De patas pro ar

A aposentadoria do labrador Guapo, cão de busca que trabalhou nas inundações gaúchas

Valente, fiel, obstinado, excepcional. Em 4 de julho, durante uma cerimônia de meia hora na Câmara Municipal de Santa Maria (RS), não faltaram elogios para o homenageado, um bombeiro de características incomuns. “Lembraremos eternamente de ti”, discursou Manoel Badke, vereador do União Brasil e presidente da Casa. Enquanto acompanhava a celebração, o merecedor das loas às vezes bocejava e fungava. Outras vezes, se deitava no carpete azul do plenário ou coçava a barriga sem o menor recato. Não bastasse, ousou dispensar a farda e compareceu à solenidade praticamente nu. Vestia apenas um colete vermelho.
O herói de Santa Maria é um labrador retriever de 10 anos e 3 meses, pelagem marrom, focinho grisalho e 30 kg. Gaúcho da fronteira, tem antepassados uruguaios. Por isso, chama-se Guapo, adjetivo que, tanto em espanhol quanto em português, significa bonito, elegante ou corajoso. Ele integra o 4º Batalhão de Bombeiro Militar e, desde 2016, trabalhava como cão de busca. Procurava mortos em desabamentos, enchentes e deslizes de terra ou vítimas desaparecidas de homicídios. Agora, depois de muitas façanhas, está se aposentando. Daí o aplauso dos parlamentares.
Nas centenas de missões em que atuou, Guapo sempre contou com o auxílio de outro bombeiro, igualmente gaúcho, só que de 46 anos e 1 mês, pele branca, cabelos castanhos e 90 kg. O primeiro-sargento Alex Sandro Teixeira Brum se afeiçoou por cachorros ainda menino. Na época, morava perto de Santa Maria, em Dilermando de Aguiar, onde a família tocava um armazém de secos e molhados. “Vivíamos num sítio, e nosso vizinho criava gado. Eram 160 cabeças. Para complementar o orçamento doméstico, meu pai cuidava do rebanho com o apoio de dois vira-latas. Observar a camaradagem daquele trio me comovia.”
Em 1998, à beira dos 20 anos, Brum ingressou no Exército e logo se incumbiu de uma tarefa que o fascinou: amestrar os cães encarregados de farejar drogas ou vigiar propriedades. “Eu treinava principalmente rottweilers e pastores-alemães”, recorda. Mais tarde, trocou as Forças Armadas pela Polícia Militar e acabou no Batalhão de Choque. Quando saiu de lá, resolveu combater infrações contra a fauna e a flora. Migrou para a Polícia Militar Ambiental, que o acolheu por quase uma década.
Veio, então, o desejo de se tornar bombeiro. “Percebi que gostaria de lidar com outro tipo de cachorro: os de busca, resgate e salvamento.” O curso preparatório de 45 dias exigia que os alunos dispusessem de um cão ágil e tranquilo. Como não possuía nenhum do gênero, o futuro bombeiro pegou Guapo emprestado de um amigo. A dupla se deu tão bem que Brum comprou o labrador assim que o curso terminou.
Ao longo dos meses seguintes, o militar continuou o adestramento de Guapo em casa e no quartel. “Existem cachorros que rastreiam somente humanos vivos. Eles se guiam sobretudo pelo olfato e pela audição. São capazes de ouvir a respiração e o batimento cardíaco de quem estão procurando”, explica o primeiro-sargento. “Já o Guapo se especializou em localizar humanos que morreram. Usa especialmente o faro e consegue notar a diferença entre o cheiro de pessoas e o de galinhas, vacas, porcos, cavalos, tatus…” Para alcançar essa habilidade, os cães treinam com restos cadavéricos de homens e mulheres. “Serve qualquer parte do organismo que exale algum odor marcante: rim, fígado, estômago, placenta ou até um membro amputado. Cabelos, dentes e unhas não funcionam direito”, afirma Brum. Os adestradores adquirem o material em hospitais e nos institutos médicos legais. “Os cachorros, porém, não acessam diretamente os resíduos biológicos. Nós enfiamos tudo dentro de caixas, e os cães se relacionam apenas com os cheiros.”
À semelhança de outros investigadores caninos, Guapo lidava com seu ofício co­mo um jogo, uma brincadeira. A eficácia das buscas dependia bastante de quanto o animal se revelava apto para compreender os sinais do tutor e vice-versa. “Eu colocava o uniforme, e o Guapo já entendia que precisava botar o nariz em alerta.” Assim que a dupla chegava à área de varredura, o primeiro-sargento dava um único comando: “Procura!” O labrador se aprumava de imediato e começava o expediente. Caso descobrisse algo relevante, latia de um jeito específico. O militar averiguava o ponto indicado e recompensava o parceiro com tapinhas, afagos ou palavras de incentivo: “Bah, guri! Excelente!” Não raro, também lançava bolinhas surradas de tênis para Guapo apanhar ou iniciava um cabo de guerra. Só evitava lhe oferecer petiscos. “O malandro é comilão. Não pode engordar.”
O primeiro-sargento ressalta que o labrador nunca enfrentou jornadas exaustivas. “Trabalhávamos, no máximo, por duas horas ininterruptas. Não adianta forçar os cachorros. Eles necessitam de descanso entre os deveres. Do contrário, perdem o prazer de vasculhar.” Brum acrescenta mais uma qualidade às que os vereadores exaltaram em Guapo: a calma. “O bicho não se afobava nos rastreamentos. Examinava cada metro de terreno com atenção, minúcia e vagar. Uma belezinha!”

O cão estreou como detetive no dia 31 de maio de 2016, em Dilermando de Aguiar. Uma jovem sumiu repentinamente, e o labrador recebeu a atribuição de encontrá-la. Havia a suspeita de que o companheiro da moça a matara e escondera o cadáver. Com a colaboração de outros cachorros, Guapo esquadrinhou o sítio que o casal compartilhava. Não identificou nada. A polícia acabou confirmando o crime, mas o homicida nunca esclareceu onde depositou o corpo.
Posteriormente, o labrador participou de pelo menos três missões históricas. Em 2019, viajou para Brumadinho (MG) logo depois que a barragem da Vale se rompeu. No verão de 2022, ajudou Petrópolis quando as chuvas devastaram a região serrana fluminense. Meses atrás, não se acovardou diante das terríveis inundações gaúchas e socorreu o Vale do Taquari. O primeiro-­sargento não sabe dizer quantos mortos Guapo achou durante a carreira. “Foram muitos… Difícil calcular.”
Hoje o cão está vendendo saúde e só vai abandonar a lida por causa da idade avançada (labradores costumam viver entre dez e catorze anos). Sheik, um dos filhos de Guapo, substituirá o pai na corporação de Santa Maria, que agora “emprega” cinco cães de busca. O recém-aposentado continuará morando com a família do primeiro-sargento e, quinzenalmente, visitará um hospital universitário – atividade que realiza desde dezembro de 2017. Ali se deixa acariciar por crianças que sofrem de câncer e adultos que amargam transtornos psiquiátricos. De resto, o veterano bombeiro tomará banhos de açude, comerá rações premium, cairá no sono em plena tarde e, claro, perseguirá bolinhas surradas de tênis.
(revista piauí)

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