Um caso raríssimo

Jornalista negro processa CNN Brasil por racismo estrutural

Em junho de 2016, as seleções da Alemanha e da Polônia se enfrentaram pela Eurocopa, o campeonato europeu de futebol masculino, no Stade de France, perto de Paris. Foi um jogo tedioso, que terminou sem gols, mas lá fora o clima esteve quente. Pouco antes da partida, a repórter Sonia Blota e o produtor Fernando Henrique de Oliveira, ambos da Band TV, cobriam o vaivém de torcedores nas imediações da estação ferroviária Gare du Nord quando cerca de cinquenta alemães os rodearam e gritaram: Get out, you niggers! Mandaram os dois irem embora, usando a expressão racista mais insultuosa da língua inglesa. O líder do grupo ameaçou a dupla de brasileiros com um bastão, chutou uma perna da jornalista e deu uma bofetada em Oliveira, que operava a câmera e conseguiu filmar parte da investida. Os agressores seguiram adiante sem que ninguém os importunasse.
A repórter e o produtor denunciaram o ataque para um policial que circulava pelas redondezas. Ele se esquivou. “Vocês me parecem bem. Não sofreram ferimentos graves. Melhor esquecer o que aconteceu para evitar um conflito maior”, explicou, de acordo com as vítimas. Inconformado, Oliveira prestou queixa numa delegacia.
A truculência virou notícia dentro e fora da França. Os agredidos concederam algumas entrevistas, inclusive para a Band. Quando soube do incidente, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) soltou uma nota. Classificou o episódio de deplorável e criticou a inércia da polícia. Com o intuito de remediar o estrago, o ministério francês das Relações Exteriores ofereceu um almoço de desagravo para a jornalista e o produtor.
Embora dissessem a palavra nigger no plural, tudo indica que os torcedores não se referiam à repórter, neta dos apresentadores Blota Júnior e Sônia Ribeiro, duas lendas da tevê nacional. Ela é branca de cabelos escuros e olhos castanhos. Frequentemente, na Europa, a confundem com italiana em razão do sobrenome calabrês. Já Oliveira é preto retinto. “A dor moral e psicológica que a bofetada me causou supera a física”, declarou à imprensa na época.

A CNN Brasil estreou em 15 de março de 2020. Enquanto montava sua infraestrutura, a emissora contratou Fernando Henrique de Oliveira, que acabara de deixar o programa Conversa com Bial, na Globo, onde ocupava o cargo de assistente de produção. Ele se formara em relações públicas havia quase duas décadas e tinha registro de jornalista desde julho de 2018. Pelo contrato que assinou na CNN, cuidaria da “produção de imagens e/ou reportagens diversas para transmissões”. Poderia, ainda, se dedicar à “apuração de pautas” e à “realização de coberturas jornalísticas”. Viveria em Nova York e trabalharia com a correspondente Luiza Duarte.
No dia 25 de maio de 2020, o norte-americano George Floyd Jr. – um segurança negro desempregado – virou símbolo planetário da luta contra o racismo. Preso em Minneapolis, sob a suspeita de usar dólares falsos para comprar cigarros, morreu sufocado pelo policial branco Derek Chauvin, que apoiou o joelho sobre o pescoço dele durante nove minutos. As imagens do assassinato, registradas por testemunhas, geraram uma onda de manifestações nos Estados Unidos, no Brasil e em dezenas de outros países.
Escalado para cobrir as repercussões do crime como repórter, Oliveira abandonou momentaneamente a postura distanciada e fez um relato de cunho pessoal. Gravou o depoimento na varanda do apartamento que alugava em Manhattan. De tranças afro, barba bem aparada e óculos, trajava roupas sóbrias: blazer cinza por cima de uma camisa azul com listras brancas e gola padre. O Empire State aparecia à distância. Depois de acertar o enquadramento de uma pequena câmera Sony e ajeitar o microfone de lapela, o jornalista contou que morava no East Village, “um bairro majoritariamente branco”, em cujos supermercados sempre tinha a impressão de que os seguranças o vigiavam. Também recordou o ataque dos torcedores alemães, quatro anos antes, e a indiferença da polícia francesa. “Infelizmente, nós ainda precisamos nos preocupar com quem deveria nos proteger”, concluiu.
Exibido pela CNN em 29 de maio, o testemunho de 1 minuto e 42 segundos ficou no site da emissora. “O produtor Fernando Henrique relata um dos momentos mais difíceis que enfrentou na carreira por causa do racismo”, anunciava o texto online que introduzia o vídeo. O próprio Oliveira divulgou o depoimento pelas redes sociais. No Instagram, redigiu: “Violência racial. Como jornalista negro, conto minha experiência por aqui. @CNNbrasil.” Uma imagem congelada do testemunho ilustrava o post.
Ele também publicou no Instagram trechos da cobertura que fez para o canal entre 26 de maio e 9 de junho de 2020, em Nova York, Minneapolis e Houston, cidade do Texas onde Floyd Jr. foi enterrado. Por quinze dias consecutivos, a CNN mostrou boletins de Oliveira sobre o caso, a maioria estritamente jornalísticos, sem comentários pessoais. Em 2 de junho, porém, a apresentadora Monalisa Perrone pediu outro depoimento de caráter particular para o colega: “Eu sei que você já sofreu racismo. Por isso, abra o coração e conte exatamente o que você está sentindo agora.” Ao vivo, enquanto acompanhava um protesto em Manhattan, Oliveira disse que não integrava nenhum “movimento de lutas raciais”, mas que considerava fundamental pleitear “igualdade e justiça”. Enfatizou que se pronunciava “em nome de todos os negros”, como representante “de um povo, de uma nação”, e não na condição de jornalista. Perrone agradeceu: “Obrigada pelas palavras, pela observação, por abrir o coração! Cobertura de verdade também tem emoção. É a emoção de quem tem o lugar de fala, né?”
