A “chave mágica” e a invasão de casas pela Polícia Militar nas favelas do Rio
A linha verde do metrô estava surpreendentemente calma naquele domingo ensolarado de abril. Os trens circulavam com muitos assentos vagos entre as zonas Norte e Sul do Rio de Janeiro. Elétricas, duas jovens conversavam perto de mim num vagão que o feroz ar-condicionado transformava em frigorífico. Elas regressavam de uma festa.
– Que programa maneiro, amiga! Música sinistra, bebida à vera. E tu, hein? Arrasou! Bonita, sarada, cheirosa! – elogiou a moça de tranças afro.
– Gostou do meu perfume? Francês, tá? – se gabou a outra, de calça florida, enquanto tirava da pochete um frasco da Dior.
– Ganhou do boy?
– Sim, acredita? Ele é um traste, mas às vezes acerta no presente.
– Pelo jeito, custou um dinheirão.
– Quatrocentos reais, no mínimo. Como não sou otária, evito sair de casa sem o vidrinho. Levo o perfume para o trabalho, o boteco, o mercado… Vou dar mole? Os polícias lá na favela não perdoam ninguém. Invadem o cantinho da gente e roubam tudo, né? Produto gringo, então… Os caras adoram!
– Volta e meia, nem quebram a porta. Usam a tal chavinha mágica, que abre qualquer fechadura.
– Pois é, a chave mestra…
As jovens não disseram o nome da favela. Continuaram papeando e desceram no Largo do Machado. A alusão às invasões arbitrárias de domicílios, porém, me inquietou. As amigas abordaram o assunto com uma naturalidade perturbadora. De tão corriqueiros, os abusos pareciam lhes exigir certa resignação.
Nunca vivi em lugares pobres do Rio. Mesmo assim, tenho conhecimento dos reiterados excessos que as forças de segurança pública cometem por ali. Como repórter, já colhi diversos relatos sobre arrombamentos injustificados de residências, notadamente pela Polícia Militar. As testemunhas contavam que os agentes do Estado destruíam as portas com pontapés, alavancas, marretas ou aríetes – cilindros grossos, longos e portáteis, quase sempre de aço. Escutar das duas moças que as autoridades também entram sorrateiramente nas moradias, sem arruinar maçanetas ou fechaduras, à semelhança de ladrões habilidosos, me espantou. Era um detalhe tão inusitado quanto cruel. Um pormenor que converte a violenta rotina das favelas num pesadelo ainda mais tenebroso.
Imagine se algo idêntico acontecesse em pleno “asfalto”, jargão que os cariocas empregam quando se referem às regiões abastadas da cidade. Suponha que, sob o arrepio da lei, policiais destrancassem com “chavinhas mágicas” um apartamento do Leblon ou um sobrado na Gávea. De que jeito os proprietários ou inquilinos reagiriam? E os vizinhos? E a mídia? E a Justiça?
Saltei do metrô ruminando o que ouvi das jovens. Enquanto caminhava por Botafogo, uma pontinha de dúvida me assaltou: será que as amigas não exageravam? Será que a polícia realmente costuma lançar mão de chaves mestras para violar domicílios? Nos meses seguintes, garimpei depoimentos que confirmaram a queixa das moças. De fato, há décadas, a expressão “chave mestra” frequenta as favelas do Rio. Moradores e comerciantes a mencionam sempre que denunciam situações equivalentes às descritas pelas garotas. Em termos técnicos, contudo, incorrem num erro.
Chave mestra é aquela capaz de abrir qualquer porta de uma única construção – um shopping, uma indústria, um casarão, um hotel. O instrumento dispõe de um design especial que o torna compatível com inúmeros tipos de fechaduras. Os interessados adquirem o utensílio em prol da segurança. Se o fogo ameaçar um hospital, por exemplo, a brigada de incêndio recorrerá à peça para acessar logo os recintos fechados. Em geral, a mesma empresa que produz as diferentes chaves de uma edificação também confecciona a mestra. Não existe, portanto, nada do gênero que consiga destrancar todos os imóveis de uma rua, vila, beco ou favela.
O que os invasores provavelmente utilizam são gazuas. Ou melhor: pequenas ferramentas metálicas, similares às que os chaveiros manuseiam quando precisam entrar num local sem a chave apropriada. Conhecidos igualmente pelo nome de “michas” e lock picks, os equipamentos estão à venda em kits com várias unidades de formatos distintos. Lojas online ou físicas podem oferecer conjuntos de sete peças por cerca de 40 reais. Já os de trinta peças giram em torno dos 150 reais. Uma infinidade de vídeos no YouTube ensina como usar os apetrechos. O domínio da técnica correta possibilita quebrar o segredo de uma fechadura em poucos segundos. Não bastasse, a internet também fornece dicas para quem deseja abrir portas com garfos, clipes, pinças, serrinhas e grampos de cabelo, objetos à disposição de qualquer um, inclusive de policiais.
Curiosamente, a legislação brasileira proíbe a fabricação, a comercialização ou a cessão de gazuas e demais instrumentos que facilitem a prática de furtos. O veto aparece no artigo 24 da Lei das Contravenções Penais, em vigor desde outubro de 1941. Os infratores correm o risco não apenas de pagar multa, mas de amargar entre seis meses e dois anos de cadeia. Hoje, no entanto, a interdição dificilmente se aplica. Muitos juristas a consideram excessiva e anacrônica.
O artigo 25 da mesma lei não permite que condenados por roubo ou furto, “vadios”, “mendigos” e cidadãos sob liberdade vigiada carreguem aqueles utensílios, exceto se provarem “destinação legítima”. Os transgressores poderiam cumprir até um ano de prisão, além de sofrer multas. Ocorre que, em 2013, o Supremo Tribunal Federal (STF) classificou o artigo de inconstitucional e o anulou. Para a Corte, punir alguém pelo simples motivo de portar uma ferramenta com potencial criminoso atenta contra a presunção de inocência, denota preconceito e fere o princípio da igualdade entre todos.
A Constituição de 1988, aliás, afirma que “a casa é asilo inviolável do indivíduo” e que não se deve adentrá-la sem consentimento do ocupante, salvo em quatro circunstâncias: para socorrer uma pessoa; quando houver um desastre; caso um flagrante delito esteja acontecendo no domicílio; por ordem judicial, desde que durante o dia.
A lei nº 13301, promulgada há quase nove anos pelo então presidente Michel Temer, prevê uma quinta circunstância: agentes de saúde, acompanhados ou não de policiais, têm o direito de ingressar à força numa residência se necessitarem combater a dengue, a chikungunya, a zika e outras doenças que ameacem a sociedade. A atitude radical, entretanto, só vale em imóveis cujos responsáveis dificultarem a vistoria sanitária.
Ainda de acordo com a legislação nacional, o conceito de casa é bastante amplo. O Código Penal a define como “qualquer compartimento habitado” ou como um espaço privado onde alguém exerce atividade profissional. Assim, o consultório de um dentista, a boleia de um caminhão e o escritório de um arquiteto configuram domicílios. “As leis do país não deixam a menor dúvida sobre o que é uma residência e em quais contextos o Estado pode invadi-la. Por isso, quando penetra ilicitamente num casebre de favela, a polícia sabe muito bem que avançou o sinal”, diz o advogado popular Guilherme Pimentel, ex-ouvidor-geral da Defensoria Pública do Rio.
Em 2023, 13% do território carioca estava sob o jugo de milicianos ou do narcotráfico, dominado pelas facções rivais Comando Vermelho, Amigos dos Amigos e Terceiro Comando Puro. O poder paralelo controlava 155 km² da cidade – área superior às de Mesquita, Belford Roxo e outros municípios próximos. Quase todas as 813 favelas da capital se encontravam nos bolsões em que o crime imperava. As conclusões são do Instituto Fogo Cruzado e do Geni, o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, que pertence à Universidade Federal Fluminense. Os dados de 2024 ainda não saíram, mas tudo indica que o quadro mudou pouco.
Com o pretexto de frear o banditismo, operações planejadas ou emergenciais das forças de segurança se tornaram rotineiras. O Geni calcula que, entre janeiro de 2007 e setembro de 2024, houve uma média de 105 delas por mês na Região Metropolitana do Rio. Os agentes estatais se lançaram principalmente sobre comunidades de baixa renda para apreender drogas e armas, resgatar mercadorias roubadas, executar mandados de prisão, desfazer barricadas e retaliar ataques de criminosos. As investidas, não raro, desencadearam tiroteios, que provocaram lesões e mortes. Conforme o Geni, de 2007 até setembro de 2024, as operações no Rio e nas redondezas da cidade feriram 27 pessoas e mataram 33, em média, por mês.
Os abusos de autoridade costumam eclodir justamente ao longo dessas incursões. Não à toa, o Ministério Público do Estado mantém um plantão que as fiscaliza. Entre maio de 2021 e novembro de 2024, o órgão contabilizou 58 denúncias de invasões domiciliares pelas polícias Militar ou Civil. Os episódios se deram tanto na capital quanto em São Gonçalo, na Baixada Fluminense e em Niterói. O Complexo da Maré – um aglomerado de quinze favelas cariocas – também monitora operações policiais, mas apenas as que o atingem. De 2016 até o início de dezembro passado, as forças de segurança violaram pelo menos 278 casas por lá. “O problema é que nenhuma estatística consegue espelhar a realidade. Existe uma imensa subnotificação”, ressalta Pimentel. “Normalmente, os afetados se calam diante dos horrores que vivenciam. Quem ousa acusar um agente enfrenta o perigo de revanches porque faltam mecanismos oficiais de proteção àqueles que abrem a boca.”
Em 2018, defensores públicos e representantes de 29 instituições – como a Assembleia Legislativa, o Coletivo Papo Reto, o Human Rights Watch, a Comissão Popular da Verdade e a Rede contra Violência – percorreram 23 localidades pobres na Região Metropolitana do Rio para coletar depoimentos sobre arbitrariedades recorrentes das forças de segurança. As centenas de testemunhas não precisaram se identificar. O resultado da pesquisa está no relatório Circuito de favelas por direitos. Em meio às muitas afrontas citadas, figura a violação de residências. Os entrevistados revelaram que os invasores saquearam os imóveis, danificaram eletrodomésticos ou mobílias, estragaram alimentos e praticaram agressões sexuais. “Quando desempenhei a função de ouvidor-geral na Defensoria, cansei de escutar histórias assim”, recorda Pimentel. “Uma vez, soube de PMs que jogaram sabão em pó numa panela cheia de arroz só para sacanear um morador.”
Enquanto recolhiam os depoimentos, os responsáveis pelo relatório se defrontaram com uma solicitação desconcertante. “Srs. policiais! Favor não arrombarem as portas das casas. Pegar as chaves no número 3 […]. Obrigado!”, rogava um precário cartaz afixado diante de uma residência em Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense.
Certas brutalidades acabam furando a habitual bolha de silêncio e chegam à imprensa. Em fevereiro de 2017, ativistas de organizações sociais constataram que agentes de uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) haviam ocupado cinco domicílios no Complexo do Alemão para observar a movimentação de criminosos. O conjunto de quinze favelas se espalha pela Serra da Misericórdia, um maciço rochoso da Zona Norte carioca. Numa das residências, os policiais ficaram por alguns meses e depredaram o cômodo onde se alojaram. O caso ganhou manchetes em portais como o g1 e o do jornal Extra. Pressionada, a Justiça Militar se mexeu e condenou o major Leonardo Gomes Zuma, que chefiava a UPP. Ele pegou um ano e onze meses de prisão em regime aberto.
No dia 7 de fevereiro de 2022, homens do Batalhão de Ações com Cães e do Batalhão de Choque roubaram uma casa da Vila Aliança, favela do Rio que integra o bairro de Bangu. Uma câmera de vigilância registrou o delito. Os moradores – que não presenciaram a ocorrência – tinham instalado o equipamento na sala depois de receber dez “visitas” policiais em quatro meses. Os militares, armados de fuzis, levaram uma caixa de som, 1 kg de carne congelada, um vidro de perfume e oito águas de coco. Telejornais da Rede Globo exibiram cenas da pilhagem. Na ocasião, o tenente-coronel Ivan Blaz, porta-voz da PM, informou à emissora que os envolvidos seriam afastados das ruas e poderiam sofrer penalidades disciplinares.
“Infelizmente, noto uma enorme complacência das polícias em relação às violações de imóveis dentro das favelas”, lamenta o sociólogo Daniel Hirata, coordenador do Geni. “Os abusos se acumulam porque, no fundo, as forças de segurança enxergam as invasões como parte de um modus operandi legítimo. Trata-se de uma tática extraoficial, de uma estratégia muito arraigada, que resulta em punições apenas excepcionalmente. Não acredito que exista o desejo genuíno de coibi-la. Se existisse, as irregularidades deixariam de acontecer com tanta frequência.”
Hirata lembra uma gíria comum na PM fluminense: “minerar”. “Significa o mesmo que saquear. Tem agente que acha justo invadir casas durante uma operação para furtar o que lhe der na telha. Os objetos roubados adquirem o status de butim. Viram espólios de guerra, uma compensação pelos riscos que os policiais correm.”
O sociólogo frisa que o próprio Judiciário respaldava as violações quando autorizava buscas e apreensões generalizadas nas áreas pobres do Rio. “Era algo trivial. Os juízes assinavam mandados que permitiam à polícia entrar em qualquer residência de uma comunidade sem o aval dos inquilinos ou donos e sem discriminar a razão. Ainda que não houvesse nenhuma suspeita nem acusação contra determinado morador, as forças de segurança podiam desrespeitar a privacidade dele.” O Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou as autorizações ilegais em novembro de 2019, e os magistrados pararam de concedê-las.
“Qualificar as invasões de domicílios como meros desvios de conduta policial me parece um equívoco. Por serem corriqueiras, as transgressões evidenciam uma política que criminaliza os habitantes de favela e os transforma em cidadãos de segunda classe”, avalia Guilherme Pimentel. “Para certos agentes da lei, os moradores de Ipanema merecem que se obedeça à Constituição, mas os da Rocinha… Conheço PMs que pensam bobagens do tipo: ou o favelado é traficante, ou apoia o tráfico, já que não delata ninguém.”
Desde 2021, por decisão do STF, policiais civis e militares do Rio precisam usar câmeras nas fardas em todas as missões que não impliquem atividades de inteligência. A medida, teoricamente, coibiria excessos. Tentei aprofundar o assunto com ambas as corporações, só que nenhuma respondeu às minhas perguntas. Quantas câmeras possuem? O número atende às demandas operacionais? Quantos agentes de fato utilizam os dispositivos?
Em julho de 2024, o telejornal RJ-1, da Globo, flagrou diversos soldados e oficiais da Polícia Militar sem os aparelhos na capital fluminense. Consultada pela reportagem da emissora, a corporação declarou que tinha equipamentos o bastante. Seriam quase 13 mil à disposição dos profissionais. Ainda segundo a instituição, o policial que abdicasse da câmera ou que a empregasse inadequadamente cometeria falta grave e enfrentaria sanções. Outra matéria da Globo, divulgada no programa Fantástico, em novembro de 2024, mostrou que PMs retiravam os dispositivos dos uniformes ou tapavam as lentes enquanto achacavam pequenos comerciantes de Nova Iguaçu. Depois de uma denúncia anônima, a Corregedoria investigou o caso e prendeu 22 agentes por corrupção passiva.
“Pelas notícias que recebemos, a Polícia Civil está ainda mais longe de cumprir a resolução do Supremo, uma vez que nem sequer implantou os aparelhos”, diz André Castro, coordenador do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh) na Defensoria Pública do Rio. A legislação estadual determina que as corporações guardem as imagens dos equipamentos por sessenta dias. Em algumas circunstâncias, o prazo pode aumentar.
As polícias devem entregar os registros sempre que a Defensoria, o Ministério Público ou a Ordem dos Advogados do Brasil reivindicar. Entre janeiro e julho do ano passado, o Nudedh expediu 224 ofícios à Ouvidoria da PM em que requisitava gravações para averiguar possíveis maus-tratos contra detidos. A corporação não liberou as cenas de 64 pedidos. Sustentou as negativas com diferentes argumentos: os policiais não pegaram as câmeras quando iniciaram o turno ou não as manipularam de maneira correta; a bateria dos aparelhos descarregou; o sistema do consórcio que gere os dispositivos falhou.
Também questionei as duas corporações sobre as invasões de casas em favelas. A Polícia Militar não se pronunciou. Já a Civil explicou, numa nota sucinta, que realiza “planejamentos prévios e detalhados” antes de todas as operações. As ofensivas seriam fundamentais porque as facções e milícias se valem das comunidades para esconder lideranças e praticar delitos, cujos frutos patrocinam a expansão da delinquência. “Os moradores se tornaram reféns das organizações criminosas, e a polícia é a única instituição de Estado que procura libertá-los”, salientou a nota. A corporação afirmou, ainda, que os infratores “utilizam uma rede de contrainformação, principalmente digital, para descredibilizar o trabalho das forças de segurança”.
Em 1974, Chico Buarque lançou o samba Acorda amor, que começa e termina com ruídos de sirene. A letra, tragicômica, narra a violação de uma residência por policiais: Tem gente já no vão da escada/Fazendo confusão, que aflição. Os invasores são lacaios da ditadura que, sob a desculpa de salvaguardar a ordem, não hesitam em barbarizar. Daí o protagonista da canção implorar à parceira, quando percebe que a “muito escura viatura” irá levá-lo: Chame, chame, chame/Chame o ladrão, chame o ladrão. Se o mocinho não protege mais, o bandido protegerá?
Meio século depois, o samba se mantém relevante, embora o cenário político seja outro. Nas favelas do Rio, o regime de exceção continua dando as cartas.
Leia, a seguir, cinco testemunhos à piauí de pessoas sem envolvimento com o crime que tiveram os domicílios invadidos pela Polícia Militar graças à “chave mágica”. Para evitar retaliações, os entrevistados substituíram os próprios nomes e os dos demais personagens por pseudônimos.
As joias da Pombajira
“Faz um tempão, mas ainda me lembro de cada detalhe. Eu beirava os 13 anos e morava com minha família na Favela da Quitanda. Conhece? Fica no Complexo da Pedreira, em Costa Barros, perto da Pavuna. Mais Zona Norte, impossível. Logo pela manhã, a Polícia Militar iniciou uma expedição gigantesca nos arredores da nossa casa, com helicóptero, cachorros e o escambau. Parece que os policiais queriam libertar um sequestrado. Era a década de 1990. Naquela época, a cidade do Rio enfrentava uma onda de sequestros. Toda hora a bandidagem capturava alguém importante. Por causa da operação, as escolas do Complexo suspenderam as aulas. Meu pai, que trabalhava numa transportadora, estava de férias e resolveu preparar o almoço. ‘Lélia, vou dar um pulinho no sacolão para comprar um maço de coentro’, me avisou. Ele adora comida nordestina porque nasceu em Pernambuco. Baião de dois, moqueca, vatapá… Tudo prato que leva coentro, né?
Enquanto meu pai escolhia o tempero, PMs e traficantes começaram um tremendo quebra-pau. Negócio feio, feio, feio. Só tiro, porrada e bomba. Se não me engano, o Terceiro Comando [facção já extinta, que antecedeu o Terceiro Comando Puro] dominava a Favela da Quitanda. Com medo de tomar uma bala, meu pai decidiu permanecer no sacolão. Passou cinco ou seis horas lá, sem enviar notícias, pois quase ninguém tinha celular. Minha mãe, angustiada, pegou os quatro filhos, saiu de casa, trancou a porta e pediu refúgio à dona Elaine. A gente vivia numa espécie de vila, um canto da favela com oito domicílios. Sempre que rolava uma guerra, os vizinhos se juntavam. Abandonavam as próprias casas e corriam para a da dona Elaine, no fundo da vila e um pouco mais espaçosa. Sabe aquele papo de que a união faz a força? O pessoal sentia a barra menos pesada quando se aglomerava.
Sete mulheres adultas, incluindo a minha mãe, buscaram abrigo na sala da dona Elaine com uma porção de crianças e adolescentes. Ficamos agachados bem longe da janela para que os tiros não nos atingissem. A porta da rua estava trancada. Mesmo assim, um grupo de policiais – todos homens – conseguiu abri-la e entrou na casa sem a menor cerimônia. Os caras, de toucas ninjas e uniformes camuflados, não destruíram o batente, a maçaneta ou o trinco. Certeza de que usaram a tal da chave mestra. ‘Cadê os traficantes? Vocês esconderam os putos aqui?’, perguntaram, cheios de valentia, antes de revistarem cada um de nós. Eles não pouparam nem a molecada. Para a polícia, crianças e adolescentes de favela nunca são inofensivos.
Quando um dos militares fez menção de espiar os quartos, minha mãe encrespou: ‘Vou com você!’ Ela morreu muitos anos depois, em 2011, de um AVC. Era do candomblé, rezadeira das boas, e costumava promover ações sociais na comunidade. A vizinhança inteira a respeitava. O PM preferiu não discutir e autorizou que aquela senhora atrevida o acompanhasse. Minha mãe nos explicou mais tarde: ‘Não se larga policial sozinho em cômodo nenhum. Basta um vacilo, e os canalhas plantam droga na casa de inocente.’
À medida que os PMs zanzavam de lá para cá, meu coração acelerava. Eu observava os sujeitos com armas imensas e pensava: ‘Se um deles perder o controle… Vai ser uma chacina!’ Às tantas, o grupo finalmente se retirou. A dona Elaine voou para a porta e a trancou de novo. Você acredita que, até as três da tarde, a polícia violou a casa mais quatro vezes? Sempre com a porcaria da chave mestra. Pelotões diferentes brotavam na sala, tocavam o terror e pulavam fora. Assim que um grupo se mandava, a dona Elaine repetia o ritual: voava para a porta e a trancava. Adiantava? Não… Recordo que, numa das invasões, um policial zombou da gente: ‘Por que vocês estão juntinhos? É excursão, é? Os bonitos vão visitar Aparecida do Norte?’
Pouco depois da operação terminar, voltamos à nossa casa e encontramos tudo aberto. Uns PMs haviam destrancado a porta, novamente com a chave mestra. Foi, pelo menos, o que os moradores de uma rua próxima nos contaram. Eles testemunharam a merda toda à distância. Logo que entrou, minha mãe disparou para o quarto de casal. O guarda-roupa mal se aguentava em pé. Os policiais tinham detonado o móvel à procura de coisas valiosas. Quebraram as fechaduras, tiraram as gavetas, arrancaram as prateleiras e acabaram descobrindo o dinheirinho que meu pai economizava para reformar o banheiro. Adivinha se os caras meteram a mão na grana…
Não contentes, ainda furtaram os anéis, as pulseiras e os colares da Pombajira. O babalorixá do terreiro onde minha mãe se iniciou é militar. Por isso, uma galera do Exército frequentava as festas dele. Capitão, major, coronel… Um povo das altas esferas. De vez em quando, os milicos pediam conselhos à Pombajira que minha mãe incorporava. Como recebiam bons salários, gostavam de mimar a entidade com joias. Minha mãe, hipercautelosa, evitava deixar os presentes no altarzinho que mantinha em casa. Botava os badulaques dentro do guarda-roupa justamente para prevenir roubos. Naquele dia, a polícia fez a limpa. Não sobrou nada de nada.
Indignado, meu pai cogitou denunciar a ladroagem, mas mudou de ideia rapidinho. Se abrisse o bico, iria cair numa armadilha. Hoje você denuncia e, amanhã, o que acontece? Um PM o aborda numa esquina, diz que você o desacatou e…”
A yorkshire terrier
“Quando acordei, o policial militar já infernizava a minha mãe. Lógico que não arrisquei perguntar como o verme se enfiou na nossa casa. Espiei o relógio: nove da manhã. Lá fora, o bicho pegava. Era tiro para todo lado.
Nasci e sempre morei na Zona Norte do Rio – mais exatamente, no Complexo da Maré. Estávamos em 2014. Minha mãe, catadora de recicláveis, manuseava umas garrafas plásticas na sala enquanto os três filhos ainda se espreguiçavam. Meu padrasto tinha saído às seis e meia. Ele ganhava a vida como ajudante de caminhão.
Desde que me conheço por gente, o Comando Vermelho controla a parte da Maré onde vivo. Naquela manhã, rolava uma megaoperação da PM, com a justificativa de praxe: caçar traficante. ‘Curioso… Uma das tuas crias é mais branca que as outras. Por quê? Tu arranjou filhos de homens diferentes?’, indagou o policial à minha mãe. O sujeito observava um retrato da nossa família que ficava sobre um armário. Sou negro e, de fato, tenho a pele mais clara que a de meus irmãos. Do quarto, escutei a pergunta inconveniente. Pulei da cama e me aproximei da sala. Minha mãe espumava de raiva: ‘Por acaso, vou à tua casa para xeretar? Já quis saber com quem teus pais dormem ou deixam de dormir? Tu me respeite…’ Constrangido, o PM tossiu seco, colocou o rabo entre as pernas e ralou.
Nós morávamos num sobrado. Meus tios ocupavam o andar de cima, mas estavam viajando. Outro policial tentava abrir o portão que dava acesso à escada. Minha mãe percebeu: ‘Tu pretende subir? Não tem necessidade de forçar a fechadura. Eu mesma abro o portão e te levo.’ Assim que chegou à casa dos meus tios, o PM avistou diversas peças de moto no piso da cozinha. ‘Aqui funciona um desmonte?’, ironizou. Minha mãe revidou na lata: ‘O meu cunhado não é ladrão! É mecânico de uma concessionária em Madureira.’ O policial continuou zoando: ‘Mecânico? Trabalhinho sujo, né? A senhora garante que não vou achar nenhum fuzil escondido pelos cantos?’ Mais uma vez, minha mãe peitou o demônio: ‘Fuzil só tem lá embaixo. O meu fuzil… Quer ver?’ Os dois desceram a escada e regressaram à nossa casa. Minha mãe entrou sozinha num dos quartos. Quando saiu, esticou os braços e disse: ‘Olha o meu fuzil.’ Ela segurava a Bíblia.
Somos testemunhas de Jeová e acreditamos que Jesus pode vencer todos os males. Diante daquela situação, o PM resolveu parar de gracinha. Virou as costas e zarpou em silêncio. Quatro anos depois, também durante uma operação, um agente do Bope – a tropa que a Polícia Militar considera de elite – bateu na minha porta. Eu já estava casado e morava em outro imóvel, um cubículo de 30 m². O policial comunicou que precisava examinar a residência, mas não detalhou o motivo nem apresentou mandado judicial. Tão logo enveredou pela sala, topou com uma estante repleta de livros sobre direito. Leu os títulos de alguns deles e começou um interrogatório:
– Qual teu nome?
– Daniel.
– Vive com quem?
– Com minha mulher.
– Ela trabalha?
– Sim. É empregada doméstica.
– E tu?
– No momento, apenas estudo.
– Para ser advogado, pelo jeito.
– Exato. Curso direito na PUC.
– PUC?! Universidade boa… Vai se especializar em que área?
– Ainda não decidi.
– Pensa em defender bandido?
– Ainda não decidi mesmo.
– Vou te dar um conselho: quando se formar, mete o pé daqui. A Maré não é lugar para gente como tu.
Na época, minha cadela de estimação, a Caramelo, tinha menos de 1 ano. Eu a carregava enquanto o PM me questionava. Ele gostou da bichinha.
– Cachorra fofa. É de raça?
– Sim, yorkshire terrier. Ganhei de um conhecido.
– Vai castrar?
– Talvez.
– Vou te dar outro conselho: melhor não castrar. Uma cachorra dessas custa muito caro. Os filhotes dela podem render uma fortuna.
Eu respondia às perguntas sem compreender o que o agente queria. Ele procurava algo? Cogitava me extorquir e desistiu quando sacou que lidava com um aluno de direito? Não sei… Depois de circular pela sala, o policial me desejou bom-dia e foi embora.
Passaram-se uns meses e houve mais uma incursão do Bope na favela. Eu e minha mulher não presenciamos a operação porque estávamos trabalhando. À noite, mal retornamos, a vizinha nos viu abrindo a porta e alertou:
– A polícia invadiu a casa de vocês. Chave mestra, para variar…
– Quantos caras? – perguntei.
– Uns quinze.
– Quinze homens em 30 m²?! Nunca imaginei que coubesse tanto marmanjo no nosso palácio.
Os PMs não roubaram nem quebraram nada. Apenas puseram água e ração para a Caramelo. Vai entender… Se espremer a memória, me lembrarei de outros episódios semelhantes. Enfrento as arbitrariedades do Estado desde menino. Por isso, virei advogado e, com a graça de Deus, espero ingressar na Defensoria Pública. Vou estudar cada vez mais as leis e as jurisprudências para me proteger dos abusos e acudir os pobres que as autoridades humilham. Como não sou nenhum ingênuo, estou consciente de que meus esforços têm limites. Na real, só vejo um caminho para alterar as coisas profundamente: resetar a humanidade.”
Troia
“Perdi o meu marido em dezembro de 2020, durante a pandemia. Ele pegou o coronavírus e não resistiu. Três meses depois do funeral, resolvi mudar de ares. Viajei com uma colega para João Pessoa na esperança de atenuar o luto. Permaneci uns dez dias por lá. No sábado em que voltei, o Complexo da Pedreira, onde sempre vivi, esbanjava sossego. O comércio fluía, a criançada batia bola e a galera do Terceiro Comando Puro jogava conversa fora enquanto vigiava as bocas de fumo. Quando cheguei à minha casa, não consegui entrar. O portão de ferro, daqueles altos e maciços, sem grades, parecia travado. Girei a chave um milhão de vezes e nada. A fechadura destrancava, mas o portão não se movia. Intrigada, liguei para o meu irmão, que morava perto de mim: ‘Luís, preciso de um help.’
Mal iniciei a descrição do problema, uma voz masculina ressoou atrás do portão: ‘Desliga o celular!’ Levei um baita susto. Eu não podia ver quem gritava do outro lado. ‘Qual o teu nome? O que tu faz na minha casa?’, indaguei. O cara subiu ainda mais o tom: ‘Não interessa! Desliga o telefone!’ Avisei que não desligaria. O sujeito abriu uma fresta do portão. Era um policial militar. ‘Te conheço? Por que tu se meteu aí dentro?’, insisti. Confirmei, então, que a fechadura não tinha mesmo nenhum defeito. O PM havia usado a chave mestra para invadir a residência. Em seguida, bloqueou o portão com um fuzil.
Meu irmão – que escutava cada palavra pelo celular – apareceu, ofegante: ‘O que está pegando, Maíra?’ Respondi: ‘Também gostaria de saber…’ O policial, agora menos agressivo, finalmente abriu todo o portão e autorizou que entrássemos. Outros dois militares papeavam na sala. ‘Puta que pariu! Ninguém merece…’, reclamei, quase às lágrimas. Os PMs explicaram que fugiam de um criminoso fortemente armado: ‘Ou a gente se escondia no terreno da senhora, ou o malandro cancelaria o nosso CPF.’
Tudo caô. A colcha da minha cama se esparramava pelo chão. Na geladeira, que esvaziei antes de viajar, me deparei com uma garrafa de suco. A manta de fuxico não cobria mais o sofá. O banheiro fedia de tanta sujeira, e o ar-condicionado já não se encontrava no buraco da parede. Só um idiota iria engolir que os policiais ocuparam a casa por necessidade. Quem está fugindo de bandido não se deita na cama e no sofá dos outros, não suja banheiro, não põe suco para gelar nem tira ar-condicionado do lugar. Claro que os homens tinham se instalado ali.
Uma de minhas principais amigas é sargento da pm. Ela me passou a fita logo que lhe expus a situação: ‘Emboscada, menina! Os caras iriam observar a rua pelo buraco do ar-condicionado. À noite, matariam alguém do tráfico, roubariam a arma dele e a venderiam no mercado paralelo.’ A moça contou que tocaias do gênero recebem o codinome de ‘troia’ na polícia. Deve ser por causa daquela história antiga, né? A do cavalo de Troia.
Depois que os militares pediram desculpas e se picaram, meu irmão procurou o gerente do morro para colocar os pingos nos is. Esclareceu que os policiais surgiram de surpresa e que nenhum de nós os acobertou. Já pensou se os traficantes cismassem que a gente estava de trairagem? Virgem Maria! O crime não perdoa X9 na favela…
Fiquei casada por oito anos. Quando a Covid levou o meu marido, decidi morar sozinha pela primeira vez e deu no que deu. Não bastasse a viuvez, ainda tive de lidar com o pânico de que os PMs retornassem. Eu atravessava as madrugadas de olhos abertos. Qualquer barulhinho me alarmava. Sou assistente social e, na época, fazia mestrado. Em razão da insônia, não conseguia estudar ou trabalhar direito. O cansaço me consumia. Demorei um século para recuperar o equilíbrio.
Hoje, prefiro ver cem bandidos na minha frente do que um pm. Sério mesmo. Em geral, os criminosos da Pedreira evitam importunar a vizinhança. Minha amiga sargento costuma dizer que desconfia de todo policial. Ela pertence à corporação há uma década e não bota fé nos malucos. Eu vou botar?”
De cueca
“Já gostei muito de malhar. Em 2015, frequentava religiosamente uma academia próxima à minha rua, no Complexo do Chapadão. A quebrada se alastra por cinco bairros da Zona Norte carioca. Mais de quarenta comunidades fazem parte dela: Pedra Rasa, Chico Mendes, Força do Povo… Um mundo! Há quem se refira às comunidades como favelas. Eu não. A palavra favela me soa pejorativa. Naquela manhã, terminei de treinar às 11 horas. Quando caminhava de volta para casa, avistei uma picape do Bope. O carro, repleto de policiais, se deslocava bem devagar. Notei que os militares me radiografavam com malícia. Um dos sujeitos, inclusive, arriscou um tchauzinho. Em compensação, os soldados do Comando Vermelho que controlavam a área estavam na miúda. Não tinham o menor interesse de arrumar confusão.
Assim que entrei em casa, tranquei a porta, tirei a roupa de ginástica e liguei o chuveiro. Larguei minha filha de 17 anos e minha neta na sala. Sou técnica de enfermagem e logo iria para o trabalho. Meu marido, segurança de uma loja, havia levantado cedo e saído antes das oito. De repente, minha filha gritou: ‘Mãe, polícia!’ Estranhei: ‘Polícia?!’
Interrompi o banho, regressei à sala e me deparei com um dos agentes que circulavam pelo Chapadão na picape do Bope. Era um tipo forte, alto e de feições orientais – coreanas, talvez. Ele não bateu na porta nem a arrombou. Usou a chave mestra ou sei lá o quê.
– Como você se chama? – me perguntou.
– Vitória.
– Imaginei que estivesse sozinha.
– Imaginou errado. O senhor quer revistar a casa?
– Não… Eu queria outra coisa…
Olha só o atrevimento! Fechei a cara e não disse mais nada. Minha filha também demonstrou indignação. Depois de sorrir com um jeito maroto, o policial sussurrou uma bobagem qualquer e saltou fora. Aquilo me abalou à beça. Mil hipóteses inundaram meus pensamentos. Eu poderia, sim, estar sozinha. Pior: minha filha poderia estar sozinha. Nessas circunstâncias, será que o PM ainda iria se frear? Como ter certeza de que o infeliz não retornaria? Para me tranquilizar um pouco, comprei um casal de pit bulls.
Em 2020, enfrentei uma provação bem maior. Foi na fase inicial da pandemia. O coronavírus me derrubou, e precisei ficar uma semana de molho. Santo Deus, que perrengue! Eu sentia um desânimo absurdo e mal conseguia abandonar a cama. Às dez da manhã, tocaram a campainha. Só o meu marido e os meus filhos menores – um adolescente, o Guilherme, e uma criança, o Wellington – me acompanhavam em casa. O resto da família não se encontrava.
O Wellington, coitado, também andava doente. Ele sofria de leucemia e acabou morrendo em junho de 2022. ‘Pai! Mãe! Parece que uns policiais estão a fim de entrar’, nos avisou o menino, que via desenho animado na sala. Realmente, um bando de PMs cercava nossa residência. ‘Abra a porta, Wellington. Não devemos nada à polícia’, autorizei do quarto, um tanto grogue. Três homens de uniformes camuflados desembestaram pela casa com um pastor alemão. Minha gata, apavorada, buscou proteção atrás da tevê. Os caras apontaram os fuzis para o Wellington sem nenhuma necessidade. Que perigo um garoto debilitado ofereceria? No quintal, os pit bulls se agitavam como bichos enjaulados. Sorte que os policiais não ousaram acalmá-los. Certamente, os cães destroçariam o pastor alemão.
O Guilherme cochilava em outro quarto, apenas de cueca. Um PM atarracado se dirigiu para lá enquanto os demais ainda intimidavam o Wellington. Com ajuda do meu marido, saltei da cama e baixei na sala. ‘Deixem os meninos em paz!’, implorei. Minha súplica não surtiu o mínimo efeito. O policial atarracado invadiu o quarto do Guilherme, que sempre adorou dormir na escuridão. Quanto menos claridade, melhor. Cheio de marra, o sujeito despertou o rapaz, puxou do bolso o próprio celular e acessou um vídeo. ‘É tu aqui, não é? Na biqueira! Cadê a droga?’, esbravejou, à medida que dava umas cotoveladas nas costelas do meu filho. ‘Senhor, não fumo nem tabaco. Sou estudante. Curso o ensino médio. Está rolando algum engano’, defendeu-se o Guilherme em meio àquele breu.
Tentei entrar no quarto, mas os brutamontes não permitiram. ‘Quero ver as cenas. Como mãe do moleque, tenho o direito de conferir o vídeo’, argumentei. Os PMs continuaram me ignorando. ‘O que tu fazia na biqueira, mané?’, insistiu o policial atarracado. Ele acendeu a lanterna do celular e jogou a luz sobre os olhos do Guilherme. ‘Quero checar as imagens’, repeti. O sacana, porém, não as mostrou nem para mim, nem para ninguém. Por quê? Porque não existia gravação! O desnaturado espiava um vídeo qualquer no telefone.
Depois de pressionar bastante o rapaz, o PM abriu a janela do quarto, que dava para uma rua lateral. Colocou o Guilherme sentado no peitoril. Os agentes que rodeavam a casa se aproximaram e zombaram da desgraceira: ‘Que tesão! O maconheiro só de cuequinha!’ Meu filho chorava de horror e vergonha. Desde a infância, o Guilherme sonhava em ingressar na Polícia Militar. Agora, não pode nem ouvir falar da corporação. Ele nunca vai esquecer tamanha selvageria.
Quando se cansaram de humilhá-lo, os babacas vazaram com estardalhaço, como quem sai de uma festa. O Guilherme passou muito tempo sem conseguir relaxar. Tinha pesadelos recorrentes e acordava de madrugada, assustadíssimo. O Wellington também acusou o baque. Tornou-se mais dependente e nervoso. Temia ficar sozinho em casa. Para dificultar novas invasões, decidi reformar o imóvel. Botei grades nas janelas e aboli uma das duas portas de entrada. Gastei um dinheirão… Nem assim sosseguei. Morro de medo que outras barbaridades aconteçam.
Vou revelar um negócio super triste: não enxergo diferença entre policiais e bandidos dentro das comunidades. Nos bairros ricos, sim. Ali os representantes da lei tratam a população com respeito. Protegem, dialogam, pedem licença. Mas nas regiões pobres… Eles ameaçam, matam, roubam, destroem – igualzinho os criminosos. Já presenciei situações terríveis no Chapadão. Vi policiais furtando peças de carro, surrando traficante que se rendeu e até fuzilando uma menina. Ela estava numa padaria. O PM atirou de longe, abraçou o pracinha que o auxiliava e se vangloriou: ‘Não te disse que acertaria?’”
Saco na cabeça
“Faltavam dez minutos para as quatro da madrugada quando cinco policiais militares invadiram a nossa casa. Sou cria da Nova Holanda, uma das favelas que integram o Complexo da Maré. Minha neta e meu marido, Josias, dividiam comigo uma cama king-size. Não sei direito como os PMs entraram. Imagino que recorreram à chave mestra. A porta da frente, baratíssima, não oferecia muita resistência.
Era abril do ano passado. Perto das 6 horas, a polícia iria deflagrar uma grande operação na Maré. Os cinco pms, apressadinhos, resolveram começar a baderna mais cedo e escolheram justo a nossa residência. ‘Onde tu enfiou a pistola?’, gritaram para o Josias, ainda sonolento. Ele não entendeu nada. ‘Que pistola?’, perguntou. ‘Não banque o otário, negão! Entregue logo a pistola!’, exigiram os policiais.
Um dos homens arrancou o Josias da cama. ‘Tua ficha é suja?’, questionou. Meu marido, que vestia somente uma bermuda, contou a verdade: ‘Já puxei cadeia por roubo. Sete anos em regime fechado. Mas hoje estou na moral. Toco o barco como ajudante de pedreiro.’ Os PMs riram: ‘Ficha suja, né? Melhor ainda. Se a gente quiser, te arruma outro flagrante agorinha. Cocaína, maconha, loló… Será a nossa palavra contra a de um fodido. Que delegado vai acreditar em tu?’
Os cinco teimavam que o Josias escondia uma pistola, mas não esclareciam de onde tiraram a informação. Eu e minha neta continuávamos na cama. A garota arregalava os olhinhos e se esgoelava. Por ter o hábito de dormir nua, precisei me enrolar no lençol. ‘Deixem a Taís colocar uma roupa’, pediu meu marido. Os policiais não permitiram. Conduziram o Josias para a sala e me largaram no quarto com a criança, sob a mira de um fuzil.
Às quatro em ponto, o despertador tocou. ‘Está na minha hora. Levanto antes do Sol raiar porque trabalho longe’, expliquei. ‘Tu faz o quê?’, indagou o policial que permaneceu no quarto. ‘Sou faxineira, com carteira assinada’, respondi. E o cara: ‘Acho que tu vai se atrasar…’
Na sala, os outros PMs espancavam meu marido. ‘Ô, filho da puta, não vai mesmo revelar onde mocozou a pistola?’, berravam, enquanto o chutavam sem dó. Quando encontraram o carregador do meu celular, enforcaram o Josias de um jeito tão sinistro que o fio arrebentou. Em seguida, pisotearam a barriga e o peito dele. Também bateram na testa do pobrezinho com um daqueles martelos de borracha que assentam piso. Ficou um galo medonho.
Cada vez mais impacientes, os policiais cataram uma faca na cozinha e ameaçaram furar o Josias: ‘A pistola! Queremos o ferro, cacete!’ Meu marido gaguejou: ‘Por favor, chega de pancada! Me levem preso…’ Eu ouvia tudo do quarto, mas não podia me mexer. ‘Se tu arredar da cama, passo fogo’, prometia o PM com o fuzil. Enlouquecida, ainda procurei trocar uma ideia: ‘Moço, pelo amor de Deus, acalme os teus parceiros. Não precisa de violência… Minha neta vai morrer de tanto chorar.’
Às seis e vinte, o policial autorizou que nós duas saíssemos do quarto. Vi, então, que um saco de lixo cobria a cabeça do Josias. Os malditos o sufocavam, como no filme Tropa de elite. ‘Caso tu sinta que vai desmaiar, bata o pé’, ordenavam. Eu não parava de suplicar: ‘Tenham piedade! Meu marido não aguenta mais!’ Eles só interromperam a tortura às sete da manhã. ‘Vamos embora! O movimento na rua aumentou, e o puto é durão. Não vai confessar porra nenhuma’, disseram.
Logo que os PMs desapareceram, observei melhor a casa. Estava toda revirada. Os pestes tiraram as coisas do lugar, quebraram um pedaço do fogão, arruinaram a porta da geladeira e roubaram o telefone do Josias. Depois de registrar o estrago num vídeo, liguei para a minha chefe, relatei o episódio e lhe mandei as imagens. Ela me dispensou do expediente.
Com receio de que os policiais voltassem, abandonamos a casa e caminhamos até a Avenida Brasil, que atravessa a Maré. Um helicóptero da PM sobrevoava o Complexo. A gente se sentou na calçada e aguardou a operação terminar. Meu marido não quis buscar um hospital: ‘Vou falar o quê para os médicos? Que apanhei dos meganhas? Que tomei uma coça dos traficantes? Nas duas hipóteses, vai parecer que sou bandido.’
Sempre que me lembro daquela manhã, tremo de pavor, ódio e desgosto. A maldade da polícia nos afetou demais. Nem sei se um dia venceremos o trauma. Quando minha neta cruza com um PM, morde a boquinha, resmunga e agarra o meu pescoço. A menina tem apenas 1 ano e 4 meses…”
(revista piauí)