sedativos. Mesmo assim, desperta inúmeras vezes durante a noite. Para acalmá-lo, tratadores dormem perto dele e lhe dão maçã sempre que acorda.
Casados desde agosto de 2017 e sem filhos, os Stoyanov descobriram bem cedo o apreço pela veterinária. “Nunca cogitei outra profissão. Eu mal sabia falar e já anunciava: ‘Quando crescer, vou salvar os bichos doentes’”, lembra Valentina, que completará 29 anos em julho. Leonid, de 34, recorda que pegava minhocas na infância para lhes aplicar injeções fictícias. Agora a dupla cuida tanto de animais selvagens quanto dos domésticos. O casal também faz pesquisas acadêmicas na área de parasitologia. Valentina estuda os parasitas das aves. Leonid, os dos répteis. Nas redes sociais, há fotos e vídeos em que os dois interagem com tigres, leões, antílopes, zebras, leopardos, rinocerontes, bisões, lêmures, girafas, crocodilos e flamingos na Europa, Ásia e África.
Antes da guerra, além de se dedicarem à clínica particular, os Stoyanov reservavam parte do tempo para a Vet Crew. Fundada e administrada por ambos, a instituição sem fins lucrativos socorre bichos selvagens que se acidentaram ou sofreram agressões. “Em geral, a violência acontece nos circos e zoológicos de contato, uma vergonhosa tradição ucraniana. Não posso acreditar que ainda existam”, diz Leonid. Os zoos de contato operam em shoppings e permitem que o público toque nos animais, o que os incomoda bastante.
A própria dupla banca os custos da Vet Crew, que tem quatro funcionários – dois remunerados e dois voluntários. Os demais colaboradores são esporádicos e também não ganham nada. “Depois de tratar dos bichos, procuramos devolvê-los à natureza”, diz Valentina. No caso dos que sempre viveram em cativeiro ou perderam a capacidade de se virar, a saída é mandá-los para santuários ecológicos. “Um dia, aliás, vamos inaugurar o nosso”, promete Leonid.
Em abril de 2021, os veterinários dirigiram mais de 800 km até Kharkiv com a missão de resgatar Simba, um leão de 9 meses que enfrentava maus-tratos num diminuto zoológico. “O dono exibia o felino dentro de um shopping. Frequentemente, botava uma coleira no bicho e o levava para passear em meio às lojas, causando um tumulto que perturbava o leãozinho”, diz Valentina. De início, o dono não topou abrir mão do animal. “Gastamos muita saliva para convencê-lo.”
No mesmo zoo de contato, o casal encontrou Anatoli, um filhote de macaco-berbere que estava à beira da morte. “Ele dividia uma gaiola com vários porquinhos-da-índia. Tinha fraturas pelo corpo inteiro e um rasgo imenso no crânio”, recorda Valentina. Outro prisioneiro do zoológico, um primata adulto, mordera e espancara o filhote. “Assim que nos viu, o macaquinho saiu da gaiola aberta e segurou o meu polegar. Era um pedido de ajuda”, diz Leonid.
A dupla aproveitou a viagem e também resgatou Anatoli. “De cara, trocamos o nome dele para Tosya”, conta Valentina. Mais tarde, na clínica, os Stoyanov constataram que o bicho sofre de epilepsia, provocada pela lesão craniana, e gastrite crônica, fruto da má alimentação. Em vez de leite, o zoo lhe fornecia salsicha, pão e água. “Macacos-berberes duram entre duas e três décadas. Com uma saúde tão frágil, o Tosya só vai sobreviver tanto tempo se receber atenção humana. Jamais poderemos libertá-lo”, prevê Leonid.
O casal já fazia certo sucesso antes de adotar o macaquinho. Aparecia em programas de tevê e mantinha um bom número de seguidores nas redes sociais. Tosya, porém, elevou a fama da dupla à enésima potência. Há um ano, Valentina divulgou um vídeo no TikTok em que comia rabanetes com o mascote, sem falar absolutamente nada. Foi uma sensação: a cena rendeu mais de 15 milhões de visualizações. Empolgada, a veterinária decidiu gravar outros vídeos do gênero. Ela só mudava os petiscos do macaco – cenoura, queijo cottage, maçã, blueberry, melancia… O público de diversos países continuou aplaudindo. A glória suprema chegou quando o filhote e a tutora compartilharam um punhado de morangos. A gracinha ultrapassou 180 milhões de visualizações. Lógico que Valentina pegou carona no êxito planetário de Tosya para difundir, em inglês, o trabalho da Vet Crew.
Com a guerra, os fãs do macaquinho resolveram doar remédios, ração e dinheiro à causa dos Stoyanov. “Os donativos possibilitam que a gente atenda todas as necessidades dos animais resgatados. Sempre que sobra alguma coisa, encaminhamos para outros ativistas”, explica Leonid. A maioria das doações estrangeiras advém da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos, da Alemanha e do Brasil. “Nós amamos os brasileiros! Que povo generoso e simpático!”, derrama-se o veterinário. “As mensagens de vocês nas redes sociais nos enchem de calor e afeto. Se tudo correr bem, conheceremos a Amazônia e o Pantanal em breve.”
Fascistas. É assim que o casal define os militares da Rússia. “Vamos expulsá-los! Queria muito estar em combate. Tentei ingressar nos batalhões civis de resistência, mas me barraram porque não sei atirar”, conta Leonid. Valentina faz coro: “Eu também queria ir para o front. Somos pacifistas e não nos metíamos em política. Só que a guerra exige coragem e perseverança de cada ucraniano. Se os russos pretendem usurpar a nossa liberdade, não vamos permitir. Eles imaginavam o quê? Que invadiriam a terra alheia e logo ditariam as regras? Pois vão se dar mal!”
Os dois evitam citar o nome de Putin, “o chefão dos inimigos”. “Basta pensar no cara que sinto calafrios. Idiota!”, esbraveja Leonid. Para a dupla, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, se revelou um líder excepcional, “o único em toda a história ucraniana que abdicou dos próprios interesses e priorizou a nação”. “Qualquer outro já teria fugido do país. Votamos no Zelensky e não nos arrependemos”, diz Valentina.
Os Stoyanov cortaram relações com os amigos e colegas russos. “Eles simplesmente não acreditam que há um genocídio por aqui. Parece que o governo daquele imbecil os hipnotizou”, resmunga Leonid. Ex-praticante de luta livre (ou wrestling), o veterinário perdeu 11 dos 113 kg que pesava antes da guerra. “Culpa da tensão… Há algumas semanas, um míssil passou em cima da nossa casa. O barulho nos acordou às quatro da manhã. Por enquanto, as tropas fascistas não tomaram Odessa. E se tomarem? O que será de nós?”
Em 23 de abril, dezenove dias depois da entrevista, a cidade amargou o pior ataque aéreo desde o começo do conflito. Os russos lançaram sete mísseis contra Odessa. Um dos artefatos atingiu uma zona residencial e matou pelo menos oito pessoas, incluindo um bebê de 3 meses. No TikTok, os Stoyanov informaram estar bem, apesar do susto.
(revista piauí)