No dia 10 de junho, Oliveira entrou novamente em cena para avaliar como o mundo deveria lidar com o racismo à luz do homicídio de Floyd Jr. Outros nove funcionários negros da CNN, incluindo um maquiador, uma executiva e quatro repórteres, se manifestaram. Todos fizeram reflexões genéricas, sem explicitar situações mais íntimas.
Dois meses depois, em 21 de agosto, o canal demitiu Oliveira por divergências salariais, embora o contrato dele só terminasse no ano seguinte. A emissora queria que o profissional voltasse para São Paulo. Ele concordou, mas reivindicou manter o salário de 4 mil dólares (cerca de 21 mil reais hoje) que recebia nos Estados Unidos. A CNN não aceitou e rompeu o contrato. No dia 19 de novembro, o jornalista entrou com uma ação contra a antiga empregadora. À primeira vista, parecia uma briga trabalhista convencional, assentada principalmente em pendências financeiras. Examinado de perto, o processo se revelava também outra coisa: uma batalha contra o “racismo estrutural” – conceito típico dos nossos tempos e cada vez mais invocado por trabalhadores negros nas relações com as empresas.
A ação judicial não acusa nenhuma pessoa física de discriminação racial. O único alvo é a CNN. Nas palavras dos defensores de Oliveira, o suposto comportamento racista da emissora não se comprova “pela chancela escancarada”, mas “pelas condutas sorrelfas”. Por isso, os advogados usam a expressão “racismo estrutural ou institucional” para se referir às práticas da empresa. O termo designa um conjunto de medidas corporativas, educacionais, políticas, econômicas, jurídicas, culturais ou religiosas que favorecem determinado grupo racial e colocam outros em desvantagem. Nem sempre são atitudes de fácil percepção e resultam mais de uma dinâmica coletiva e histórica que do anseio deste ou daquele indivíduo. O racismo estrutural, portanto, se confunde com a própria ordem social.
Não à toa, o tema está no cerne de todas as discussões contemporâneas sobre aquilo que os negros chamam de “segunda abolição” – uma nova alforria, mais abrangente e transformadora que a de 1888. Uma libertação que “transcenda o corpo da lei e faça prevalecer o espírito da lei”, conforme escreveu o cantor Gilberto Gil em maio de 2009, no jornal Le Monde Diplomatique Brasil. Uma abolição que ouse sair “do papel” e ganhe “as consciências”.

“Disputas jurídicas como a de Oliveira, que envolvem debates identitários, sempre nascem de um elemento subjetivo: a percepção de quem se julga ofendido.” A frase é da advogada mineira Juliana Bracks, que leciona direito do trabalho na PUC do Rio de Janeiro. Ela não se refere apenas às demandas acerca do racismo, mas também àquelas que tratam de segregação por gênero, faixa etária, orientação sexual, crença religiosa, predileção política, deficiência física e até obesidade. Enquanto discorre sobre o assunto, Bracks acaba tocando no ponto que liga o processo de Oliveira contra a CNN Brasil a uma questão central do século XXI:
“Um funcionário negro pode ver preconceito racial em circunstâncias que os brancos qualificariam de irrelevantes ou nem sequer enxergariam. Às vezes, a discriminação se manifesta de modo explícito e incontestável – o superior zomba das tranças afro de um subordinado ou o xinga de macaco. Outras vezes, porém, a intolerância lança mão de artifícios bem mais sutis. Nesses casos, o desgosto e a revolta do profissional que se considera atacado são absolutamente legítimos. Ou melhor: a percepção do trabalhador merece respeito, ainda que não baste em termos judiciais.”
A professora explica que, nos tribunais, a percepção do reclamante vale tanto quanto a do réu. “O funcionário negro sente que sofreu uma humilhação racista. O empregador branco sente que não humilhou ninguém. Por que a percepção de um deveria preponderar sobre a do outro?” Daí a necessidade de provas, que podem derivar de perícias, vídeos, áudios, mensagens de celular, documentos em papel ou testemunhos de terceiros. A interpretação final será do juiz, o que adiciona mais um ingrediente à equação: até que ponto a identidade do magistrado (sexo, cor da pele, origem socioeconômica) afeta suas decisões? “Todos esperamos que afete o mínimo possível, e que a sentença se baseie especialmente na análise técnica das provas”, afirma Bracks.
Em 2004, uma emenda modificou o artigo 114 da Constituição e permitiu às cortes trabalhistas julgar processos de indenização por danos morais. Antes, só a Justiça comum mediava o assunto. “A emenda de 2004 certamente vem estimulando o aumento de ações sobre conflitos identitários no ambiente de trabalho. O fortalecimento das redes sociais, que ampliou a consciência política dos grupos tradicionalmente afrontados, também contribui para o fenômeno”, diz a professora.
Segundo a Data Lawyer Insights, plataforma que coleta e analisa dados jurídicos, pelo menos 3,6 mil processos trabalhistas com menções a “preconceito racial”, “racismo” ou “discriminação racial” chegaram à primeira instância da Justiça brasileira no ano passado. É um recorde. Em 2018, houve 1,1 mil ações. Em 2019, 1,4 mil e, em 2020, 2,3 mil. O método de prospecção adotado pela Data Lawyer Insights não permite saber o teor exato de cada processo.
Bracks salienta que a reforma trabalhista de 2017 introduziu o princípio da sucumbência na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Desde então, se o reclamante perder uma ação, terá de pagar o advogado da parte contrária e as custas judiciais. O ex-funcionário da CNN corre, assim, o risco de ficar no prejuízo caso a emissora vença o litígio.

Em 2021, uma pesquisa telefônica com 202 jornalistas pretos e pardos de todo o país perguntou: os negros encontram mais dificuldades que os brancos para ascender nas redações? Noventa e oito por cento dos entrevistados afirmaram que sim. Quando os pesquisadores questionaram se os 202 profissionais já haviam enfrentado alguma espécie de racismo enquanto trabalhavam, 43% também responderam que sim.
As indagações aparecem no Perfil Racial da Imprensa Brasileira, estudo que o informativo Jornalistas & Cia realizou com dois parceiros – o Instituto Corda e a I’Max, agência de tecnologia e comunicação. Metade dos entrevistados se definia como do sexo masculino, e a outra metade, como do feminino. A maioria tinha entre 26 e 45 anos. Cerca de 60% desempenhavam funções operacionais. Eram repórteres, redatores ou diagramadores. Os restantes estavam em cargos gerenciais (diretores, editores ou chefes de reportagem).
Das diversas situações racistas que os entrevistados disseram viver durante o exercício da profissão, destacam-se:
* Ser confundidos com o pessoal da limpeza;
* Ouvir piadas ou recriminações sobre o cabelo;
* Enfrentar acusações de vitimismo nos momentos em que reclamam de preconceitos;
* Sentir que os colegas os veem com desconfiança;
* Amargar tratamento diferenciado de policiais ou seguranças durante as coberturas;
* Sofrer agressões verbais;
* Ganhar apelidos pejorativos, como “neguinho” e “crioulo”;
* Ser convocados para fazer reportagens mais negativas do que positivas em comparação com os brancos.
Por meio de telefonemas ou questionários online, o estudo também consultou 1 750 jornalistas de diferentes origens raciais, que atuavam em sites noticiosos, jornais, revistas, tevê, rádio, blogs e podcasts. Depois, extrapolou a amostra para os 61 mil profissionais do país (a estimativa é da I’Max) e chegou às seguintes conclusões:
* Embora 56% da população brasileira se intitule preta ou parda, as redações têm mais brancos (77,6%). Somente 20,1% dos jornalistas declaram-se negros. Os outros são amarelos (2,1%) e indígenas (0,2%);
* Os brancos ocupam mais cargos de chefia, recebem salários melhores e permanecem mais tempo na mesma empresa;
* A prevalência de um segundo emprego é maior entre os negros;
* Na pandemia de Covid, os brancos fizeram mais home office que os negros.
A CNN Brasil ainda não dispõe de números precisos sobre a composição étnica de seus 730 funcionários. Até dezembro, pretende implantar um comitê de diversidade, que promoverá um censo para garimpar tais informações.
(Na piauí, onde trabalham 35 profissionais, a situação de desigualdade se reproduz: apenas cinco – ou 14% – consideram-se negros. Nenhum deles exerce funções gerenciais.)

Apesar de tamanho desequilíbrio na imprensa, processos trabalhistas como o de Oliveira são raríssimos. A Comissão Nacional de Jornalistas pela Igualdade Racial (Conajira), fundada em 2010, desconhece ações similares. “De modo geral, os pretos e os pardos evitam acionar a Justiça quando sofrem preconceito nas redações. Algumas vítimas até processam colegas, mas poucas se rebelam contra as empresas”, diz Valdice Gomes, integrante da comissão. “Os negros enfrentam vários obstáculos para atingir um mínimo de segurança na carreira. Se conseguem furar a bolha, acabam priorizando a empregabilidade. Temem queimar o filme no mercado caso briguem judicialmente com os patrões.”
O cenário não é muito distinto em outras áreas da comunicação. Recentemente, porém, a publicitária negra Rafaela Keroty Ferraz fugiu à norma e acusou de racismo a agência Plug. O processo tramitou na 27ª Vara do Trabalho de São Paulo. Em 25 de agosto de 2020, durante a pandemia, a agência convocou a reclamante para uma reunião por vídeo. Uma supervisora, também negra, iniciou assim o encontro: “Estou com vontade de ver todo mundo. […] Quero ver se [citou o nome de um funcionário, não mencionado nos autos] cortou o cabelo e se a Rafa continua preta.” O comentário deixou a publicitária bastante constrangida e a levou às lágrimas. Ela fechou a câmera da plataforma digital para não chorar diante da equipe.
No dia seguinte, a subordinada procurou a supervisora, criticou a abordagem e ouviu um pedido de desculpas. Assim que soube do ocorrido, o dono da agência menosprezou o episódio. Ponderou que a supervisora não quis ofender ninguém. “Ela só fez uma brincadeira fora de hora para descontrair a tensão da pandemia”, explicou à publicitária, de acordo com a ação judicial. Dois meses depois, a Plug demitiu Rafaela Ferraz sob a justificativa de que passava por solavancos financeiros. A publicitária recorreu à Justiça – e ganhou.
Em maio de 2021, a juíza Renata Bonfiglio proferiu uma sentença que desperta a atenção pela clareza e veemência quando descreve como a discriminação racial pode comprometer as relações de trabalho:
O fato de a ofensora e a própria reclamada não enxergarem no comentário qualquer ofensa não é suficiente para que a ofensa não tenha existido. […] A triste realidade é que há inúmeras práticas racistas naturalizadas em nosso cotidiano e materializadas em microagressões, que partem de comportamentos [] por vezes inconscientes. A situação dos autos [] é apenas mais um exemplo do que se convencionou chamar de “racismo recreativo”. []
A verdade é que todos nós precisamos estar atentos para não incorrer nesse padrão comportamental tão enraizado na sociedade. […] No ambiente de trabalho, cabe ao empregador essa fiscalização. Do contrário, estará sendo conivente com piadas que são verdadeiras manifestações de injúria racial, como é o caso em apreço.
Observe-se que a forma como a ré se posiciona em sua defesa, minimizando o desconforto e constrangimento da reclamante, já demonstra a existência de uma microagressão. [Segundo a reclamada, uma piada que envolva questões raciais serve para “descontrair a tensão”, o que representa um padrão de conduta que precisa ser revisto e combatido. [] Causa espanto ao Juízo que, justamente numa empresa de comunicação, que se diz atenta e preocupada com inclusão e diversidade, um fato como esse tenha sido banalizado.
A sentença determinava que a agência pagasse 20 mil reais à ex-funcionária por danos morais. No dia 13 de maio de 2021, quando a abolição da escravatura completou 133 anos, as partes encerraram a pendência ao firmar um acordo que reduziu a indenização para 18 mil reais.

Duas semanas antes de a ação de Fernando Henrique de Oliveira contra a CNN Brasil entrar em segredo de Justiça, a piauí teve acesso à sua íntegra. Os autos, que estão na 80ª Vara do Trabalho de São Paulo, somam 410 páginas. A maioria delas aborda questões de cunho essencialmente trabalhista, como a reversão da demissão ou a remuneração em dobro do jornalista pelos dezessete meses que faltavam para o término do contrato. Num conjunto menor de páginas, entretanto, Oliveira acusa a emissora de lesá-lo com uma série de gestos racistas, ferindo o artigo 5º da Constituição, que considera o racismo um crime inafiançável e imprescritível. Pelo delito, o profissional reivindica indenização por danos morais.
Uma das discriminações raciais que o jornalista atribui à emissora é justamente a de requerer os testemunhos pessoais sobre os preconceitos que ele já sofreu, como a agressão durante a Eurocopa. Conforme Oliveira alega no processo, o canal o obrigou a fazer os relatos de acordo com um “roteiro repassado pela chefia”. Para provar, os dois advogados do ex-funcionário – Carlos Daniel Gomes Toni e Kiyomori André Galvão Mori – apresentam trocas de mensagens entre o jornalista e Adriana Mabilia, uma das editoras que cuidavam do caso George Floyd Jr. Ela trabalhava na sede da CNN, em São Paulo.
– Fê, hoje […] você poderia entrar pra dar a tua percepção de tudo – escreveu Mabilia no WhatsApp.
– Claro, Dri. Fechado! – concordou Oliveira.
– Olha só. Editor me passou aqui. Vou te passar algumas orientações, tá? – prosseguiu Mabilia. – O vídeo precisa conter de 1 min a 1 min 30. É um depoimento, em que as pessoas respondam… Quem é você? Já foi vítima de preconceito? Qual mais te marcou?
A profissional referia-se à gravação de Oliveira na varanda de seu apartamento em Nova York. Por áudio, a editora complementou:
– Vamos fazer uma coisa bacana? […] Um depoimento… Questões históricas… Você trazer coisas da tua vida. Vamos pensar nisso? Mas é urgentão!
Nas redações, os editores costumam orientar os subordinados sobre o ângulo e a duração de um testemunho ou uma reportagem, tanto que Oliveira não se constrangeu ao receber as diretrizes e concordou em segui-las. Mais tarde, porém, o jornalista percebeu que o pedido de um depoimento daquele tipo, a respeito de uma experiência tão particular e dolorosa, configurava racismo. Fenômeno parecido ocorre com inúmeras vítimas de assédio sexual, que só se dão conta do ataque tempos depois de o sofrerem. Para Oliveira, a CNN lhe destinar uma tarefa como aquela é tão invasivo quanto solicitar a um repórter judeu que, durante a cobertura de uma passeata contra os neonazistas, evoque as perseguições antissemitas que já enfrentou.
No processo, o ex-funcionário acrescenta que a emissora o menosprezou com pelo menos outras três práticas racistas:
* Todos os jornalistas negros da redação ganhavam salários menores que os dos brancos quando exerciam funções iguais às deles. Oliveira diz que as provas das diferenças salariais estão “em poder da ré”, ou seja, da CNN. Como também fazia reportagens, extrapolando as atividades habituais de produtor, ele pede equiparação salarial retroativa com o cargo de repórter.
* O canal queria que Oliveira fosse segurança de Luiza Duarte enquanto a correspondente apresentasse boletins noturnos na rua. Os autos trazem mensagens que a chefia endereçou para o jornalista em 27 de julho de 2020, uma segunda-feira. O primeiro e-mail indagava se Oliveira poderia “acompanhar a Luiza nos deslocamentos à noite” durante a semana. Ele respondeu que não. Informou que tinha aulas às terças, quartas e quintas. Não entrou em detalhes, mas reservara os horários para um curso online de reeducação corporal e reuniões virtuais sobre um doutorado que planejava fazer. A chefia desaprovou a justificativa. Reclamou que os compromissos atrapalhavam o fluxo da redação e lembrou que um sem-teto perseguira Duarte numa cobertura recente. Contou, ainda, que a repórter amargara “diversas outras situações incompatíveis”. Por fim, sublinhou: “É inviável a Luiza trabalhar à noite, sem produtor.” Oliveira bateu o pé e não acompanhou a correspondente, que realizou os boletins sozinha.
* Depois de demiti-lo, a empresa tratou o jornalista como carregador. Pediu que ele levasse para São Paulo todos os equipamentos de Nova York, inclusive os usados por Duarte (nessa altura, a repórter havia deixado a emissora para tocar projetos pessoais). Eram 38 itens, entre microfones, cabos, baterias, refletores e um iPhone 11. O material, que não estava no seguro, ocupou quatro malas. Já os pertences do ex-funcionário, apenas uma. Assim, em 30 de agosto de 2020, nove dias após a demissão, Oliveira voou para a capital paulista com cinco malas. O canal pagou pelo excesso de bagagem.
Caberá à Justiça decidir se as denúncias do jornalista constituem racismo ou não. Sob a ótica de Oliveira, no entanto, está claro que a CNN não só adota regras e princípios que reproduzem a desigualdade racial em vigor no país como os naturaliza, tornando-os quase ocultos. “O racismo institucional da ré […], por óbvio, não se comprova pela chancela escancarada […], mas pelas condutas sorrelfas que se seguiram durante toda a relação de trabalho”, escrevem os advogados no processo.
Embora não usem a expressão “tokenismo” (estratégia de quem deseja parecer mais inclusivo do que realmente é), os defensores de Oliveira fazem uma alusão à tática: “Assim como William Waack disse ‘até tenho amigos negros’, a emissora até passou a admitir jornalistas negros, após contratar aquele que fora demitido […] da Globo, [depois de ser] flagrado pelas câmeras em suposto ‘gracejo’ de dar inveja aos segregacionistas do apartheid sul-africano.”
O trecho joga luz sobre um episódio ocorrido durante as eleições presidenciais norte-americanas de 2016. Na ocasião, Waack ancorava o Jornal da Globo e acompanhava a apuração dos votos. Ele se preparava para entrar no ar em Washington, com o comentarista Paulo Sotero, quando um carro buzinou insistentemente nas imediações do estúdio. “Tá buzinando por que, ô seu merda do cacete?”, resmungou Waack. “Não vou nem falar […] É coisa de preto. Com certeza.” Na sede paulistana do canal, um operador de vídeo, negro, teve acesso às imagens do destempero e as gravou pelo celular. Um ano depois, o caso se tornou público, e a Globo demitiu Waack, que se desculpou por fazer “uma piada idiota”. Em junho de 2019, a CNN o contratou.
O âncora integrou a equipe da emissora que cobriu o assassinato de George Floyd Jr. Pelas redes sociais, não faltaram queixas. “Porra @CNNBrasil, vocês só podem tá de sacanagem. Tão fazendo isso pra irritar a gente, né?! william waack, repito, william waack comentando racismo? Aaah, mano…”, tuitou um jovem negro. Convidada do programa CNN 360º, a jornalista Alexandra Loras, também negra, mexeu no vespeiro, ao vivo, em junho de 2020. Ela repudiou o protagonismo de Waack e frisou que a mídia detinha “o poder” de chamar acadêmicos pretos ou pardos para discutir o homicídio de Floyd Jr. “Não é apenas com gotinhas de cotas nas universidades que vamos resolver a questão racial no país”, afirmou. O canal não se pronunciou.
No dia 15 de abril de 2021, acusações de racismo assombraram novamente a CNN. Reportagem publicada pela agência de notícias Alma Preta contou que a analista de política Basília Rodrigues sofria perseguições dentro da emissora. A Folha de S.Paulo reiterou as denúncias. Segundo as apurações, funcionários do canal tratavam a jornalista negra com desrespeito. Reclamavam do cabelo “desgrenhado” e das “olheiras” dela ou criticavam os cenários que Rodrigues escolhia para entrar no ar quando estava em home office. Editores de imagem evitavam mostrar o rosto da analista. Preferiam substituí-lo por cenas ilustrativas enquanto transmitiam somente a voz de Rodrigues. Nem a Alma Preta nem a Folha identificaram os profissionais que fizeram as denúncias.
Logo que as reportagens saíram, a CNN classificou os relatos de gravíssimos e anunciou que iria investigá-los. De antemão, esclareceu que considerava o cabelo afro “um símbolo importante de resistência e empoderamento”, que eventuais ajustes nos cenários seguiam critérios técnicos e que “nunca houve qualquer orientação” para ocultar o rosto da jornalista. Pelo Twitter, Rodrigues limitou-se a agradecer o apoio da empresa e as mensagens solidárias de amigos, colegas e desconhecidos. Em agosto de 2021, a emissora divulgou que as investigações não detectaram racismo. Concluíram apenas que alguns funcionários tinham agido de modo inadequado. O canal não informou se os puniu.
Entre as acusações de Oliveira que extrapolam a seara racial, constam delitos trabalhistas relativamente comuns nas redações do país. Ele afirma que a CNN exigiu contratá-lo como pessoa jurídica, e não física, para pagar encargos menores. Também diz que a emissora lhe deve horas extras e adicionais noturnos. Se levar tudo o que pede, o jornalista receberá cerca de 700 mil reais. Desse total, 50 mil reais equivalem à reparação pelos atos racistas.
Como o processo está sob segredo de Justiça desde março de 2021, nem o canal nem Oliveira nem os advogados das partes podem falar sobre a causa fora dos tribunais. Só os envolvidos têm o direito de assistir às audiências.

A defesa da CNN Brasil, assinada pelo advogado Marcelo Costa Mascaro Nascimento, ocupa oitenta páginas do processo. Apenas nove delas se debruçam sobre as supostas condutas racistas. A emissora nega “veementemente” todas as acusações. Diz que o ex-funcionário age de maneira “leviana” por mencionar fatos inexistentes. Para o canal, Oliveira cai em contradição quando tacha de discriminatórios os testemunhos pessoais que deu enquanto cobria o caso Floyd Jr. Se a CNN realmente cometesse racismo, jamais permitiria que o jornalista expusesse no ar os preconceitos que enfrentou, sustenta a defesa. Tampouco deixaria que outros profissionais negros se pronunciassem durante a mesma cobertura, conforme ocorreu em 10 de junho de 2020. “A empresa-ré adota comportamento totalmente diverso daquele relatado [pelo ex-funcionário]. Observa-se claramente […] que a reclamada abriu espaço para seus colaboradores externarem sua opinião, como forma de reforçar a importância de assegurar o respeito ao ser humano, independentemente da cor da pele”, ressalta Mascaro Nascimento no processo.
Ainda de acordo com o advogado, ninguém exigiu que Oliveira testemunhasse nem que o depoimento dele seguisse um “roteiro repassado pela chefia”. A mensagem de WhatsApp que o jornalista recebeu de Adriana Mabilia, a editora em São Paulo, seria mais “uma indagação” do que “uma imposição”: “Fê, hoje […] você poderia entrar pra dar a tua percepção de tudo.” A CNN argumenta que havia a possibilidade de Oliveira recusar o pedido, mas ele “não o fez”. Pelo contrário: preferiu concordar “expressamente” em se manifestar (“Claro, Dri. Fechado!”).
Quanto à denúncia de que todos os jornalistas negros da redação ganhavam menos que os pares brancos, a emissora diz se tratar de uma afirmação “infundada”. Por isso, não lhe caberia abrir a folha de pagamento para a Justiça. “A atribuição de demonstrar a existência de fatos que não existiram […] fere o princípio da razoabilidade”, contrapõe a defesa. O canal também classifica de “impertinente” a reclamação de que Oliveira deveria ganhar salário de repórter.
A CNN contesta, ainda, que pretendeu converter o antigo funcionário em segurança de Luiza Duarte. Quando o convocou para acompanhá-la na rua, a emissora queria somente garantir “o suporte de produção” necessário às imagens que integrariam os boletins noturnos da correspondente. Oliveira cuidaria, por exemplo, “das questões técnicas de luz”.
O canal anexou à ação um e-mail que Mabilia enviou em 13 de julho de 2020. A mensagem elogiava uma matéria de Duarte e Oliveira sobre a ressurreição dos cinemas drive-in nos Estados Unidos durante a pandemia. “Fê e Lu, o VT [jargão para reportagem] ficou ótimo. Vocês viram? Imagens lindas… UAU! Parabéns. Valeu o esforço… Muito!”, escreveu a editora. Conforme a defesa, o e-mail mostra que a CNN “sempre primou pelo tratamento respeitoso e pelo reconhecimento da qualidade da prestação de serviço, situação longe de se caracterizar como […] racismo estrutural”.
“Por amor ao debate”, Mascaro Nascimento também coloca em xeque as críticas que os advogados do jornalista fizeram à contratação de William Waack. Recriminar a ida dele para o canal revelaria tanto uma “evidente posição discriminatória” de Oliveira quanto o desejo de condenar perpetuamente o apresentador, tirando-lhe o direito de continuar na profissão depois de sair da Globo.
Como baseia as acusações de racismo em “alegação desprovida de veracidade”, prossegue a defesa, o ex-funcionário estaria praticando “litigância de má-fé”. Ou melhor: estaria corrompendo a “lealdade processual” e tentando induzir “o Juízo a erro”. A estratégia, se comprovada, é passível de multa.
A própria CNN pediu o segredo de Justiça. “Os fatos alegados […], muito embora improcedentes […], têm potencial para macular a reputação de um dos canais mais influentes do mundo”, afirma Mascaro Nascimento nos autos. “Ademais, [fatos dessa natureza acabam] se transformando em notícia, que é levada ao conhecimento de colunistas de televisão para ser publicada.” No dia 9 de março de 2021, o juiz Gabriel Garcez Vasconcelos acatou a reivindicação e decretou o segredo.
Um mês depois, a CNN nomeou Renata Afonso como presidente. A executiva – branca – substituiu Douglas Tavolaro, fundador e sócio minoritário da emissora, que vendeu suas ações para o banqueiro e empreiteiro Rubens Menin, agora o único controlador do canal. Egressa de uma afiliada da Globo em São Paulo, Afonso é casada com outra mulher. Ela mesma deu a informação durante as primeiras reuniões de que participou na CNN. Também disse à nova equipe que abomina qualquer preconceito e que cresceu sob os cuidados de parentes negros. “Quero fazer uma gestão transparente. Por isso, não poderia esconder quem sou e quais as minhas convicções”, explicou para o site Notícias da TV.
Desde que tomou posse, a presidente busca estimular as discussões sobre diversidade e inclusão dentro e fora da empresa. Não à toa, em outubro de 2021, a emissora lançou o CNN no Plural. O projeto – idealizado pela gerente de conteúdo Letícia Vidica, uma jornalista preta – dissemina por todas as plataformas do canal reportagens que tratam de assuntos caros às chamadas minorias, como o etarismo, a identidade de gênero, a transfobia, a Lei de Cotas e a luta contra a Aids. O podcast Entre Vozes aborda temas semelhantes e se encaminha para a terceira temporada. A âncora Luciana Barreto o apresenta. Ela, que também comanda o programa Visão CNN, figurou na lista dos duzentos afrodescendentes mais relevantes do planeta em 2021. O levantamento anual conta com o apoio da Organização das Nações Unidas (ONU).
No último 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, outro âncora preto, Jairo Nascimento, pediu licença para ler um “manifesto pessoal” durante o CNN Sábado Manhã:
Há quem diga que o racismo é mi-mi-mi, frescura, exagero e que, no fundo, a escravidão foi boa. O absurdo dessas ideias escancara o perfil de uma pessoa: o racista. No geral, ele estuda pouco e desconhece o passado do país, mas se vangloria desse desconhecimento convicto. Ele se acha uma boa pessoa, tem até um amigo negro para chamar de seu e que cai muito bem como um tipo de estepe se rolar um processo ou uma acusação de racismo. A empregada negra é quase da família, enquanto o cachorro, esse sim, esse é da família. O racista nunca é racista. Ele sempre é vítima do racismo que chama de reverso, de um mal-entendido, ou diz que estava apenas emitindo uma opinião. O racista precisa cair na real. As bases da escravidão são o sequestro, os assassinatos, a tortura, os estupros, a destruição cultural, os trabalhos forçados, a separação de famílias e etnias, além do roubo de propriedade, identidade e humanidade. Só por aqui isso aconteceu ao longo de quase quatrocentos anos. O resultado está na negação de direitos à maioria dos brasileiros pretos e pardos, que têm apenas acesso aos piores índices sociais. O Brasil precisa tratar o racista por aquilo que ele é, um criminoso. […] Eu quero dar um conselho a você, racista: assuma o seu crime, repense o seu preconceito e modernize as suas ideias. Entenda que você não é dono do meu passado […], nem das minhas vontades, nem dos meus pensamentos. Não lhe cabe determinar o que eu quero ou dar tamanho à minha dor. Economize seus adjetivos. Você, racista, é ultrapassado. A cada dia, com o despertar dos negros, você terá que […] aguentar a nossa pele, os nossos cabelos, a nossa teimosia em forma de resistência, a nossa história, a nossa inteligência e, claro, os nossos batuques.

Mesmo que involuntariamente, Hebe Camargo e Fausto Silva, o Faustão, contribuíram para que Fernando Henrique de Oliveira se encantasse pelas comunicações. Ele pegou no batente muito cedo, aos 13 anos. Não precisava trabalhar, mas já queria ganhar o próprio dinheiro. Ia para a escola de manhã e, à tarde, era balconista no boteco dos avós maternos. Com o salário, comprava roupas moderninhas, cadernos de capa dura ou lapiseiras prateadas. De quebra, a grana o deixava um pouco mais independente do pai, funcionário administrativo da prefeitura paulistana que criava os filhos sem nenhum tato – gritava, batia, ameaçava.
Na periferia de São Paulo, onde nasceu e se educou, Oliveira levava uma vida de classe média baixa. A casa térrea em que morava tinha 60 m², se tanto. Ele dividia o quarto com os dois irmãos e estudava numa escola pública. A mãe se dedicava às tarefas domésticas. Caso sobrasse tempo, descolava uns trocados como manicure. Nas férias, a família passava alguns dias em Praia Grande, balneário popular da Baixada Santista.
Perto dos 15 anos, Oliveira arranjou uma ocupação melhor, graças à indicação de um vizinho. Tornou-se office boy numa agência especializada em clippings, relatórios que reúnem informações divulgadas pela mídia sobre determinadas marcas ou personalidades. Entre os clientes da empresa, estavam Hebe e Faustão. De vez em quando, o garoto entregava clippings no endereço deles. Embora nunca conseguisse vê-los, se sentia o máximo por atender duas estrelas da tevê. A incumbência lhe parecia mais fascinante e promissora do que servir os fregueses dos avós.
O adolescente também deixava relatórios numa assessoria de imprensa muito requisitada por galerias e centros culturais. De tanto ir lá, conquistou a simpatia dos funcionários e recebeu um convite para trocar de emprego. Aceitou sem hesitar. Na ocasião, planejava estudar artes plásticas por influência de um tio, que fazia luminárias decorativas e pintava quadros. Como office boy da assessoria, Oliveira ganharia mais e ainda poderia se aproximar de artistas, marchands e curadores.
Foi assim que, com quase 16 anos, pisou num vernissage pela primeira vez. Ficou boquiaberto: o champanhe e as telas o deslumbraram. Ele logo se transformou num habitué de exposições e leitor voraz de críticas. Descobriu as vanguardas modernistas, a pop art, o abstracionismo e as performances. Por tabela, constatou que os brancos imperavam naqueles ambientes. Raríssimos negros visitavam as mostras. Oliveira já tinha certa noção do racismo, mas agora o problema se desnudava com nitidez. A maioria dos negros que circulava pelos eventos usava uniforme de segurança, garçom ou copeiro.
O desejo de cursar artes plásticas acabou descartado em nome da prudência. Quando terminou o ensino médio, o jovem decidiu seguir a carreira de relações públicas, que considerava menos instável. Foi aprovado no vestibular da UniSant’Anna, uma instituição privada. De início, julgou que conseguiria arcar sozinho com a nova despesa. Enganou-se: o salário de office boy mal dava para a alimentação no campus. À época, os pais de Oliveira já não viviam juntos. A separação do casal desequilibrou o orçamento doméstico. Pedir ajuda à família não estava mais no horizonte. Ele buscou, então, um financiamento do governo federal. Assim, durante a maior parte da graduação, pagou apenas 30% da mensalidade. Só liquidou o resto depois da formatura.
Antes de chegar à UniSant’Anna, estudou numa única escola. Não figurava entre os primeiros da turma, mas nunca repetiu de ano. Expansivo e aguerrido, se elegeu presidente do grêmio quatro vezes. Brigou para que o colégio fornecesse merenda de qualidade, organizasse passeios culturais, aprimorasse a limpeza das salas e não atrasasse a entrega gratuita de cadernos. Nos tempos de faculdade, porém, o rapaz se distanciou das lutas estudantis. Também evitou militar em partidos políticos ou engrossar movimentos identitários. Preocupava-se mais com as aulas e o trabalho. Mesmo assim, se proclamava um “preto de esquerda”.
A mãe de Oliveira não pulou de alegria quando o primogênito entrou na universidade. “Abra o olho, menino! Não imagine que mudou de cor só porque anda no meio dos ricos”, advertia. “Curso superior é papo de branco. Você vai torrar uma fortuna com a faculdade e, depois, não vai encontrar nenhum emprego que compense o investimento.” A orientação sexual do jovem – gay assumido desde a adolescência – causava atritos adicionais. A mãe rejeitava os gestos delicados, a voz fina e os trajes exuberantes do filho.
Não por acaso, às vésperas dos 19 anos, Oliveira saiu da casa materna para dividir uma quitinete com um professor da UniSant’Anna, também negro e gay. Em poucas semanas, o rapaz já enxergava o parceiro de apartamento como um híbrido de pai, irmão mais velho e mentor intelectual. O professor, que ensinava língua portuguesa, tinha centenas de livros. “Não leia apenas os textos da faculdade. Explore a minha biblioteca”, sugeria para o jovem, que acatava todas as recomendações de leitura. Certo dia, o professor lhe perguntou: “Que tal estudar fora do Brasil?” O universitário jamais aventara a hipótese. “Por que não? Quem sabe a França…”, insistiu o professor. “Se você realmente quiser, vai rolar.” O incentivo surtiu efeito.
Contrariando os receios da mãe, Oliveira arrumou bons empregos nos primeiros anos de formado, conseguiu poupar um dinheirinho e levou adiante o conselho de ir para a França. Desembarcou por lá no segundo semestre de 2007. Seis meses antes da viagem, teve aulas básicas de francês. Em Paris, continuou o aprendizado na Sorbonne, que oferecia cursos para estrangeiros. Tão logo se tornou fluente, tratou de alçar voos maiores. Ainda na Sorbonne, concluiu uma licenciatura e dois mestrados, sempre em arte e cultura. Sustentava-se principalmente com bolsas e outros tipos de apoio governamental. Se necessário, fazia bicos em restaurantes e bares. Não raro, cuidava de crianças.
Em 2011, o jornalismo da Band precisou de um produtor e cinegrafista na França. Era uma vaga temporária. Como sabia operar câmeras, Oliveira se candidatou. Deu conta do recado, e a emissora o convocou mais vezes. Com o tempo, ele se firmou no ofício, que exercia em paralelo às obrigações acadêmicas. Quando não prestava serviços para a Band, auxiliava o SBT, a Rede TV!, a France Télévisions e o canal russo RT.
No início de 2018, recebeu uma proposta da Globo. O programa Conversa com Bial queria incorporá-lo à equipe de produção, que ficava em São Paulo. Oliveira aceitou a oferta, mesmo sem curtir muito a ideia de deixar Paris. Aproveitou o retorno à cidade natal para obter o registro de jornalista no Ministério do Trabalho. Em dezembro de 2019, trocou a Globo pela CNN Brasil e São Paulo por Nova York. Hoje, com 39 anos, está de volta à capital francesa. Solteiro, não tem filhos, segue ganhando a vida como produtor e faz doutorado em economia da cultura.
Entre março e outubro de 2020, enquanto morava nos Estados Unidos, foi colunista da Gama, revista eletrônica do grupo Nexo. Escrevia sobre arte e questões raciais. Num dos artigos, relembrou o momento em que tirou o passaporte pela primeira vez, já com a intenção de viajar para a França. “Um sufoco. […] Todo mundo me achou maluco. Ir à polícia sem ser detido era algo novo no meu pedaço.” Ele contou que, quando começou a viver em Paris, finalmente se sentiu tratado de maneira respeitosa. “Me chamavam de monsieur DE OLIVEIRA (com um leve acento no A, bem francês).” Sempre que visitava o Brasil, se entristecia “por deixar para trás o respeito e o vocativo de senhor”.
Em outro artigo, abordou a cobertura do assassinato de George Floyd Jr.: Caminhar pelas ruas de Houston, no Texas, faz de mim um homem dividido: aquele que narra e aquele que está prestes a inventar suas próprias leis. […] As horas passam, e as reflexões não param. Minha conclusão é que Floyd cometeu, sim, um crime: nasceu preto. Minha entranha está dilacerada. Eu também sou um criminoso […]: nasci preto. […] Dizer que a vida dos negros importa é essencial, mas dizer isso para nós, sinceramente, não muda nada. […] O que Floyd, eu e tantos outros temos em comum é que somos fruto da desigualdade social. Não somos e não seremos iguais enquanto eu tiver três vezes mais chance de ser assassinado pela polícia do que você.
Num terceiro artigo, Oliveira discorreu sobre o Dia da Consciência Negra:
Se não bastasse lidar com todas as frustrações, lido com o que dita a moda. […] Por conta da cor, pelo famoso lugar de fala e talvez por minha formação acadêmica, às vezes sou sondado para o dia de “preto brilhar” […]. Dos oito convites que me foram feitos – entre eles, escrever um texto, dar uma palestra e fazer um filme para a internet – nenhum foi remunerado. Nenhum. Minha leitura? “Aproveite o momento para levantar a bandeira da sua gente. Não precisamos te pagar para isso; na verdade, é uma oportunidade.” Além de ser frustrante, é a morte do bom senso. Mudar pressupõe repensar a economia e a distribuição de renda.
Quando vivia em Nova York, o jornalista também conversou a respeito de Floyd Jr. com o publicitário Bruno Infanger, que mantém o canal Alto Papo no YouTube. A entrevista durou 28 minutos. Logo no início, Infanger perguntou se falar de racismo incomodava Oliveira. O entrevistado respondeu que considera necessário discutir o assunto, embora não goste de recordar “o que já aconteceu” com ele próprio ou “algum amigo, primo, parente”. E explicou: “Na verdade, lembrar é sempre muito doloroso”.
(revista piauí)

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