terça-feira, 1 de outubro de 2024

Planetas Terra

Um inventário das sementes do Brasil

Em meio à exuberância da flora nacional, a semente de gergelim destoa pela excessiva simplicidade, como um folião sem fantasia num baile de Carnaval. Era mais ou menos assim que Matheus Pockstaller – dono da Trovão Tropical, uma incubadora de projetos agroecológicos – encarava o minúsculo grão. Nada na sementinha oleaginosa, que pode medir entre 2 e 4 mm de comprimento, lhe despertava a atenção: nem o aroma, nem o formato, nem a cor (às vezes, branca; outras vezes, negra ou amarelada). Em novembro de 2021, porém, a impressão do rapaz mudou totalmente. Ele deixou o Rio de Janeiro e viajou de picape até Ribeirão Preto, cidade rica do interior paulista. Foi conhecer o assentamento Mário Lago, antiga fazenda canavieira que, depois de causar sérios danos ambientais e se tornar improdutiva, acabou ocupada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e virou um polo agrícola sustentável.
Ali Pockstaller encontrou um lavrador cinquentão, de olhos azuis e pele alva, mas bastante queimada de Sol. Chamava-se Mariano Alves de Oliveira. Natural de Rubelita, em Minas Gerais, o assentado fez questão de mostrar para o forasteiro umas sementes de gergelim que armazenava com muito zelo. “Veja só que belezinhas! Elas me salvaram durante o período mais bravo da pandemia”, contou. Naquela fase tão difícil, a maioria das hortaliças que Oliveira produzia e negociava perdeu mercado. Em compensação (e por razões que o agricultor não sabia explicar), a demanda pelo gergelim aumentou. Cultivá-lo assegurou o sustento dele e de seus familiares. “O gergelim é meu amigo”, resumiu o mineiro, depois de detalhar o comportamento da herbácea. À medida que se expressava, sempre de modo cordial, Oliveira parecia acariciar os grãos.
O visitante se emocionou com o relato. “Nas metrópoles, não temos o hábito de reverenciar as plantas, ainda mais quando se trata de um espécime que julgamos sem graça. Aquele lavrador enxergava a beleza sutil do gergelim e não o considerava inanimado. Falava da personalidade dele como se estivesse descrevendo um bicho de estimação”, relembra Pockstaller, que completou 33 anos em agosto.
O episódio contribuiu para o carioca definir melhor os objetivos de uma empreitada que arquitetava havia um bom tempo. Surfista e lutador eventual de jiu-jítsu, o jovem graduou-se em relações internacionais e cursou um mestrado sobre resolução de conflitos, que não terminou por causa de “uma tremenda ansiedade”. Enquanto transitava pelo universo acadêmico, descobriu os ensinamentos do geneticista suíço Ernst Götsch, radicado desde 1982 num pequeno município baiano, Piraí do Norte, onde concebeu os princípios da agricultura sintrópica. O método possibilita o reflorestamento de regiões degradadas em paralelo ao plantio de legumes, frutas, verduras, ervas, cereais e leguminosas sem o emprego de fertilizantes sintéticos ou defensivos agrícolas industrializados. O lei­go que observar um ecossistema do gênero se imaginará diante de um bosque virgem. Não perceberá que o matagal é também uma lavoura.
Oito anos atrás, com o intuito de aplicar as lições do geneticista, Pocks­taller adquiriu um terreno de 2 mil m2 em São Conrado, bairro do Rio à beira-mar. A propriedade se localiza num vale agradável, próximo das turísticas pedras Bonita e da Gávea. A Mata Atlântica cobre parte considerável do espaço, que abriga uma casa térrea de traços modernistas e apenas um dormitório. O rapaz começou a transformação do vasto quintal logo que se instalou na residência. Com as próprias mãos, semeou várias espécies (comestíveis ou não) dentro da floresta nativa. Dessa maneira, criou uma área de agricultura sintrópica em plena capital fluminense. Uma das consequências mais intrigantes da técnica é a cooperação que se estabelece entre as plantas. Não à toa, a Mata Atlântica impulsionou o desenvolvimento dos vegetais cultivados pelo carioca, que revitalizaram a flora original, justamente como Götsch preconiza.
Em 2021, quando visitou o assentamento do MST, Pockstaller cogitava fotografar tanto as sementes que introduzira no terreno de São Conrado quanto outras vistosas e raras que andava juntando. Ele pretendia lançar um livro com os registros. Depois de ouvir o depoimento de Oliveira sobre o gergelim, concluiu que deveria valorizar menos a estética e mais a singularidade na hora de eleger os grãos que retrataria. Decidiu selecioná-los principalmente em virtude do que significam para quem os maneja e protege. Surgiu, assim, o Seeds Collective (Coletivo de sementes).
Da iniciativa, participam mais quatro jovens. A paulistana Carolina Latini, que estudou antropologia, é companheira de Pockstaller e sócia dele na Trovão Tropical. Gosta de surfar, trabalha como contrarregra no setor audiovisual e tocava baixo em bandas punks. O ítalo-brasileiro Riccardo Riccio, que cresceu entre Nápoles e o Rio, dedicou-se à gastronomia antes de abraçar a carreira de fotógrafo. Cozinhou em restaurantes no México, na Finlândia, na Inglaterra, na França e na Itália. A niteroiense Mirna Wabi-­Sabi fundou e comanda a editora Plataforma9, que publica majoritariamente obras de não ficção. Já Zurī Rosalino, uma mulher trans, é pesquisadora cultural. Única negra da turma, nasceu em Porto Velho (RO) e tem 26 anos. Os demais, à semelhança de Pockstaller, estão na faixa dos 30.
O Seeds Collective fotografou e catalogou 303 das inúmeras sementes que o carioca recolheu pelo país, inclusive a do gergelim. Por catalogar, entenda-se identificar os nomes vulgares e científicos das espécies, além de redigir textos curtos sobre cada uma delas. As notas não se limitam às informações de cunho botânico, histórico ou sociológico. Também abarcam conhecimentos medicinais e religiosos que advêm da tradição oral.
No começo de julho, o grupo lançou Seeds and tales, livro em inglês e português que agrega imagens de 101 daquelas sementes e seus respectivos verbetes. O volume, com 214 páginas, custa 160 reais e será o primeiro de uma trilogia. A Plataforma9 – que o editou e comercializa – aceita pedidos do Brasil inteiro, dos Estados Unidos, da Austrália e da Europa. Um site bilíngue (seedsandtales.com) divulga o projeto. O coletivo planeja, ainda, converter as fotos em quadros de altíssima resolução para expô-los e vendê-los como arte. As cópias menores sairão por 5 mil reais. As maiores, por 20 mil.

Quando iniciou o garimpo de grãos, Pockstaller já sabia bem o que procurava. Queria apenas as sementes crioulas. Ou melhor: as que não sofreram alterações genéticas em laboratórios nem tratamentos químicos. O plantio delas acontece de um jeito muito natural e cabe sobretudo às famílias de pequenos agricultores, geralmente oriundas de populações tradicionais, como as indígenas, quilombolas, caiçaras e ribeirinhas. Assentados do MST também as cultivam.
Para angariar as sementes crioulas, o carioca atravessou os seis biomas do país: Amazônia, Cerrado, Pantanal, Caatinga, Mata Atlântica e Pampa. Buscou exemplares típicos daqueles hábitats ou provenientes de outros lugares, mas que se adaptaram perfeitamente longe de casa. Ora o rapaz trocava os grãos que lhe interessavam pelos que sempre carregava na bagagem, ora os comprava ou recebia em doação. Quase todas as viagens ocorreram por terra. A picape bege que conduzia Pockstaller – uma Toyota Hilux – rodou uns 100 mil km. Ele só pegou avião uma vez. Em certas ocasiões, se deslocou de barco. Carolina Latini costumava acompanhá-lo.
O casal, que se uniu em 2019, não desperdiçava nenhuma chance de obter novas amostras. “Um dia, por exemplo, a gente parou num posto de gasolina para fazer xixi, e um cara bem simples se aproximou da nossa caminhonete. Papo vai, papo vem, soubemos que o sujeito plantava mandioca. Pronto: descolamos umas mudas do tubérculo com o homem”, recorda a paulistana.
Ela e o parceiro veem “as crioulas” como um tesouro biológico e cultural do Brasil. Um patrimônio extremamente plural que corre o risco de se extinguir devido à voracidade do agronegócio, da crise climática e das queimadas. “Claro que é fundamental documentar e exibir tamanha riqueza. No entanto, nos parece ainda mais essencial impedi-la de morrer”, ressalta Pockstaller. Por isso, o Seeds Collective se preocupou em propagar as sementes das 303 espécies fotografadas. “Plantei no meu terreno as que se relacionam melhor com a Mata Atlântica e mandei as outras para lavradores de todo o país sob a recomendação de que as cultivem”, afirma o jovem.
Recentemente, um dos agricultores avisou que colheu 4 kg de um milho azulado, o checche, cujas sementes ganhou do coletivo. “Ele está manejando o cereal há uns dois anos na serra fluminense. Não é maravilhoso?”, festeja Latini, que hoje divide a casa de São Conrado com Pockstaller. No quintalzão, junto às plantações, a dupla cria três cachorros grandes e cinco variedades de abelhas sem ferrão: a jataí, a bugia, a mombucão, a guaraipo e a mandaçaia. Os insetos, normalmente dóceis, fabricam mel de diversas cores – amarelo, branco, verde e âmbar. Vira e mexe, ratos-do-mato, porcos-­espinhos, tucanos, macacos, lagartos, cobras, pacas e outros animais silvestres dão as caras por lá, atraídos pela vivacidade da flora.
Uma parcela dos alimentos produzidos em São Conrado se destina às refeições do próprio casal. O que sobra é distribuído entre amigos, parentes e vizinhos. Para cuidar das lavouras, Pockstaller e Latini recorrem à ajuda de um caseiro pernambucano e do Horta na Favela, projeto de educação ambiental que reúne moradores da Rocinha e que também recebe parte da produção. A imensa comunidade, com 72 mil habitantes, fica perto do terreno.

A palavra milpa, do idioma asteca, designa um sistema agrícola milenar que indígenas do Sul mexicano e da América Central adotavam. O método consiste em cultivar o milho, o feijão e a abóbora no mesmo espaço, o que enriquece o solo e maximiza o crescimento das plantas. Daí os povos ancestrais denominarem o trio de “três irmãs”.
Herbívoros gigantescos, já extintos, circulavam pelo Cerrado durante a Era do Gelo ou Pleistoceno, que findou há 11 mil anos. Os mamíferos adoravam saborear o baru, o abacate e o jatobá, frutos com sementes muito rígidas. Como não conseguiam triturá-las, os bichões as defecavam inteiras e, assim, as espalhavam.
Curiosidades do tipo aparecem nos verbetes de Seeds and tales. Pockstaller escreveu a primeira versão dos textos. Mirna Wabi-Sabi complementou a pesquisa e se encarregou da redação final. Com uma câmera digital Canon, uma lente ultramacro de 70 mm e um flash, Riccardo Riccio tirou os retratos ampliados das 303 espécies. A casa de São Conrado serviu de estúdio. “Posicionei cada semente num fundo preto e a fotografei em cem distâncias diferentes”, explica o ítalo-brasileiro. “Depois, usei um software para sobrepor todas as imagens.” Batizada de focus stacking, a técnica permite registrar as mínimas nuances de um objeto e resulta em fotos bastante nítidas.
Desde o nascimento, Riccio enfrenta um transtorno ocular degenerativo e progressivo, a doença de Stargardt, que lhe roubou 90% da visão. “Enxergo tudo embaçado. O pior é que nenhum óculos, lente de contato ou cirurgia resolve o problema. Graças à ultramacro, os grãozinhos crioulos adquiriram uma clareza que meus olhos – e, talvez, os de qualquer humano – jamais captariam naturalmente.”
O fotógrafo e a Trovão Tropical financiam o Seeds Collective, que gastou cerca de 150 mil reais até agora. “Trata-se de um trabalho em permanente continuidade”, enfatiza Zurī Rosalino. “Se depender de nós, vamos catalogar e disseminar o maior número possível de sementes.” Uma fração dos lucros trazidos pelas vendas dos quadros irá para agricultores familiares, hortas urbanas, ações de reflorestamento e militantes que promovem a causa ecológica.
O modo de retratar os grãos acabou por deixá-los parecidos com planetas que flutuam na escuridão do Universo. “Faz um baita sentido, né?”, diz Pockstaller. “Sementes são mesmo planetinhas, umas cápsulas de energia e potencialidades que garantem a existência do nosso planetão.”
(revista piauí)

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

A guardiã

Como Ana Maria Gonçalves escreveu Um defeito de cor e por que o romance se tornou um clássico

Quem procurar comentários ou posts da escritora mineira Ana Maria Gonçalves em qualquer rede social vai quebrar a cara. Ela nunca frequentou o X, o Instagram ou o TikTok. Já flanou pelo Facebook, mas o abandonou em maio de 2010. Tampouco cedeu às seduções do WhatsApp, Telegram ou Messenger. “Todo mundo diz que as mídias sociais geram ansiedade e tiram a concentração. Vou entrar no inferno para quê?”, justifica.
A autora do romance Um defeito de cor – clássico da literatura brasileira sobre a escravidão – até possui celular, só que costuma esquecê-lo desligado e nem sempre o leva à rua. Por incrível que pareça, continua gostando de aparelhos fixos. Daí não abdicar da linha telefônica que serve o apartamento de 90 m² onde mora sozinha, no bairro paulistano da Pompeia. Embora disponha de e-mail, dificilmente responde com rapidez às solicitações que fãs, jornalistas, estudantes e organizadores de feiras literárias lhe mandam sem trégua. “Sou uma ermitã digital”, resume. Mesmo assim, em 18 de julho de 2023, enquanto se encontrava com um grupo de leitores no Rio de Janeiro, empregou uma gíria muito apreciada por influencers: “Zerei a vida, gente!”
A expressão se origina dos videogames. Zerar um jogo significa vencer todas as etapas dele. Por associação, zerar a vida é realizar uma proeza ou conquistar algo bastante almejado. “Primeiro, o destino me concedeu a felicidade de estar perto da Angela Davis num show da Elza Soares. Agora Um defeito de cor se tornou enredo da Portela. O que ainda posso querer? De fato, zerei a vida. Não preciso fazer mais nada”, reiterou a escritora diante de uma plateia majoritariamente negra, constituída por dezenove mulheres e apenas dois homens. Descendente de pretos, indígenas e brancos, a autora de 53 anos e olhos esverdeados também se considera negra, apesar de ter a pele menos escura que a de vários familiares.
Passava um pouco das sete da noite quando a conversa com os 21 leitores começou na Portelinha, antiga quadra da centenária escola de samba que hoje funciona como centro cultural. É ali que os integrantes da velha guarda se reúnem para cantar, tocar, dançar e bater papo. Não à toa, em outubro de 2022, a Portelinha ganhou o status de patrimônio imaterial do estado. A escultura de uma águia observa todo o galpão, onde predominam o azul e o branco, cores oficiais da agremiação. A ave que simboliza a escola está pendurada no teto, de asas abertas, bico em riste e garras crispadas. Alguns retratos de portelenses ilustres dividem o recinto com imagens de santos e uma galeria de troféus.
Naquela terça-feira chuvosa, os termômetros marcavam 20°C, temperatura amena para os padrões cariocas. A romancista, porém, reclamava de calor. Mal se posicionou à frente dos leitores, puxou um leque da bolsa e se abanou freneticamente. “É a menopausa”, comentou, rindo. “De repente, um fogacho invade o meu corpo e… Uma calamidade!” Os responsáveis pelo encontro logo se mobilizaram e arranjaram um ventilador de pedestal. “Graças a Oxalá!”, festejou a convidada.
Com 1,58 metro de altura, Gonçalves parece crescer sempre que fala em público. Tímida por natureza, sofre uma rápida metamorfose e revela habilidades estratégicas. Consegue ser extrovertida, afetiva e espirituosa. Foge do linguajar hermético e sabe o momento certo de demonstrar humildade ou imodéstia. Volta e meia, reverencia seus antepassados e personalidades negras que admira. Foi o que fez na Portelinha quando mencionou Elza Soares e Angela Davis. Uma década atrás, a cantora e a intelectual americana – figura central da luta contra o racismo – compareceram à sétima edição do Festival Latinidades, em Brasília. A romancista também participou do evento, como palestrante. Na noite em que Elza se apresentou, calhou de Davis e Gonçalves acompanharem o show lado a lado. A coincidência inebriou a escritora.
Uma honraria ainda maior a aguardaria em 12 de fevereiro de 2024. No Sambódromo do Rio, sob a batuta dos jovens carnavalescos negros André Rodrigues e Antônio Gonzaga, a Portela homenagearia Um defeito de cor. O romance histórico de 951 páginas exigiu da autora cinco anos de trabalho árduo. Ela gastou os dois primeiros só em pesquisas. Levou mais um ano para redigir a versão original da trama e outros dois na batalha de reescrevê-la. “Tenho imaginação fértil. Se esbarro em alguém interessante num parque ou numa praça, não resisto. Vou logo inventando um novelão sobre o desconhecido. Projeto cenas, diálogos, intrigas”, contou a romancista horas antes de visitar a Portelinha. “No entanto, jamais imaginei ver meu livro em plena Marquês de Sapucaí. Um tijolão daqueles, que retrata justamente a diáspora negra para o continente americano, chegar à principal festa afro-brasileira… É ou não uma maravilha?”

Um defeito de cor figura entre os romances mais longos da literatura nacional. Passa-se durante quase todo o século XIX e enfoca a trajetória mirabolante da africana Kehinde (pronuncia-se “quéindé”). A personagem, escravizada na Bahia, compra a liberdade depois de inúmeras desventuras e ascende à condição de empresária. Coalhado de reviravoltas, o livro entretém, arranca lágrimas e indigna à medida que oferece um panorama do que significa ser negro numa sociedade escravagista.
Em 2006, mal a obra surgiu, o professor e crítico literário Idelber Avelar, do blog O biscoito fino e a massa, definiu Kehinde como o “Riobaldo-Diadorim dos subterrâneos da história brasileira”, uma referência a Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Um ano depois, o épico de Ana Maria Gonçalves faturou o prestigioso Casa de las Américas, prêmio outorgado pela instituição cubana de mesmo nome. Em 2022, no bicentenário da Independência, uma enquete da Folha de S.Paulo com 169 intelectuais colocou Um defeito de cor entre os duzentos livros fundamentais para a compreensão do país. A narrativa mereceu o sétimo lugar da lista. Quarto de despejo, célebre diário que Carolina Maria de Jesus publicou há seis décadas, conquistou o primeiro.
As aventuras de Kehinde não angariaram somente o apreço da intelectualidade. Em 13 de maio de 2020, enquanto bolsonaristas relacionavam a abolição da escravatura à benevolência da princesa Isabel e não à luta dos negros, o hoje presidente Lula elogiou o romance. “Uma obra que li na prisão e recomendo sobre a questão do racismo é Um defeito de cor. Tem quase mil páginas, mas vale muito a pena”, enfatizou no X, que à época ainda se chamava Twitter. O ator Lázaro Ramos frequentemente se declara fã da trama. “É meu livro definitivo – o que mais dou de presente, o que mais indico, o que mais me abriu o olho para a situação dos pretos em nosso país”, costuma dizer.
Quando lançou Um defeito de cor, Gonçalves estava com 35 anos, não exibia grandes credenciais acadêmicas e praticamente debutava no mercado. Antes, escrevera Ao lado e à margem do que sentes por mim, romance independente que despertou pouca atenção da crítica. Embora sem um currículo notável, a autora ousou abraçar um projeto bem mais ambicioso e logrou que um conglomerado influente, o Grupo Editorial Record, topasse publicá-lo. As peripécias de Kehinde também se destacam por antecederem as discussões sobre negritude que atualmente incendeiam o país. Com um quê de pioneirismo, o livro logo seduziu um número expressivo de leitores e, em dezoito anos, não perdeu o fôlego comercial. Vendeu mais de 150 mil exemplares e alcançou a 41ª edição.
Entre setembro de 2022 e agosto de 2023, o Museu de Arte do Rio (mar) sediou uma bem-sucedida exposição inspirada na saga. Sob a curadoria de Amanda Bonan, Marcelo Campos e da escritora, a mostra juntou aproximadamente 370 trabalhos de 130 artistas, a maioria negros, e atraiu 165 mil visitantes. Depois da temporada carioca, o Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), em Salvador, abrigou a exibição por quatro meses. Cerca de 127 mil pessoas a prestigiaram. Em abril, o evento desembarcou no Sesc Pinheiros, de São Paulo, onde permanecerá até o princípio de dezembro.
O sucesso inesperado do épico assustou e travou a autora, que ainda não conseguiu terminar um novo livro. De 2006 para cá, Gonçalves concebeu espetáculos teatrais, contos e roteiros cinematográficos, mas não arrematou nenhum dos trinta romances que começou. Uns avançaram bastante, sobretudo o juvenil Quem é Josenildo?, híbrido de policial e ficção científica. Outros se limitaram à sinopse. “Durante muito tempo, Um defeito de cor me pesou. Eu receava virar prisioneira dele”, confessou numa das cinco entrevistas por vídeo que concedeu à piauí. “Nunca o reneguei, claro, mas o enxergava como uma montanha altíssima que deveria escalar duas vezes. Pensava: tenho de escrever algo tão consistente quanto Um defeito de cor. Só que, no fundo, sabia estar me impondo uma tarefa irrealizável. Agora vejo as coisas com mais leveza porque aprendi uma lição essencial: a literatura é uma arte em que a prática não conduz obrigatoriamente à evolução. Hoje você pode criar uma história excelente e, amanhã, uma péssima. Não existe a certeza – nem a necessidade – de subir degraus. O importante é persistir no ofício e fazer o melhor, dentro do possível.”
Livre do encargo de superar Um defeito de cor, Gonçalves se sente mais à vontade para assumir a missão de “guardiã do romance”. “Entendi que preciso tomar conta dele com o máximo de dedicação e alegria. Divulgá-lo sempre e me orgulhar dos voos incríveis que alçou.”

Apesar de caudaloso, o livro se divide em apenas dez capítulos. O maior totaliza 162 páginas. O menor, 46. Cada capítulo é introduzido por um provérbio africano, que funciona como um oráculo e antecipa ou comenta de modo um tanto cifrado o conteúdo que se lerá a seguir. “A sola do pé conhece toda a sujeira da estrada”, apregoa um dos adágios. “A espada não poupa o próprio ferreiro”, adverte outro. “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que jogou hoje”, sentencia um terceiro. Para facilitar a leitura, os capítulos se compõem de várias partes, iniciadas por subtítulos.
Nem Ana Maria Gonçalves é capaz de informar quantos personagens há no romance. A escritora já tentou enumerá-los, mas desistiu. “Contei uns 450 até o oitavo capítulo. Depois, entreguei os pontos.” A protagonista Kehinde narra a história inteira na primeira pessoa, em ordem cronológica, com uma linguagem simples e sem diálogos. Sempre que deseja reproduzir uma conversa, lança mão do discurso indireto. Ela se identifica como integrante do povo jeje-­maí e diz que nasceu em 1810, no então Reino do Daomé, atual República do Benim. Quando pequena, falava dois idiomas: o eve-fon e o iorubá. Morava na cidade de Savalu com a mãe, a irmã gêmea (Taiwo), o irmão mais velho (Kokumo) e a avó (Dúrójaiyé). As crianças não tinham o mesmo pai. O do menino exercia a função de ministro real e ignorava o filho. O das meninas sumiu tão logo engravidou a parceira.
Na cultura iorubá, gêmeos são denominados ibêjis. Conforme a tradição, o bebê que deixa primeiro o ventre da mãe deve se chamar Taiwo, independentemente do sexo. O que sai por último recebe o nome de Kehinde. Acredita-se que, embora chegue na frente, Taiwo seja o caçula. Dentro da barriga materna, Kehinde manda que o irmão mais novo o preceda para verificar se o mundo vale a pena. Após uma ligeira averiguação, Taiwo se comunica espiritualmente com o primogênito, que recusa o nascimento caso não considere as notícias animadoras.
A tradição também preconiza que ibêjis trazem sorte e riqueza. Entretanto, na família da protagonista, o vaticínio não se cumpriu. Quando Kehinde beirava os 7 anos, cinco guerreiros do rei invadiram a casa dela para levar algumas galinhas. Os soldados agiam por ordem do tirânico soberano. Durante o confisco, mataram Kokumo, além de estuprarem e assassinarem a mãe das crianças. Não satisfeitos, exigiram que as gêmeas os masturbassem. Dúrójaiyé, a avó, presenciou tudo, aterrorizada.
Depois de os guerreiros se afastarem, a idosa enterrou os mortos e abandonou Savalu com as meninas, que supunham compartilhar a mesma alma. O trio se refugiou na cidade litorânea de Uidá, mas acabou sequestrado por tripulantes de um navio negreiro. Junto de outros cativos, a avó e as netas zarparam sem saber o destino exato da jornada. Navegaram pelo Oceano Atlântico em condições tão ruins que Taiwo e Dúrójaiyé morreram durante o trajeto. Quando finalmente chegou à Ilha dos Frades, na Bahia, Kehinde recebeu a notícia de que um padre subiria a bordo e batizaria os pretos. Nenhum dos forasteiros deveria pisar em terras brasileiras se não rejeitasse as crenças pagãs, adotasse o catolicismo e trocasse de nome. Fiel às divindades da África, a garota arrumou um jeito de escapar do batismo.
Ela e os demais negros ficaram na ilha o tempo necessário para se recuperarem da viagem insalubre. Bem tratados pelos captores, ganharam peso, recobraram o viço e se tornaram mercadorias cobiçadas em Salvador, onde o fazendeiro José Carlos de Almeida Carvalho Gama adquiriu Kehinde. Quando lhe perguntaram se tinha um nome cristão, a criança mentiu e afirmou se chamar Luísa. O comprador fisgou a isca e deu à africana o próprio sobrenome, como de praxe na época. A partir daí, a escravizada virou Luísa Gama, mas só para os brancos que a exploravam. No íntimo e diante dos pretos, continuava Kehinde.
Localizada em outra ilha baiana, a de Itaparica, a fazenda do sinhô José Carlos produzia algodão, mandioca, cana e milho. Lá também funcionavam um engenho e uma fundição. De início, a menina trabalhava na casa-grande e se ocupava de serviços leves. Fazia companhia para uma garota dois anos mais velha, a sinhazinha Maria Clara, única filha legítima do latifundiário. À boca pequena, fuxicava-se que o fazendeiro semeara uma prole de bastardos, fruto dos abusos cometidos contra as negras da propriedade. Depois de enviuvar, José Carlos se casou com a sinhá Ana Felipa.
Os escravizados da casa-grande ensinaram o português para Kehinde, que se alfabetizou graças às aulas particulares recebidas pela sinhazinha. Como as duas não se desgrudavam, a africana aprendeu por tabela e se apegou à leitura – de tal maneira que, mais tarde, devoraria obras de padre Antônio Vieira, Miguel de Cervantes, Gil Vicente e Luís de Camões. Quando os familiares internaram Maria Clara num colégio de freiras, Kehinde precisou deixar a casa-grande. Foi transferida para a fundição e amargou turnos exaustivos, sob o jugo de um impiedoso capataz. Enquanto circulava entre os trabalhadores, ouviu boatos sobre as rebeliões abolicionistas que pipocavam na Bahia desde o começo do século XIX.
Com 12 anos, a africana menstruou. O desabrochar da menina acendeu a volúpia do sinhô, que a trouxe de volta para a casa-grande, a estuprou e a engravidou. Kehinde concebeu, então, Banjokô, um garoto de pele alva e olhos cinza-azulados. Rapidamente, Ana Felipa se afeiçoou ao bebê e decidiu cuidar dele como do filho que não conseguia ter. A africana tolerou a situação na esperança de que o menino desfrutaria de uma boa educação.
Meses depois do estupro, uma picada de cobra matou José Carlos. A viúva tratou de vender a fazenda e se mudou para um solar em Salvador. Os serviçais da casa-grande a acompanharam. Na capital, uma família britânica alugou Kehinde por um ano e pouco, o que possibilitou à mocinha aprender inglês e diversas receitas de sobremesas, especialmente de cookies. Assim que o aluguel terminou, a africana se transformou em escravizada de ganho. Ana Felipa, que já não queria muita proximidade com a mãe de Banjokô, lhe permitiu arranjar um trabalho remunerado. A sinhá cobraria quase 700 réis por semana da jovem, que poderia guardar o dinheiro excedente, caso o faturasse.
Kehinde agarrou a oportunidade com entusiasmo. Resolveu preparar cookies e comercializá-los pelas ruas de Salvador. Mal completou 18 anos, a moça – que engrenara nos negócios e embolsava pelo menos 10 mil réis mensais – bolou um modo de chantagear Ana Felipa. Encurralada, a sinhá aceitou libertar a africana e Banjokô. Vendeu-lhes a carta de alforria por um preço bem abaixo do que estimara.
Nessa altura, Kehinde se relacionava com Alberto, comerciante branco e português que se revelaria viciado em jogos e bebida. O casal abriu uma padaria, a Saudades de Lisboa, e assumiu o compromisso de não escravizar ninguém. O estabelecimento, que caiu imediatamente no gosto da freguesia, empregava apenas funcionários pagos. Depois de inaugurá-lo, a jovem e o parceiro geraram um filho de pele escura, que a mãe tratava por Omotunde e o pai, por Luiz. Um babalaô predisse que, no futuro, o recém-nascido se destacaria pelo senso de justiça.
Quando o movimento da padaria diminuiu, os sócios a desativaram. Ke­hinde não esperou para iniciar outro negócio: uma fábrica de charutos. Na ocasião, Banjokô tinha 9 anos. Enquanto xeretava onde não devia, se acidentou com uma faca e morreu. A africana, mesmo de luto, não parou de trabalhar duro. À medida que prosperava, se engajava na causa abolicionista. Lecionava para crianças negras, comprava a liberdade de cativos e abrigava escravizados em fuga. Participou, inclusive, de uma revolta malsucedida que um grupo de pretos muçulmanos organizara. Cultos e muito unidos, os islâmicos rechaçavam o domínio dos brancos por razões espirituais: acreditavam que nenhum humano estaria à altura de lhes botar cabresto e que somente Alá poderia regê-los.
Depois de passar uma temporada no Maranhão e no Recôncavo Baiano, dedicando-se às práticas religiosas de seus ancestrais, Kehinde descobriu que Luiz desaparecera. O garoto permaneceu em Salvador durante o retiro da mãe e acabou vendido pelo pai para um mercador de pretos. Alberto cometeu o disparate porque necessitava saldar dívidas de jogo. Em seguida, também sumiu do mapa. Transtornada, a africana saiu à procura do filho escravizado, que festejara 10 anos recentemente. Uma série de pistas a fez esquadrinhar Salvador e outras quatro cidades: Rio de Janeiro, Santos, Campinas e São Paulo. Tudo em vão. O fracasso das demoradas buscas abateu Kehinde e lhe aguçou a ideia de voltar para o Daomé.
Os dois últimos capítulos do romance se desenrolam na África. Em novembro de 1847, a protagonista saltou do navio britânico Sunset e reencontrou Uidá, de onde partira três décadas antes. Ela, porém, já não se identificava com os costumes do lugar. Os moradores da cidade lhe pareceram brutos, atrasados e pouco inteligentes. “Uns selvagens”, como dizia.
Em Uidá, a retornada se amasiou com John. Originário de Freetown, na Serra Leoa, o preto bonito e refinado comprava armas dos ingleses e as revendia para alguns reis africanos. Os fuzis e as espingardas, usados em guerras tribais, nutriam o tráfico negreiro. Afinal, os derrotados nas batalhas viravam escravos dos vencedores, que os comercializavam. Kehinde tinha consciência do esquema, mas não reprovava o companheiro, uma vez que as transações enriqueciam o casal.
Ela e John se tornaram pais de gêmeos e julgaram mais adequado lhes dar nomes em português, o que diferenciaria as crianças dos “selvagens”. Chamaram o garoto de João e a garota de Maria Clara, para homenagear a sinhazinha, que mantinha uma sólida amizade com Kehinde e se transformara numa mulher de espírito progressista. Sem os pudores de outrora, a retornada não ligava que os habitantes de Uidá a tratassem de sinhá Luísa ou dona Luísa. Seguia respeitando as divindades africanas, mas agora também venerava as do catolicismo. Paralelamente à ascensão de John como traficante de armas, estreitou laços com os figurões da região, incluindo os mercadores de negros, que a deixaram negociar óleo de palma, cachaça, fumo e outros produtos.
A protagonista enveredou, ainda, pelo ramo da construção civil. Fundou uma empresa que fazia palacetes à moda dos soteropolitanos para os milionários do Daomé e de Lagos, hoje a maior cidade da Nigéria, onde a antiga escravizada decidiu viver depois dos 53 anos. Cada vez mais rica e influente, adotou hábitos aristocráticos. Criava cavalos de corrida, apreciava toalhas de linho, tapetes chineses e móveis da Inglaterra, recepcionava a nobreza da Europa com festas nababescas, andava de carruagem ou riquixá e matriculou os gêmeos em escolas da França. Por outro lado, nunca se esqueceu inteiramente das próprias origens nem abdicou de honrar os antepassados. Quando o livro termina, em 1899, Kehinde tinha onze netos e continuava procurando Luiz, o filho mestiço que jamais conseguiu rever.

De repente umas vozes na rua/me gritaram negra!/Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!/Por acaso sou negra? – me disse. Sim!/Que coisa é ser negra? Negra!/Eu não sabia a triste verdade que aquilo escondia.
A professora desempregada Neuci Santos Souza, de 65 anos, declamou os versos da peruana Victoria Santa Cruz sem exagerar na dramaticidade. Outras mulheres a ajudavam. À maneira de um coro grego, berravam em uníssono: “Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!” O estribilho se repetiria pelo resto do poema, como acusação ou expressão de orgulho. Quando o jogral de quase três minutos acabou, Ana Maria Gonçalves sorriu e abraçou a professora.
Os 21 leitores que encontraram a romancista na Portelinha não se preocuparam em disfarçar a alegria. Eufóricos, recitaram mais um poema, entregaram à convidada uma placa que comemorava a visita, tiraram fotos e encerraram a reunião com quitutes. O grupo frequentava aulas semanais e gratuitas sobre Um defeito de cor na Oficina de Artes Paulo Benjamin de Oliveira, que oferece diversos cursos à comunidade portelense (de cenografia, maquiagem, cavaquinho…). Toda noite de terça-feira, entre abril e dezembro de 2023, o funcionário público Virgilio Magalde explicava o épico para 32 alunos. Ele faz doutorado em comunicação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e lançou quatro livros de poesia. “A escolha do romance pela Portela serviu de chamariz para o curso. Vários matriculados não tinham o hábito da leitura, mas desejavam entender por que, afinal, a escola iria desfilar a obra. A gente analisou a saga inteira, bem devagar”, conta Magalde.
Antes de Um defeito de cor, a Portela homenageou ao menos três romances. Em 1966, venceu o Carnaval com Memórias de um sargento de milícias, que Manuel Antônio de Almeida publicou como folhetim na metade do século XIX. Paulinho da Viola assinava o samba-enredo. Em 1968, a escola celebrou O tronco do ipê, narrativa regionalista de José de Alencar, e ficou na quarta colocação. Já em 1975, encenou Macunaíma, a rapsódia modernista de Mário de Andrade, que rendeu o quinto lugar à agremiação.
Durante as aulas, Magalde aproveitava para apresentar outros autores que pensam a negritude, como a antropóloga Lélia Gonzalez e a historiadora Beatriz Nascimento. Os debates entre os alunos, não raro, se convertiam em desabafos coletivos. “Muitas partes do livro comoviam a galera. Os estudantes se reconheciam na trama. Relacionavam as próprias dores – ou as dos pais e avós – com as da Kehinde”, relembra o funcionário público, que é noivo da rainha de bateria Bianca Monteiro, criadora da oficina. Todos os cursos do projeto ocorrem na Portelinha.
Depois de recitar o poema Me gritaram negra e abraçar Gonçalves, a professora improvisou um breve discurso: “Pratico o candomblé há décadas. Sou filha de Iemanjá e jamais desisti de procurar uma bíblia para a minha religião. O candomblé não tem um livro sagrado. Se alguém cismar de esclarecer o motivo de algumas coisas que acontecem nos terreiros, vai penar bastante. Por que o babalaô se comporta assim ou assado? Qual a origem de determinados ritos? Eu vivencio uma realidade nas casas de santo, mas não faço ideia de como tudo aquilo começou. Quer dizer, não fazia até descobrir Um defeito de cor. Finalmente, achei a minha bíblia! Agora pretendo visitar os terreiros com o romance debaixo do braço. ‘Venham cá, meus irmãos’, vou falar para os zeladores das casas. ‘Vocês gostariam de sanar as dúvidas sobre nossa fé? Pois tratem de ler a palavra da Kehinde!’”
A assistente social Elisângela da Cruz Hipólito, de 52 anos, pediu licença e contou que o romance lhe atiçou a vontade de escarafunchar a história de sua família: “Nunca me interessei pelo assunto. Sei apenas que minha mãe nasceu na Praia do Rio Vermelho, em Salvador. Na praia mesmo! Na areia! Minha avó correu para o hospital, mas o bebê estava com pressa. Quando minha mãe cresceu um pouquinho, virou uma peste. Imagine uma criança levada… Minha avó reclamava: ‘Sossega, menina! Você ficou desse jeito porque nasceu naquela praia de malandro. Um lugar de prostituta, bêbado, ladrão.’ Sempre escutei horrores do Rio Vermelho. O resultado é que enxergava a Bahia como uma terra complicada. Um defeito de cor me provou o contrário. A Bahia esbanja maravilhas! Resolvi, então, que vou deixar a implicância de lado e pesquisar as minhas raízes maternas.”
O testemunho das duas mulheres tirou lágrimas da autora. “O carinho dos leitores ainda me emociona. Muitos se sentem íntimos da Kehinde e, em consequência, de mim”, afirmou Gonçalves, mal saiu da Portelinha. “É comum as pessoas me abordarem para trocar um abraço, confidenciar algo ou expressar as sensações que o romance lhes causou. A [escritora] Conceição Evaristo tem uma brincadeira que volta e meia repito: ‘Nós não damos autógrafo. Damos consulta.’”

Equiparar Um defeito de cor à Bíblia – como fez a professora – soa exagerado, mas não completamente absurdo. De fato, a religiosidade africana perpassa todo o livro. Filha de Oxum, dona dos rios e das cachoeiras, Kehinde não venera só os orixás, deuses dos povos iorubás. Cultua igualmente os voduns, dos povos jeje-fons, e os inquices, dos povos bantos. Em inúmeros trechos da saga, a protagonista se refere às divindades. Ela também conta sonhos premonitórios, discorre sobre rituais de iniciação, morte ou cura, enfatiza o poder de cantigas mágicas, amuletos e feitiços, prova comidas de terreiro, retrata sacrifícios de animais, elucida jargões litúrgicos e recorda mitos. De quebra, aponta semelhanças inesperadas entre as crenças afro e o islamismo, além de abrir generoso espaço para o detalhamento de solenidades católicas. O mundo espiritual se revela tão presente na trajetória da personagem quanto o material.
Um dos mitos que o romance mais rememora é o dos abikus – espíritos bastante adaptados à rotina do Orum, o Céu dos iorubás, onde desfrutam de amizades divertidas. Eles gostam tanto de lá que preferiam nunca ir para o Àiyé, a Terra. Cedo ou tarde, porém, Olorum – o Ser Supremo – determinará que encarnem. Uma vez corporificados, os abikus ficam saudosos dos amigos deixados no Orum e cultivam o desejo de revê-los prontamente. Por isso, costumam morrer logo, em geral durante a infância. Oráculos podem informar se um bebê é abiku. Caso seja, os pais da criança devem lhe atribuir um nome que busque retê-la o máximo possível entre os vivos. Nem sempre funciona, como demonstraram dois abikus bem próximos de Kehinde, que partiram do Àiyé precocemente: o irmão e o primeiro filho dela. Kokumo significa “não morrerás porque os deuses irão segurá-­lo” e Banjokô, “permaneça comigo”.
Numa das impressionantes cerimônias fúnebres que a protagonista relata, sacerdotes de Uidá promovem o sacrifício de humanos. As convenções locais exigiam que o defunto – um mandachuva riquíssimo – merecesse todas as honras, o que implicava decapitar um jovem casal e enterrá-lo junto do morto eminente.
Um defeito de cor se destaca, ainda, pela acurada descrição de festas populares, indumentárias, logradouros, moradias, ambientes de trabalho e paisagens litorâneas ou rurais. Mesmo as torturas são narradas meticulosamente. Numa delas, a sinhá Ana Felipa arranca os olhos de uma escravizada. Em outra, o sinhô José Carlos sodomiza e castra um preto diante de Kehinde. No primeiro capítulo, há uma aterradora radiografia de um navio negreiro. As “peças” – como os brancos denominavam os cativos – viajavam deitadas, espremidas e quase imóveis, dentro de um porão abafado e escuro. Não se levantavam nem sequer para defecar ou urinar. Periodicamente, recebiam uma quantidade ínfima de água, farinha, carne salgada e feijão. O cheiro de xixi, fezes, suor e vômito empesteava o ar.
À medida que esmiúça a própria biografia, a protagonista evoca uma sucessão de acontecimentos históricos, ora como partícipe, ora como simples observadora. A maioria dos episódios é muito conhecida: a Independência do Brasil, a abdicação de dom Pedro I, os conflitos federalistas na Bahia, a entronização de dom Pedro II, a Guerra do Paraguai, a Comuna de Paris, a assinatura da Lei Áurea e a Proclamação da República. Não sem motivo, a personagem se ocupa sobretudo de contextualizar a escravidão. Ela mostra a camaradagem entre os sinhôs e os próceres eclesiais, o conluio dos reis africanos com os comerciantes de negros, a resistência corajosa, mas às vezes errática, dos escravizados e o papel ambíguo dos ingleses nas lutas antiescravagistas – enquanto as incentivavam, os súditos da Coroa britânica não abriam mão das benesses que o tráfico negreiro lhes garantia.
Dos vários levantes abolicionistas que o romance menciona, a Revolta dos Malês sobressai por ter Kehinde como uma das insurgentes. A rebelião – maior do gênero no país – tomou as ruas de Salvador em 25 de janeiro de 1835, mobilizou cerca de seiscentas pessoas e fracassou rapidamente. Orquestrada pelos negros muçulmanos (os malês), pretendia assassinar os brancos e lhes confiscar as propriedades, libertar os africanos escravizados, manter cativos os pretos e mestiços brasileiros, vetar as práticas católicas e implantar uma república islâmica na Bahia. Setenta revoltosos morreram durante a batalha com os policiais. Outros amargaram a prisão, o açoite, a deportação ou o fuzilamento.
O capítulo sete do épico reconstitui a revolta em minúcia. Dezenas de páginas antes, ao longo do capítulo cinco, Kehinde explica que a legislação da época impedia os negros de exercerem funções importantes nas repartições públicas, no clero, na política e nas Forças Armadas. Os que almejassem tais cargos precisavam requisitar dispensa do “defeito de cor”.

No decorrer da saga, a protagonista se relaciona, direta ou indiretamente, com personalidades que entraram para a história oficial da África ou do Brasil. A lista engloba desde monarcas do Daomé, administradores coloniais e diplomatas até sacerdotes e artistas. No Rio de Janeiro, Kehinde conhece o doutor Joaquim, um estudante de medicina que está concluindo seu primeiro romance. O rapaz não consegue encontrar um bom nome para a heroína da trama e pede uma sugestão à africana, depois de lhe antecipar uns trechos da narrativa. Ela propõe Carolina, com a intenção de honrar a filha mais velha da sinhazinha Maria Clara. O estudante aprova a ideia. Embora Kehinde o chame somente pelo prenome e não cite o título do romance, o leitor perceberá que o jovem escritor é Joaquim Manuel de Macedo, autor de A moreninha. O livro de 1844, um clássico do romantismo, retrata o enlace amoroso do futuro médico Augusto com uma graciosa moça de 15 anos, justamente a dona Carolina.
Um defeito de cor também enfoca outro ilustre personagem literário: o inescrupuloso Amleto Ferreira, criado por João Ubaldo Ribeiro. No romance Viva o povo brasileiro, de 1984, o negro de pele clara trapaceia um barão, se apossa da fortuna dele e assume modos de branco. Arranja, inclusive, um sobrenome inglês. No épico de Ana Maria Gonçalves, o mestiço ressurge de bengala e pincenê, com a mesma arrogância, e se torna um dos mais assíduos fregueses dos English cookies vendidos por Kehinde em Salvador. “Eu evitava ler ficção enquanto preparava Um defeito de cor. Receava me influenciar pela prosa alheia. Mas abri exceção para alguns títulos, como Viva o povo brasileiro”, conta a romancista, que se declara fã de Ubaldo. “Reli o livro naquela fase e peguei o Amleto emprestado.”
A fusão entre o real e o fictício, tão corriqueira em Um defeito de cor, se evidencia na própria Kehinde. A protagonista não é 100% inventada. Para construí-la, Gonçalves se baseou especialmente na comerciante negra Luiza Mahin. Ou melhor: partiu dos poucos dados existentes sobre a mulher que gerou o advogado, escritor e jornalista baiano Luiz Gama, principal abolicionista do país e um obstinado republicano. Tudo o que se sabe de Mahin advém de um poema e uma carta. Os versos datam de 1861 e a correspondência, do dia 25 de julho de 1880. O abolicionista redigiu os dois textos.
Intitulado Minha mãe, o poema de oito estrofes integra o livro Primeiras trovas burlescas de Getulino e louva “a mais linda pretinha” com uma enxurrada de adjetivos, mas sem expor o nome dela. De concreto, diz apenas que a “mui bela e formosa” matriarca veio da África, se transformou em “pobre escrava” no Brasil, teve um par de filhos e “orava contrita, junto à cruz penitente”. Já a carta, de teor autobiográfico, não só assevera que a musa do poema se chamava Luiza Mahin como a caracteriza com maior precisão. Gama escreveu a correspondência por solicitação de um amigo, o intelectual Lúcio de Mendonça, idealizador da Academia Brasileira de Letras. As informações da carta nortearam um perfil do abolicionista que o Almanaque literário de São Paulo publicou em 1881. Mendonça o assinava.
De acordo com a correspondência, Mahin nasceu na Costa da Mina, região da África Ocidental, e trabalhou de quitandeira. “Muito altiva”, podia se revelar “geniosa, insofrida e vingativa”. Curiosamente, na carta, Gama contradisse o poema e definiu a mãe como uma africana livre e pagã, “que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã”. Ele relatou que, “mais de uma vez”, a quitandeira se envolveu em “planos de insurreições de escravos”, todos fracassados. O missivista, porém, não especificou nenhuma das revoltas. Contou unicamente que as rebeliões explodiram na Bahia. Mencionou, ainda, que a mãe se mudou para o Rio de Janeiro em 1837. Presa um ano depois com outros “amotinados”, acabou desaparecendo. O filho a procurou “na Corte” em três ocasiões – 1847, 1856 e 1861 –, mas não a localizou. Informantes levantaram a possibilidade, nunca confirmada, de o governo ter extraditado a quitandeira.
O pai do abolicionista, um fidalgo de origem portuguesa, também figura na correspondência. Era apreciador de cavalos, farras e baralhos, fazia parte de uma notória família baiana e herdou uma fortuna da tia. Por um período, educou Gama com afeto. Todavia, depois de torrar cada centavo da herança, se viu “reduzido à pobreza extrema” – de tal modo que, em novembro de 1840, vendeu o filho de 10 anos. O menino, escravizado, deixou a Salvador natal, rumou para São Paulo e se alfabetizou somente no fim da adolescência. Uma vez alforriado, estudou as leis por conta própria e advogou em prol da abolição. Nos tribunais, conseguiu libertar mais de quinhentos negros, sem cobrar honorários. Quando morreu de diabetes, em agosto de 1882, a capital paulista lhe rendeu uma imensa homenagem. Único relato confessional de Gama, a correspondência omite a identidade do fidalgo desalmado.
Sob a ótica historiográfica, não há qualquer comprovação de que Mahin existiu. Vários pesquisadores consideram que o abolicionista pode ter falseado certos trechos da carta por motivos políticos. Ele sabia que as informações sairiam no Almanaque literário de São Paulo, anuário republicano de grande prestígio. Se criasse um passado aventuroso para si mesmo, o que incluía heroificar a mãe africana e vilanizar o pai de ascendência europeia, o missivista tornaria a batalha pela libertação dos cativos ainda mais sedutora às boas consciências. Desse modo, a suspeita de que o advogado “revelou ocultando” não é desprezível, como apontou a professora de letras Ligia Fonseca Ferreira no artigo Luiz Gama por Luiz Gama: carta a Lúcio de Mendonça.
Com o tempo, Mahin voou longe e ganhou relevância dentro do movimento negro, principalmente o feminista, que a converteu em símbolo de luta e resistência. Surgiu, assim, a versão de que a mãe do abolicionista e os muçulmanos uniram forças para comandar a Revolta dos Malês. O historiador João José Reis, autor do livro Rebelião escrava no Brasil, procurou evidências que corroborassem o rumor, mas não descobriu nada. Ele sustenta que a faceta subversiva de Mahin é “um misto de realidade possível, ficção abusiva e mito libertário”.
A doutora em literatura comparada Fabiana Carneiro da Silva, que leciona na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), notou um aspecto interessante quando analisou Um defeito de cor. Depois que o sinhô José Carlos comprou Kehinde, a escravizada adotou o nome cristão de Luísa com S – e não com Z, como registrou Gama. Em sua tese de doutorado, a professora defende que a criadora do romance usou a estratégia para realçar a “similaridade não idêntica” entre a personagem e a mãe do advogado. Mesmo diante das controvérsias históricas, a lei federal nº 13816, de 2019, pôs Mahin no Livro dos heróis e heroínas da pátria.

“Não duvido de Luiz Gama”, diz Ana Maria Gonçalves. “Se um homem branco descrever os pais numa carta para um amigo, alguém desconfiará do testemunho? Dificilmente, né? Por que, então, há quem conteste a palavra de um homem negro? Eu creio que Luiza Mahin existiu, sim.” Em Um defeito de cor, a romancista se refere à quitandeira já no prólogo, quando relembra uma viagem que fez para a Ilha de Itaparica antes de escrever o livro. Lá conheceu dona Clara, a responsável por limpar a Igreja do Sacramento. Na casa da faxineira, havia uma pilha de papéis amarelados com uns 35 cm de altura. Um texto em português arcaico, manuscrito, preenchia todas as folhas. Era uma narrativa contínua, sem parágrafos nem pontuação. Gonçalves passou os olhos pelas letras miúdas e distinguiu o nome de Pacífico Licutan, um dos líderes da insurreição malê. Rabiscos infantis cobriam o verso de inúmeras folhas. “Onde você arranjou tantos papéis?”, indagou a escritora. “Na igreja. O padre anterior jogou tudo fora. Eu trouxe para casa porque o Gérson, meu filho de 6 anos, gosta de desenhar”, respondeu dona Clara.
Com o aval da faxineira, a romancista levou a papelada embora. Depois de examiná-la direito, percebeu se tratar de um documento raríssimo – a autobiografia de uma escravizada – e aventou a hipótese de Mahin ser a autora do extenso relato. Em nenhum momento do prólogo, Gonçalves menciona o nome da mãe de Gama, mas fornece pistas que permitem identificá-la. A escritora frisa que somente um estudo aprofundado dos manuscritos poderia ratificar ou não a hipótese. Ela também garante no prólogo que Um defeito de cor equivale à reprodução praticamente integral do documento. “Tomei [apenas] a liberdade de pontuá-lo, dividi-lo em capítulos e, dentro de cada capítulo, em assuntos.” Por fim, esclarece ter inventado alguns trechos do depoimento que estavam ilegíveis ou se perderam. À medida que os recriava, sentia que a escravizada lhe soprava cada palavra. “Coisas da Bahia, nas quais acredita quem quiser…”, conclui.
Quantos leitores do livro realmente acreditaram? Em julho de 2023, durante o programa Roda viva, da TV Cultura, a apresentadora Vera Magalhães questionou a romancista sobre os papéis. “Tudo o que botei no prólogo é verdade, menos a história dos manuscritos”, declarou a convidada. “Ahhh… Você me pegou nessa. Confesso que sou uma das fisgadas”, comentou Magalhães. Em outras entrevistas, a escritora já havia admitido que a papelada nunca existiu.
Mentirinhas do tipo não são incomuns na literatura. João Ubaldo Ribeiro usou recurso semelhante em A casa dos budas ditosos. O divertido romance de 1999 expõe as travessuras sexuais de uma libertina baiana e sexagenária. Na apresentação do livro, o autor explica que uma desconhecida registrou o testemunho safado em fitas cassete e lhe mandou as gravações. A mulher se identificava exclusivamente pelas iniciais CLB. Ribeiro jura que, para lançar o romance, só precisou transcrever e editar o depoimento da misteriosa senhora.
O caso dos manuscritos é a primeira das várias surpresas que tornam Um defeito de cor irresistível. À moda dos folhetins, o épico prende a atenção também por fazer revelações fundamentais de tempos em tempos. A principal delas irrompe somente no capítulo seis. Ali se descobrirá que Kehinde narra toda a saga para o filho desaparecido, Luiz. Como nunca perdeu a esperança de reencontrá-lo, a personagem sonha em lhe entregar o relato por escrito. O romance é, portanto, uma longuíssima carta materna – o legado mais sincero e afetuoso que a antiga escravizada poderia deixar. Ela sente enorme remorso pelo destino trágico de Luiz. Afinal, o pai negociou o menino quando a mãe viajava. Nos capítulos seguintes, os leitores irão constatar que a protagonista ficou cega devido à velhice avançada. Por isso, dita a correspondência para a amiga Geninha, que se encarrega da redação.

Na infância, Ana Maria Gonçalves adorava escutar os causos da avó paterna em Ibiá, cidadezinha mineira onde a autora e a maioria dos parentes nasceram. “Vovó tinha um jeitão agitado e feições indígenas – cabelo liso, pele morena, corpo atarracado. Também se chamava Ana e gostava de cozinhar no quintal. Acendia o fogo entre alguns tijolos e, de cócoras, preparava a comida”, recorda a neta. “Meu avô, um peão de fazenda, provavelmente branco, a abandonou com quatro filhos. Para sustentá-­los, vó Ana lavava roupa e vendia peças de crochê que confeccionava nas horas vagas. Era uma exímia crocheteira. Eu segui o mesmo caminho e me apeguei às agulhas. Faço crochê desde criança.”
Enquanto cozinhava, Ana contava histórias que deliciavam os ouvintes. “Me lembro bastante da voz dela. Quando escrevo, busco aquela cadência, aquele jogo de sedução, aquela franqueza. Daí não me considerar propriamente uma romancista, ou dramaturga, ou roteirista. Sou contadora de histórias, como a minha avó.”
O ramo materno da família, todo negro, mantém estreita relação com a música. “Meu avô, ferroviário, tocava banjo e cantava em reuniões sociais. Ele curtia uma dor de cotovelo, uns sambas-canções do gênero: Diga que já não me quer/Negue que me pertenceu… Ou, então: Nunca, nem que o mundo caia sobre mim… A vó Lola, dona de casa, brilhava como pandeirista. Meus tios e primos continuam mandando bem no violão e na percussão.” A escritora, em contrapartida, não toca, não canta e dança “mal à beça”.
Quase diariamente, Lola assava dois bolos – um para os netos e outro para os presos de Ibiá. “Conheci poucas pessoas tão bondosas quanto minha avó. Ela visitava a cadeia simplesmente porque se apiedava dos prisioneiros. Às vezes, me levava junto. Todo mundo a respeitava lá dentro. Vó Lola pedia para o delegado abrir as celas e deixar os presos comerem bolo no pátio. Por incrível que pareça, o homem obedecia.”
Católica fervorosa, a mãe da romancista – Hélia Iza da Silva Gonçalves – cantou na igreja até 2008. Parou depois de extrair um tumor benigno do cérebro. A operação trouxe sequelas. “Fiquei com uma paralisia na face e, de vez em quando, enxergo duplicado”, explica. Por causa da cirurgia, Hélia também largou o ofício de costureira, mas ainda preserva o costume de ler avidamente. “Comecei muito nova. Primeiro, me apaixonei pelos gibis da Luluzinha e do Bolinha. Mais tarde, descobri os livros de espionagem.” Hoje, se define como uma leitora sem preconceitos, que saboreia de Gustave Flaubert e Clarice Lispector a Sidney Sheldon e Agatha Christie. “Não ligo tanto para poemas, ensaios ou biografias. Meu negócio é ficção e a Bíblia, né?”
O apreço de Hélia por contos e romances beira a obsessão. “Minha mãe não parava de ler nem durante as tarefas domésticas. Eu, bem pequena, a observava, impressionada. Ela varria a sala, tirava pó e mexia em panelas com um livro nas mãos. De repente, interrompia tudo – ‘Menina, escuta aqui!’ – e lia em voz alta um trecho que achava bacana”, relata Gonçalves. À época, Hélia comprava os volumes de um vendedor que aparecia mensalmente em Ibiá. “Quando se aproximava a data de o sujeito passar, minha mãe aceitava um monte de serviço e varava as noites na máquina de costura. Queria ter mais dinheiro para gastar com o vendedor.”
O pai da escritora – Ivan Gonçalves – não toca nenhum instrumento nem lê muito, mas faz esculturas de madeira. “Sou doido pelo Espírito Santo. Já esculpi uns cinquenta.” Ele se casou com Hélia em julho de 1969. Da união, resultaram duas garotas e um menino. A romancista é a primogênita do trio.
Ivan e a parceira moram atualmente em Três Corações, no Sul de Minas Gerais. Juntos, frequentam o movimento Equipes de Nossa Senhora, constituído por “casais que desejam se santificar”, de acordo com Hélia. “Santos não são apenas os que a gente vê nos altares. Todos nós podemos nos santificar. Basta cultivarmos o altruísmo, a fé e o amor universal”, acredita a ex-costureira. Os integrantes do movimento se encontram periodicamente para rezar, discutir assuntos religiosos e organizar eventos filantrópicos.
De origem pobre, Ivan trabalhou como operário de linhas férreas, torrefador e pedreiro antes de ingressar numa unidade da Nestlé que fabricava leite em pó. A multinacional o empregou por três décadas. Depois, a Kerry – outra indústria alimentícia – o recrutou. “Vou comemorar 81 anos em setembro e estou aposentado desde 2003. Não posso reclamar de nada. Entrei na Nestlé como auxiliar geral e deixei a Kerry como gerente de produção. Deus me ajudou.”

Por influência de Hélia, a futura escritora pegou gosto pela literatura logo que se alfabetizou. “Quando devorei tudo o que a única biblioteca pública de Ibiá oferecia às crianças, decidi explorar os romances de adultos. ‘Me dá aquele!’, pedia. ‘Não, senhora! É forte demais’, respondia a bibliotecária. ‘E aquele outro?’ ‘Idem’”, conta Ana Maria Gonçalves. “Apelei, então, à minha mãe.”
Hélia mantinha seus romances numa estante. Sensibilizada pela curiosidade da menina, bolou um plano. “Colocarei nas prateleiras baixas os livros de adultos mais adequados para criança”, avisou. “Você pode ler qualquer um deles. Só não mexa nos que estão lá em cima.” A garota concordou. Entretanto, mal concluiu a leitura dos títulos autorizados, rompeu o trato e avançou sobre os proibidões. “Minha mãe enfiou nas prateleiras altas a coleção do Jorge Amado e um exemplar de O exorcista.” A menina não titubeou em se aventurar pelo clássico de terror que William Peter Blatty lançou na década de 1970. “Resultado: tive pesadelos, corri para o quarto dos meus pais à caça de aconchego e confessei o crime.” Hélia não brigou com a filha. Preferiu uma saída pedagógica: “Entendeu agora por que você não deve ler os livros de cima?” A partir daí, a garota recebeu sinal verde para acessar todos os volumes da estante, inclusive os proibidões. “De que adiantava censurar? A Ana Maria sempre arrumaria um jeito de me driblar. Melhor liberar e pronto. Mas, antes, preveni: ‘Se você escolher de novo alguma história amedrontadora, não quero saber de choro!’”
Outro episódio da infância que a autora evoca frequentemente aconteceu no colégio. Com o intuito de treinar a caligrafia dos alunos, a professora solicitou que copiassem textos interessantes em casa e os mostrassem durante a aula. “Adivinhe o que a Ana Maria copiou? A carta-testamento do Getúlio Vargas! Ela a descobriu numa das minhas enciclopédias”, relembra Hélia. “Assim que viu aquilo, a professora se alarmou, me chamou à escola e disse: ‘Parece que a Ana Maria anda lendo umas coisas inapropriadas…’” Detalhe: não satisfeita em copiar o trágico documento, a menina o decorou e recitou para a classe.
Como a filha entrava cedo no colégio, Hélia não lhe permitia ler até tarde. “Minha mãe apagava a luz do meu quarto às 23h30. Não valia a pena acendê-la de volta porque a luminosidade vazaria por baixo da porta.” Qual a solução? A garota usava a mesada para adquirir velas às escondidas. Sob a iluminação tênue da chama, varava a madrugada de olho nos livros.
“Ibiá fica dentro de um vale. Quem mora ali não avista muito adiante. Enxerga montanha, montanha, montanha. É uma cidade sem horizonte”, descreve a romancista. “A literatura ampliava o meu campo de visão.” A tevê poderia surtir efeito idêntico, só que a menina não demonstrava a menor paciência para desenhos, seriados e novelas. “Vou dar um exemplo do tanto que os livros alargavam o meu mundo: quando li Capitães da areia, o romance do Jorge Amado, levei um susto. Os personagens da trama são moleques de rua. Em Ibiá, não havia nada semelhante. Eu nem imaginava que existiam crianças naquela situação. Deparar com uma realidade tão dura bagunçou a minha cabeça: como os garotos conseguiam viver assim, sem a proteção de ninguém?”
O calendário voou, a menina cresceu e conquistou prestígio, mas o hábito da leitura permanece intacto. “Para mim, ler é o mesmo que escovar os dentes. Não… Talvez seja mais do que uma necessidade. Talvez seja um vício. Se atravesso um dia sem ler, me desestabilizo. Pinta um mal-estar. Às vezes, leio por quinze, dezesseis horas quase ininterruptas. Preciso dos livros até para dormir. Há pessoas que só adormecem depois de ver um filme ou uma série. No meu caso, apenas a literatura resolve.”
A autora também lê enquanto toma o café da manhã. “Eu assinava a imprensa justamente porque gostava de espiar o noticiário na mesa, logo cedo. Agora me contento com os livros. Deixei de comprar jornal.” Para se atualizar, navega pelo UOL e pelo g-1 ou escuta as rádios CBN e Itatiaia. Tempos atrás, assistia à GloboNews, mas parou. “Tenho medo do Demétrio e do Merval”, afirma, rindo. Os comentaristas Demétrio Magnoli e Merval Pereira se notabilizaram por defender posições conservadoras.
À semelhança da mãe, Gonçalves evita largar um livro pela metade. Hoje consome sobretudo edições digitais, o que não a impede de seguir anotando nas páginas. “Amo sublinhar frases, destacar palavras e fazer observações à margem dos parágrafos.” Em geral, a romancista lê quatro ou cinco obras simultaneamente e prioriza a não ficção. Interessa-se por ensaios sobre uma infinidade de temas: desde feminismo e questões raciais até música e artes plásticas. No entanto, não abre muito espaço para a teoria literária. “Temo perder o prazer da leitura se estudar demais os bastidores da escrita.”
Na seara da ficção, novamente repete a conduta da mãe: não privilegia “a alta literatura em detrimento da baixa”. “Sou eclética. Senti vontade de me distrair com um romance de banca, tipo Sabrina ou Julia? Beleza! Vou lá, compro e me esqueço dos problemas enquanto mergulho naquele universo. Obviamente, sei que Sabrina e Julia diferem de Crime e castigo. Mas, em certas ocasiões, um enredo leve cai melhor do que Dostoiévski.”
Embora leia bastante, Gonçalves diz ter dificuldade para guardar nomes de autores ou títulos de livros. “Minha memória é ruim. Passo cada vergonha… Erro citação, troco datas.” Contudo, se lhe requisitam indicações de bons ficcionistas brasileiros, negros e contemporâneos, a resposta sai num jorro: Geni Guimarães, Conceição Evaristo, Eliana Alves Cruz, Jarid Arraes, Cidinha da Silva, Geovani Martins, Itamar Vieira Junior, Paulo Lins e Jeferson Tenório. “Como leitora, continuo sendo uma garota de 8 ou 9 anos que se deslumbra com histórias bem narradas. Juro por Oxalá! No fundo, me orgulho mais da leitora em mim que da escritora.”

Primorosas. A mãe da romancista qualifica assim as redações que a filha apresentava no colégio. “A Ana Maria arrasava! Era uma criança observadora. Por isso, escrevia bem. Na juventude, quando me comunicou que estava pensando em lançar um romance, não duvidei da capacidade dela e procurei incentivá-la. Mas nunca cogitei que o negócio iria tão longe”, conta Hélia. Na escola, por baixo dos panos, a menina elaborava as redações dos craques em química e física, que a retribuíam com um arsenal de colas durante as provas das duas matérias. “As tais ciências da natureza me derrubavam…”, lamenta a autora. Ela adotava toda uma estratégia para o professor acreditar que os nerds das exatas concebiam os próprios textos. “Eu fazia a redação de cada aluno num estilo diferente e não mirava a nota máxima. Acrescentava uns errinhos de ortografia, concordância e regência às tarefas porque, se os caras tirassem dez ou nove, dariam muita bandeira.”
Ainda que não se recorde, a escritora mantinha um diário na adolescência. “Verdade?!”, surpreende-se. “Esqueci totalmente.” Quem não o esquece é Andressa Iza Gonçalves, sua irmã caçula: “Nasci em abril de 1981. Sou, portanto, quase onze anos mais nova que a Ana e sempre a admirei. Lembro que a gente brincava de modelo. Ela punha umas roupinhas bonitas em mim, me sugeria posar como estrela de Hollywood e batia um monte de fotos com a câmera do nosso pai. Também me recomendava clássicos da literatura e discos sensacionais, além de me levar para o cinema, o teatro e as exposições. Graças à Ana, conheci Gabriel García Márquez, Caetano Veloso, Belchior, o grupo Língua de Trapo e o filme Labirinto, com o David Bowie. Até hoje, temos uma forte conexão. Sem combinarmos, já rolou de a gente comprar sandálias idênticas ou aparecer em festas usando vestidos da mesma cor.”
Depois que a primogênita deixou a casa da família, Andressa encontrou “os preciosos diários” dentro de uma caixa. “Foi na década de 1990, período em que dois livros para jovens – O mundo de Sofia Confissões de adolescente – estavam bombando. A meninada os engolia.” O primeiro, do norueguês Jostein Gaarder, vendeu mais de 1 milhão de exemplares no Brasil. O segundo, da carioca Maria Mariana, originou um seriado televisivo de sucesso. “Li ambos na época, e nenhum me fascinou tanto quanto as confidências da Ana. Eu curtia o modo de a minha irmã abordar os dramas e as alegrias daquela fase.” Infelizmente, a caixa com os diários sumiu.
Formada em turismo, Andressa é assistente da romancista desde 2017. Com o marido, o jornalista Paulo Morais, escreveu o livro infantojuvenil O reinado de Bené. O casal vive em Belo Horizonte, onde cria duas filhas e coordena o Museu da Oralidade, projeto digital que busca preservar as tradições e a memória popular do Sul de Minas.

O apego precoce de Ana Maria Gonçalves à leitura não a transformou numa garota reclusa. “Pelo contrário! Eu lia só à noite. Era supermoleca. Andava de patinete, desbravava matas, subia em árvores e me esbaldava no pega-pega ou pique-esconde.” Regularmente, também se embrenhava pelo quintal da avó Lola, que beirava um rio. “Havia de tudo por lá: patos, galinhas, porcos, jabuticaba, abacate, goiaba… Um paraíso!”
Quando a pequena se avizinhava dos 10 anos, a Nestlé transferiu Ivan para Porto Ferreira, município do interior paulista. Como o pai da escritora já ocupava um cargo de gerência, pôde morar com Hélia e os filhos numa vila dentro da fábrica. A multinacional lhes ofereceu uma residência espaçosa, bem maior que a de Ibiá. “A vila parecia um clube. Tinha bosque, quadras esportivas, piscina e salão de festas. Às vezes, um aroma de leite Ninho se espalhava pelo ar”, rememora a autora.
Em Porto Ferreira, ainda na infância, a romancista iniciou o aprendizado de inglês. Destacou-se tanto que virou professora do idioma com 12 anos. Dava aulas para crianças na rede Fisk. Pouco depois, assumiu turmas de adultos que, não raro, incluíam conhecidos de Ivan. Em paralelo, jogava como levantadora num time de vôlei local. Treinava diariamente e participava de campeonatos regionais. Muito rígido e protetor, Ivan não a deixava viajar com as outras atletas. Preferia levá-la de carro. Ele seguia o ônibus da equipe pelas estradas e matava a adolescente de raiva.
Para cursar o ensino médio, a escritora se matriculou numa escola particular e católica de Pirassununga, cidade a 20 km de Porto Ferreira. Até então, estudara somente em colégios municipais. Às vésperas do vestibular, decidiu abraçar a profissão da moda: publicidade. Entrou na Faap – uma instituição privada de São Paulo – e trocou o interior pela capital. “Que fase puxada! Eu tocava a faculdade de manhã e fazia estágio à tarde, além de lecionar português para estrangeiros e inglês para brasileiros.”
Em setembro de 1994, já formada, Gonçalves fundou a agência Mercado de Ideias com a colega Adriana Cubo. As sócias se estabeleceram no Alto da Lapa, bairro da Zona Oeste paulistana. “A gente trabalhava muito, muito, muito. Nem gosto de lembrar… Se houvesse necessidade – e normalmente havia –, ralávamos inclusive nos sábados e domingos”, relata Cubo. “A Ana exercia a função de redatora e atendia os clientes. Eu respondia mais pela criação de arte. Fomos excelentes parceiras, uma complementava a outra em termos publicitários, mas derrapávamos no terreno administrativo, o nosso ponto fraco.”
Por um tempo, a romancista bancou a mulher de negócios com satisfação. Tornou-se adepta dos tailleurs e saltos agulhas, introjetou o linguajar corporativo e cumpriu os prazos apertados sem reclamar. Certa manhã, porém, notou que se cansara daquilo: “Quando voltava de um cliente em Guarulhos, enfrentei um engarrafamento tenebroso na Marginal Tietê. O Sol torrava o asfalto, e o ar-condicionado do meu carro não funcionava. De repente, no meio do inferno, me caiu a ficha: por que, afinal, vivo de maneira tão insana? Vale realmente a pena? Semanas depois, visitei mais um cliente. Na sala de espera, folheei uma revista e vi uma reportagem inquietante. A matéria tratava de uma executiva bem-sucedida que abandonou o emprego com 40 anos, comprou um barco e saiu navegando pelo mundo. Ela abdicou da carreira assim que redigiu o próprio obituário e percebeu que não realizara nada de incrível. Eu acabava de completar 29 anos. Mal retornei para casa, imitei a executiva e fiz o meu obituário. Também me frustrei diante do resultado. ‘É…’, refleti. ‘Preciso mesmo alterar o rumo das coisas.’”
Àquela altura, o apagar da década de 1990, a autora possuía um apartamento de dois quartos, estava casada com um securitário e ascendia na publicidade. Queria chutar o balde, mas não dispunha de um plano B. O desejo de escrever ficção apenas se insinuava. Não configurava ainda um projeto.
Em 2001, os ventos finalmente mudaram. A amiga e diretora Fernanda Elmôr convidou Gonçalves para ajudá-la no roteiro do curta documental Conexão Caribe. O filme retratava um bar de São Paulo em que imigrantes da América Latina se reuniam com a intenção de dançar salsa, o arrebatador ritmo de Cuba. “Antes de começar o roteiro, resolvi pesquisar sobre o povo caribenho na livraria Fnac, hoje desativada”, recorda a escritora. “Enquanto fuçava uma das prateleiras, avistei Bahia de Todos-os-Santos: guia de ruas e mistérios.” Publicado em 1945, o livro de Jorge Amado traça um perfil afetivo de Salvador. A romancista abriu o guia despretensiosamente e logo se impressionou com o prefácio: “Quando a viola gemer nas mãos do seresteiro […], não tenhas, moça, um minuto de indecisão. Atende ao chamado e vem. A Bahia te espera para sua festa cotidiana.” Mais adiante, a autora esbarrou num trecho em que Amado descrevia a Revolta dos Malês, exaltava o líder Pacífico Licutan e sugeria: o conflito poderia render “um grande romance”.
As palavras do baiano incendiaram Gonçalves, que as enxergou como uma provocação. Ela agora sentia um anseio irrefreável de explorar Salvador, onde nunca pisara, e se inteirar melhor do levante muçulmano. Em Um defeito de cor, a escritora aborda o episódio da livraria no prólogo e afirma que o considera uma autêntica serendipidade. Ou seja: um fato casual que só ganha importância se quem o vivencia estiver preparado para notá-lo e valorizá-lo.
A romancista perseguiu o rastro de Licutan e dos demais rebeldes em sebos, bibliotecas e alguns sites. No decorrer de quase um ano, com perseverança, juntou um material significativo acerca de um motim que desconhecia completamente. Em janeiro de 2002, tirou quinze dias de férias e voou para Salvador. Depois de zanzar pela cidade, pegou uma balsa e saltou na Ilha de Itaparica. Lá se encantou por uma casa desocupada, que exibia lindos jardins, varandas amplas, portas de vidro e um mangueiral. “Eis meu novo endereço”, pensou.
Tão logo desembarcou em São Paulo, tomou uma série de providências radicais. Terminou o casamento, que andava balançando, desmanchou a sociedade na agência e vendeu o apartamento com toda a mobília. Em março de 2002, acomodou o que restou dentro do carro e partiu rumo à Bahia. No trajeto, passou por Três Corações para se despedir dos pais. Iria alugar a casa avarandada de Itaparica, se manter com o dinheiro do imóvel vendido e tentar parir um romance sobre a Revolta dos Malês. “Achei o guia do Jorge Amado numa data especial: 13 de janeiro de 2001”, conta a autora. “Treze é meu número da sorte. Um número auspicioso, que abre caminhos e traz renovação.” O motivo da crença? “Nasci em novembro de 1970, numa sexta-feira, 13.”
A sócia compreendeu o gesto corajoso de Gonçalves. “Me assustei um pouco, claro, mas encarei a situação numa boa e segui em frente. A Ana já manifestava algum incômodo com as obrigações da agência. Nada mais justo que procurasse alternativas. Infelizmente, nós perdemos contato. Nem assim deixei de estimá-la. Não há ressentimento nenhum de minha parte. Ela continua uma querida.” A publicitária diz não acompanhar o mercado literário. “Sério que a Ana lançou um romance? Não sabia! O livro está fazendo sucesso? Que espetacular! Então a minha velha parceira conseguiu… Qual o título da obra? Tenho que ler!”
Os familiares da escritora também aceitaram a audaciosa resolução. “Fiquei inseguro? Fiquei! Não vou mentir”, admite Ivan. “E se a menina desse com os burros n’água? Largar a agência… Vender o apartamento… Morar sozinha na Bahia… Qualquer pai se preocuparia. Acontece que sempre confiei na Ana. Ela é responsável. Não mete os pés pelas mãos. Por isso, a confiança rapidamente superou os meus receios.”

Cinco meses depois de encontrar o guia de Salvador, a romancista inaugurou um blog pessoal, o Udigrudi. No princípio do século XXI, os diários virtuais seduziam uma quantidade cada vez maior de internautas. Vários ficcionistas jovens – como Joca Reiners Terron, Daniel Galera, Clara Averbuck e João Paulo Cuenca – se convertiam em blogueiros para aprofundar os laços com os leitores. De início, Ana Maria Gonçalves tinha um blog meramente profissional. “Eu buscava estratégias inovadoras de comunicação que pudessem gerar lucros à minha agência.” Em meados de 2000, porém, a autora descobriu uma comunidade digital que debatia copyright livre, software de código aberto, mídias sociais e outros temas disruptivos para a época. “Nos papos com o grupo, concluí que a revolução tecnológica daquele momento iria virar o planeta do avesso. Participar dela simplesmente por razões comerciais não me agradava.”
Foi assim que, em 20 de junho de 2001, a romancista criou o Udigrudi: “Bem, cá estou com um blog nas mãos e mil ideias na cabeça.” A afirmação parafraseava o famoso lema do Cinema Novo (“uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”), atribuído à verve do baiano Glauber Rocha, embora o diretor carioca Paulo César Saraceni se proclamasse o verdadeiro inventor da máxima. O nome do diário eletrônico também espelhava a efervescência dos anos 1960. Glauber cunhou a expressão “udigrudi” para abrasileirar e esculhambar a palavra underground. O neologismo mordaz sintetizava o movimento contracultural dos cineastas Rogério Sganzerla, Julio Bressane, Neville d’Almeida, Ozualdo Candeias e Andrea Tonacci, que não se julgavam cinemanovistas.
No primeiro texto do blog, Gonçalves apregoava a intenção de utilizar a plataforma para expor “as coisas” que sentia e esmiuçar a “vida tupiniquim”, mas “tomando o extremo cuidado de não ser ufanista”. O diário virtual, que perdurou até 2 de outubro de 2003, acabou se revelando uma miscelânea. A autora compartilhava declarações de personalidades, anedotas, charadas, estudos científicos e manifestos estéticos. Reproduzia matérias de jornais ou trechos de romances e ensaios. Comentava o programa Big Brother Brasil, elaborava listas divertidas e palpitava sobre política. Disseminava curiosidades singelas ou maliciosas, do tipo “existem setenta sextilhões de estrelas no céu” e “aprenda como dizer pênis em 29 idiomas”. Propagava letras de canções, posts de blogs alheios e versos de poetas consagrados. Também difundia crônicas, poesias e contos próprios, sem jamais revisá-los, conforme alertava.
Se sobrasse tempo, a romancista que atualmente passa longe das redes sociais ainda produzia artigos para revistas online, caso da extinta NovaE. “Eu atraía um público reduzido na internet, cinquenta ou sessenta leitores por dia, só que ativos, inteligentes e fiéis. Muitos fãs se tornaram amigos.” Ela acredita que o apoio dos seguidores a encheu de coragem e segurança para conceber Um defeito de cor. “Por tabela, o compromisso de blogar com regularidade me disciplinou como escritora.”
Em janeiro de 2002, quando tirou férias e visitou Salvador, Gonçalves noticiou o passeio no Udigrudi, diretamente de um cibercafé baiano. “Gente, não sei dizer o que é isto aqui, mas é mágico… É lindo!!!”, comemorou. Na mesma postagem, um poema de nove estrofes confidenciava as expectativas da viajante em relação àquela terra:

Quero da Bahia não apenas a fala doce
O abraço cordial, o beijo roubado em festa no Pelô
Não quero apenas as cores e vozes do Mercado
No leva-traz do Elevador Lacerda
Não quero apenas sentir o desejo
Nos corpos de capoeiristas tomados pelo berimbau
Da Bahia […], quero a desesperança de depois da festa
As histórias ladeira abaixo
O dente que dói na boca do lixo.

Os três meses iniciais da autora em Itaparica privilegiaram o ócio. Ela pegava conchinhas nas praias da ilha, curtia banhos de mar ou de chuva, apreciava o crepúsculo e caminhava sem direção. Só interrompia a vagabundagem para blogar e ler. “Um sonho!”, recorda. “Pena que, do nada, apareceu uma dor absurda na batata da minha perna. Consultei um médico, que logo me diagnosticou: ‘Mudança de hábito… Você usava muito salto alto. Agora vive andando descalça. O organismo estranhou.’”
Após o breve período sabático, a romancista intensificou as apurações sobre a Revolta dos Malês e as expandiu para mais tópicos associados à negritude. Gradativamente, se apaixonou por Luiza Mahin. Resolveu, então, transformar a africana na protagonista do livro que escreveria. A rebelião dos muçulmanos deixaria de ser o assunto principal e viraria um dos inúmeros acontecimentos históricos que a narrativa pretendia resgatar. Como a biografia de Mahin está abarrotada de pontos cegos, Gonçalves julgou melhor preencher as lacunas não somente com a imaginação, mas também com a trajetória de outras negras que lhe chamaram a atenção durante a pesquisa. Kehinde nasceria, portanto, do amálgama entre a mãe de Luiz Gama e diversas escravizadas que habitaram o país no século XIX.
“A casa de Itaparica tinha uma parede imensa, que atravessava a sala e um corredor”, lembra a autora. “Certo dia, comprei cem folhas de sulfite e grafei um ano em cada uma delas: 1801, 1802, 1803… até 1900. Fixei os papéis na parede e montei uma espécie de mural. Dividi cada folha em três colunas.” A primeira coluna agregava dados sobre Luiza Mahin e as mulheres que iriam originar Kehinde. A segunda juntava elementos que serviriam para compor os demais personagens. Já a terceira elencava fatos que marcaram o Brasil e o resto do mundo no ano em questão. “O mural, inteiramente manuscrito, organizava e resumia toda a minha pesquisa, entende? Lógico que, com o tempo, precisei acrescentar uns anexos. Se a sulfite de 1834 ou 1847 lotasse de anotações, ganhava um puxadinho.”
A romancista pesquisava basicamente em português. “Fui rastreando os temas de modo intuitivo, sem nenhuma metodologia acadêmica. Eu nunca havia encarado nada parecido. Era bem inexperiente como pesquisadora.” No fim de Um defeito de cor, Gonçalves apresenta uma bibliografia com 52 livros. Entre os títulos, constam trabalhos do folclorista Luís da Câmara Cascudo, dos historiadores Alberto da Costa e Silva, Sérgio Buarque de Holanda, João José Reis e Kátia de Queirós Mattoso, dos sociólogos Roger Bastide, Florestan Fernandes, Gilberto Freyre e Reginaldo Prandi, da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha e do etnólogo Pierre Verger. Apenas cinco romances figuram na lista. Os que se destacam são Viva o povo brasileiro e A casa da água, lançado pelo mineiro Antonio Olinto em 1969. O volume abre uma trilogia sobre o percurso de ex-escravizados e seus herdeiros no continente africano. A série – que prossegue com O rei de Keto e Trono de vidro – mereceu elogios da crítica por olhar os negros sem os preconceitos do eurocentrismo e conferir importância às matriarcas.
“Para construir a saga da Kehinde, li as 52 obras da primeira até a última página e consultei mais uma centena, que não coloquei na bibliografia.” A autora também examinou jornais, revistas, dissertações de mestrado, teses de doutorado, cartas de alforria, relações de nomes jejes, iorubás, bantos e fons, mapas antigos, correspondências, testamentos e processos judiciais, além de anúncios que comunicavam a venda ou a fuga de cativos. Ela garimpava boa parte dos documentos na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e em outras instituições de Salvador, como o Arquivo Público do Estado e o Arquivo Histórico Municipal. “Eu saía da ilha uma vez por semana para pesquisar.”
Depois de sete meses em Itaparica, Gonçalves sofreu um assalto e ficou temerosa de permanecer ali sozinha. Instalou-se na capital baiana, onde morou até o começo de 2003, quando encerrou os levantamentos. “Parei à força porque, se dependesse do meu lado perfeccionista, estaria pesquisando ainda hoje.”
À medida que cavava as informações para a saga, a romancista tentava compreender o mercado livreiro. “Selecionei as dez editoras do país que mais admirava e procurei radiografá-las. Apurei como surgiram, em que nichos apostavam, quais priorizavam a ficção e quantas estimulavam autores iniciantes.” Apesar de novata, a escritora almejava dar tiros certeiros na hora de pleitear a publicação do livro.

Os parentes de Ana Maria Gonçalves exibem tonalidades de pele bastante heterogêneas. Uns são pretos retintos. Outros, morenos ou brancos. Nem por isso, nas conversas de família em Ibiá e Porto Ferreira, a questão racial emergia. “Lidávamos bem com nossa miscigenação e não costumávamos debatê-la. Às vezes, um primo da minha mãe – cantor e violonista, negro escuro, politizado – arriscava levantar a lebre do racismo, sem o menor sucesso. Nos colégios em que estudei, também não me recordo de discutirmos o assunto”, conta a romancista. Ela tampouco se lembra de enfrentar discriminações quando criança ou adolescente. “A minha certidão de nascimento me identifica como parda, o que não significava muita coisa para mim naquela fase.”
A autora se enxergou negra somente mais tarde, em São Paulo: “Na Faap, uma faculdade de gente com dinheiro, existiam pouquíssimos alunos da minha cor. A branquitude imperava, mas ninguém me torcia o nariz. Eu, pelo menos, não notava qualquer tipo de animosidade. Percebia, apenas, estar um tanto fora de lugar. Era uma impressão que não rolava no interior. Em Ibiá, todo mundo se conhecia. Os laços comunitários diluíam as tensões e nos davam uma sensação de acolhimento.”
Enquanto trabalhava na capital paulista, a escritora travou contato com pretos conscientes da própria condição, que lhe abriram a cabeça. “Perto dos 25 anos, já me afirmava uma mulher negra. Usava o cabelo solto e não o alisava. Só que meu letramento racial ainda engatinhava. Frequentemente, na esperança de me elogiar, os brancos comentavam: ‘Por que você teima em se declarar negra? Não precisa… Sua pele é clarinha.’ Eu ficava embaraçada. Não sabia rebatê-­los direito. Me faltavam argumentos.”
As pesquisas para o romance acabaram se mostrando um divisor de águas. “Investigar a diáspora africana, o Brasil colonial e a escravidão me fez entender com mais profundidade os meus ancestrais e me afeiçoar deles. A negritude se fortaleceu em mim. Saquei realmente de onde vim e para onde desejava ir.”
Também durante as pesquisas, no esforço de destrinchar as religiões afro-­brasileiras, Gonçalves entrevistou alguns sacerdotes que cultuavam orixás ou voduns. Pôde, assim, se aproximar de Mãe Lindaura, dirigente de um terreiro em Salvador. “Eu a procurei com a finalidade de tirar dúvidas sobre o candomblé da nação ketu-angola. O papo fluiu tão bem que agendei mais um.”
No segundo encontro, a ialorixá jogou os búzios para a romancista. “Vejo que você é filha de Oxum”, cravou a sacerdotisa. A revelação causou espanto. Meses antes, por coincidência (ou não), a autora já havia decidido que Kehinde seria filha de… Oxum! “Daí em diante, estreitei os vínculos com Mãe Lindaura e hoje me considero adepta do candomblé.” Na entrada do apartamento onde vive, a escritora montou um altarzinho que abriga três representações de Oxum. Ela mantém uma quarta escultura em cima da mesa de trabalho. “Não me pergunte como, mas desenvolvi a capacidade de sentir aromas inusitados. Talvez o olfato me faça acessar dimensões mágicas ou algo que o valha. São cheiros agradáveis, nunca ruins. De repente, pesco no ar um odor floral ou terroso, mesmo se não tiver flores nem terra ali.” Caso note um perfume de jasmim, Gonçalves se alegra por acreditar que Oxum o exalou.
O altarzinho reúne, ainda, um Exu Menino, um Oxóssi, uma Iemanjá, um Xangô e uma Maria Padilha, a dama da madrugada. “Exu… O facilitador das comunicações, o mensageiro que possibilita o diálogo entre as divindades e os humanos. Gosto tanto dele…” Sempre que vai ministrar uma palestra, a romancista invoca a proteção de Exu e Nanã, a mais idosa dos orixás, “aquela que nos traz paciência e discernimento”. Por se educar no cristianismo, a autora cresceu com medo dos rituais de matriz africana. “Brinco que pertencia à Igreja Católica Apostólica Romana Mineira. Na infância, vestia roupa de anjinho em procissões, frequentava missas e associava caboclos ou pombagiras às artimanhas do demônio. Queria distância de charuto, atabaque, macumba.”
A escritora – que, no candomblé, ocupa o cargo de ekedi, a zeladora dos terreiros – se desligou do catolicismo durante a pré-adolescência. “Por volta dos 13 anos, li com atenção diversas partes da Bíblia, e nada colou. As histórias me pareceram muito sem graça. Para complicar, o Deus do Velho Testamento se comporta de um jeito extremamente punitivo. Tô fora! Na ocasião, me tornei agnóstica.” Hélia e Ivan, apesar de cristãos ferrenhos, não se opuseram. “Eles respeitam demais a autonomia dos filhos.”
Em vez de falar que se converteu às crenças afro, a autora diz que as reencontrou. “Estavam todas no meu DNA.” Restaram, porém, uns vestígios católicos. No altarzinho do apartamento, os orixás e a Maria Padilha convivem em harmonia com um São Jorge, uma imagem do Espírito Santo esculpida por Ivan e uma Nossa Senhora Aparecida, a santa predileta de Hélia. Se viaja de carro ou ônibus junto dos familiares, a romancista – que não dirige mais – pede o amparo de São Cristóvão, padroeiro dos motoristas. Ela adquiriu o hábito depois de sofrer um acidente com os pais e os irmãos. Em 30 de dezembro de 1990, um domingo chuvoso, os Gonçalves pegaram a BR-262 pela manhã. Pretendiam celebrar o Réveillon no Oeste de Minas. A Parati que Ivan guiava derrapou perto de Campos Altos e capotou. Ninguém se feriu gravemente, à exceção de Hélia, que cortou o rosto, furou o pulmão e perdeu o baço.

Quando decidiu redigir Um defeito de cor, a escritora supôs que liquidaria a fatura rapidinho. “Imaginei que, em seis meses, concluiria o levantamento de informações e colocaria ponto final na saga. Olha o tamanho da ingenuidade…” Mal percebeu o erro de cálculo, tratou de agir como o pianista erudito que toca em pequenos recitais com o objetivo de treinar para o concerto de gala. Ela iria fazer um livro menor enquanto arquitetava o maior.
Ao lado e à margem do que sentes por mim surgiu na Bahia, em 2002. Confessional, a trama oscila entre a autobiografia e a ficção. Não à toa, há quem a classifique de quase romance. A protagonista, que conta a história em primeira pessoa, se confunde com a Ana Maria Gonçalves da época – e não só porque ambas estavam na faixa dos 30 anos, compartilhavam o mesmo prenome e haviam abdicado da publicidade. “Emprestei outras características, bem mais íntimas, à personagem”, explica a romancista. No relato, a Ana mezzo real, mezzo inventada se muda para Itaparica depois de rupturas afetivas. Lá, rememora antigas relações amorosas, projeta uma nova e fica amiga do misterioso Zé. “O livro agrupa uma porção de questionamentos que me afligiam na juventude – sobre o passado, o futuro, as paixões, as escolhas e as imposições sociais.” Ao lado… se assemelha pouco à saga de Kehinde. Um dos escassos pontos em comum é a descrição de tradições e festas populares, como a Coroação de Nossa Senhora, no interior de Minas.
A escritora concebeu a narrativa de 310 páginas durante cinco meses, simultaneamente às pesquisas para Um defeito de cor. Ela mesma bancou a impressão. Encomendou mil cópias no formato de bolso e as vendeu sobretudo pela internet. “A capa exibia uma margarida de papel, em alto relevo. Cada volume trazia uma versão personalizada da flor, que confeccionei e colei sem o auxílio de ninguém.” A tiragem esgotou em noventa dias. “Na verdade, sobraram quarenta ou cinquenta exemplares, mas só guardei dois. Nem sei cadê o resto.” A autora preferiu não reimprimir o romance. “Eu explodia de inquietação. Não via a hora de estrear na literatura. Precisava ter alguma coisa palpável, finalizada, que legitimasse a maluquice de me livrar da agência, do apartamento e de São Paulo. Optei pela edição artesanal exatamente por ser um caminho menos burocrático. Também raciocinei o seguinte: se bater às portas das editoras apenas com Um defeito de cor nas mãos, qual a probabilidade de prestarem atenção em mim e analisarem os originais? Minúscula, né? Agora, caso o mercado constate que não sou tão principiante, minhas chances podem aumentar.
Movida pela conjectura, Gonçalves criou outro blog, o Entrelivros, somente para divulgar Ao lado… O primeiro post saiu em novembro de 2002, e o último, em janeiro de 2003. O diário eletrônico apresentava depoimentos da publicação recém-lançada. Sim, o romance – e não propriamente a romancista – é que trocava ideias com os leitores: “Hoje […] a Ana passou quase o dia inteiro fora de casa. Foi à praia. Senti uma saudade enorme do tempo em que me carregava, inacabado e na fase das correções, para a beira do mar. Ficávamos os dois num banco de pedra, onde tinha uma vista maravilhosa da baía […]. