Planetas Terra

Um inventário das sementes do Brasil

Em meio à exuberância da flora nacional, a semente de gergelim destoa pela excessiva simplicidade, como um folião sem fantasia num baile de Carnaval. Era mais ou menos assim que Matheus Pockstaller – dono da Trovão Tropical, uma incubadora de projetos agroecológicos – encarava o minúsculo grão. Nada na sementinha oleaginosa, que pode medir entre 2 e 4 mm de comprimento, lhe despertava a atenção: nem o aroma, nem o formato, nem a cor (às vezes, branca; outras vezes, negra ou amarelada). Em novembro de 2021, porém, a impressão do rapaz mudou totalmente. Ele deixou o Rio de Janeiro e viajou de picape até Ribeirão Preto, cidade rica do interior paulista. Foi conhecer o assentamento Mário Lago, antiga fazenda canavieira que, depois de causar sérios danos ambientais e se tornar improdutiva, acabou ocupada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e virou um polo agrícola sustentável.
Ali Pockstaller encontrou um lavrador cinquentão, de olhos azuis e pele alva, mas bastante queimada de Sol. Chamava-se Mariano Alves de Oliveira. Natural de Rubelita, em Minas Gerais, o assentado fez questão de mostrar para o forasteiro umas sementes de gergelim que armazenava com muito zelo. “Veja só que belezinhas! Elas me salvaram durante o período mais bravo da pandemia”, contou. Naquela fase tão difícil, a maioria das hortaliças que Oliveira produzia e negociava perdeu mercado. Em compensação (e por razões que o agricultor não sabia explicar), a demanda pelo gergelim aumentou. Cultivá-lo assegurou o sustento dele e de seus familiares. “O gergelim é meu amigo”, resumiu o mineiro, depois de detalhar o comportamento da herbácea. À medida que se expressava, sempre de modo cordial, Oliveira parecia acariciar os grãos.
O visitante se emocionou com o relato. “Nas metrópoles, não temos o hábito de reverenciar as plantas, ainda mais quando se trata de um espécime que julgamos sem graça. Aquele lavrador enxergava a beleza sutil do gergelim e não o considerava inanimado. Falava da personalidade dele como se estivesse descrevendo um bicho de estimação”, relembra Pockstaller, que completou 33 anos em agosto.
O episódio contribuiu para o carioca definir melhor os objetivos de uma empreitada que arquitetava havia um bom tempo. Surfista e lutador eventual de jiu-jítsu, o jovem graduou-se em relações internacionais e cursou um mestrado sobre resolução de conflitos, que não terminou por causa de “uma tremenda ansiedade”. Enquanto transitava pelo universo acadêmico, descobriu os ensinamentos do geneticista suíço Ernst Götsch, radicado desde 1982 num pequeno município baiano, Piraí do Norte, onde concebeu os princípios da agricultura sintrópica. O método possibilita o reflorestamento de regiões degradadas em paralelo ao plantio de legumes, frutas, verduras, ervas, cereais e leguminosas sem o emprego de fertilizantes sintéticos ou defensivos agrícolas industrializados. O lei­go que observar um ecossistema do gênero se imaginará diante de um bosque virgem. Não perceberá que o matagal é também uma lavoura.
Oito anos atrás, com o intuito de aplicar as lições do geneticista, Pocks­taller adquiriu um terreno de 2 mil m2 em São Conrado, bairro do Rio à beira-mar. A propriedade se localiza num vale agradável, próximo das turísticas pedras Bonita e da Gávea. A Mata Atlântica cobre parte considerável do espaço, que abriga uma casa térrea de traços modernistas e apenas um dormitório. O rapaz começou a transformação do vasto quintal logo que se instalou na residência. Com as próprias mãos, semeou várias espécies (comestíveis ou não) dentro da floresta nativa. Dessa maneira, criou uma área de agricultura sintrópica em plena capital fluminense. Uma das consequências mais intrigantes da técnica é a cooperação que se estabelece entre as plantas. Não à toa, a Mata Atlântica impulsionou o desenvolvimento dos vegetais cultivados pelo carioca, que revitalizaram a flora original, justamente como Götsch preconiza.
Em 2021, quando visitou o assentamento do MST, Pockstaller cogitava fotografar tanto as sementes que introduzira no terreno de São Conrado quanto outras vistosas e raras que andava juntando. Ele pretendia lançar um livro com os registros. Depois de ouvir o depoimento de Oliveira sobre o gergelim, concluiu que deveria valorizar menos a estética e mais a singularidade na hora de eleger os grãos que retrataria. Decidiu selecioná-los principalmente em virtude do que significam para quem os maneja e protege. Surgiu, assim, o Seeds Collective (Coletivo de sementes).
Da iniciativa, participam mais quatro jovens. A paulistana Carolina Latini, que estudou antropologia, é companheira de Pockstaller e sócia dele na Trovão Tropical. Gosta de surfar, trabalha como contrarregra no setor audiovisual e tocava baixo em bandas punks. O ítalo-brasileiro Riccardo Riccio, que cresceu entre Nápoles e o Rio, dedicou-se à gastronomia antes de abraçar a carreira de fotógrafo. Cozinhou em restaurantes no México, na Finlândia, na Inglaterra, na França e na Itália. A niteroiense Mirna Wabi-­Sabi fundou e comanda a editora Plataforma9, que publica majoritariamente obras de não ficção. Já Zurī Rosalino, uma mulher trans, é pesquisadora cultural. Única negra da turma, nasceu em Porto Velho (RO) e tem 26 anos. Os demais, à semelhança de Pockstaller, estão na faixa dos 30.
O Seeds Collective fotografou e catalogou 303 das inúmeras sementes que o carioca recolheu pelo país, inclusive a do gergelim. Por catalogar, entenda-se identificar os nomes vulgares e científicos das espécies, além de redigir textos curtos sobre cada uma delas. As notas não se limitam às informações de cunho botânico, histórico ou sociológico. Também abarcam conhecimentos medicinais e religiosos que advêm da tradição oral.
No começo de julho, o grupo lançou Seeds and tales, livro em inglês e português que agrega imagens de 101 daquelas sementes e seus respectivos verbetes. O volume, com 214 páginas, custa 160 reais e será o primeiro de uma trilogia. A Plataforma9 – que o editou e comercializa – aceita pedidos do Brasil inteiro, dos Estados Unidos, da Austrália e da Europa. Um site bilíngue (seedsandtales.com) divulga o projeto. O coletivo planeja, ainda, converter as fotos em quadros de altíssima resolução para expô-los e vendê-los como arte. As cópias menores sairão por 5 mil reais. As maiores, por 20 mil.

Quando iniciou o garimpo de grãos, Pockstaller já sabia bem o que procurava. Queria apenas as sementes crioulas. Ou melhor: as que não sofreram alterações genéticas em laboratórios nem tratamentos químicos. O plantio delas acontece de um jeito muito natural e cabe sobretudo às famílias de pequenos agricultores, geralmente oriundas de populações tradicionais, como as indígenas, quilombolas, caiçaras e ribeirinhas. Assentados do MST também as cultivam.
Para angariar as sementes crioulas, o carioca atravessou os seis biomas do país: Amazônia, Cerrado, Pantanal, Caatinga, Mata Atlântica e Pampa. Buscou exemplares típicos daqueles hábitats ou provenientes de outros lugares, mas que se adaptaram perfeitamente longe de casa. Ora o rapaz trocava os grãos que lhe interessavam pelos que sempre carregava na bagagem, ora os comprava ou recebia em doação. Quase todas as viagens ocorreram por terra. A picape bege que conduzia Pockstaller – uma Toyota Hilux – rodou uns 100 mil km. Ele só pegou avião uma vez. Em certas ocasiões, se deslocou de barco. Carolina Latini costumava acompanhá-lo.
O casal, que se uniu em 2019, não desperdiçava nenhuma chance de obter novas amostras. “Um dia, por exemplo, a gente parou num posto de gasolina para fazer xixi, e um cara bem simples se aproximou da nossa caminhonete. Papo vai, papo vem, soubemos que o sujeito plantava mandioca. Pronto: descolamos umas mudas do tubérculo com o homem”, recorda a paulistana.
Ela e o parceiro veem “as crioulas” como um tesouro biológico e cultural do Brasil. Um patrimônio extremamente plural que corre o risco de se extinguir devido à voracidade do agronegócio, da crise climática e das queimadas. “Claro que é fundamental documentar e exibir tamanha riqueza. No entanto, nos parece ainda mais essencial impedi-la de morrer”, ressalta Pockstaller. Por isso, o Seeds Collective se preocupou em propagar as sementes das 303 espécies fotografadas. “Plantei no meu terreno as que se relacionam melhor com a Mata Atlântica e mandei as outras para lavradores de todo o país sob a recomendação de que as cultivem”, afirma o jovem.
Recentemente, um dos agricultores avisou que colheu 4 kg de um milho azulado, o checche, cujas sementes ganhou do coletivo. “Ele está manejando o cereal há uns dois anos na serra fluminense. Não é maravilhoso?”, festeja Latini, que hoje divide a casa de São Conrado com Pockstaller. No quintalzão, junto às plantações, a dupla cria três cachorros grandes e cinco variedades de abelhas sem ferrão: a jataí, a bugia, a mombucão, a guaraipo e a mandaçaia. Os insetos, normalmente dóceis, fabricam mel de diversas cores – amarelo, branco, verde e âmbar. Vira e mexe, ratos-do-mato, porcos-­espinhos, tucanos, macacos, lagartos, cobras, pacas e outros animais silvestres dão as caras por lá, atraídos pela vivacidade da flora.
Uma parcela dos alimentos produzidos em São Conrado se destina às refeições do próprio casal. O que sobra é distribuído entre amigos, parentes e vizinhos. Para cuidar das lavouras, Pockstaller e Latini recorrem à ajuda de um caseiro pernambucano e do Horta na Favela, projeto de educação ambiental que reúne moradores da Rocinha e que também recebe parte da produção. A imensa comunidade, com 72 mil habitantes, fica perto do terreno.

A palavra milpa, do idioma asteca, designa um sistema agrícola milenar que indígenas do Sul mexicano e da América Central adotavam. O método consiste em cultivar o milho, o feijão e a abóbora no mesmo espaço, o que enriquece o solo e maximiza o crescimento das plantas. Daí os povos ancestrais denominarem o trio de “três irmãs”.
Herbívoros gigantescos, já extintos, circulavam pelo Cerrado durante a Era do Gelo ou Pleistoceno, que findou há 11 mil anos. Os mamíferos adoravam saborear o baru, o abacate e o jatobá, frutos com sementes muito rígidas. Como não conseguiam triturá-las, os bichões as defecavam inteiras e, assim, as espalhavam.
Curiosidades do tipo aparecem nos verbetes de Seeds and tales. Pockstaller escreveu a primeira versão dos textos. Mirna Wabi-Sabi complementou a pesquisa e se encarregou da redação final. Com uma câmera digital Canon, uma lente ultramacro de 70 mm e um flash, Riccardo Riccio tirou os retratos ampliados das 303 espécies. A casa de São Conrado serviu de estúdio. “Posicionei cada semente num fundo preto e a fotografei em cem distâncias diferentes”, explica o ítalo-brasileiro. “Depois, usei um software para sobrepor todas as imagens.” Batizada de focus stacking, a técnica permite registrar as mínimas nuances de um objeto e resulta em fotos bastante nítidas.
Desde o nascimento, Riccio enfrenta um transtorno ocular degenerativo e progressivo, a doença de Stargardt, que lhe roubou 90% da visão. “Enxergo tudo embaçado. O pior é que nenhum óculos, lente de contato ou cirurgia resolve o problema. Graças à ultramacro, os grãozinhos crioulos adquiriram uma clareza que meus olhos – e, talvez, os de qualquer humano – jamais captariam naturalmente.”
O fotógrafo e a Trovão Tropical financiam o Seeds Collective, que gastou cerca de 150 mil reais até agora. “Trata-se de um trabalho em permanente continuidade”, enfatiza Zurī Rosalino. “Se depender de nós, vamos catalogar e disseminar o maior número possível de sementes.” Uma fração dos lucros trazidos pelas vendas dos quadros irá para agricultores familiares, hortas urbanas, ações de reflorestamento e militantes que promovem a causa ecológica.
O modo de retratar os grãos acabou por deixá-los parecidos com planetas que flutuam na escuridão do Universo. “Faz um baita sentido, né?”, diz Pockstaller. “Sementes são mesmo planetinhas, umas cápsulas de energia e potencialidades que garantem a existência do nosso planetão.”
(revista piauí)

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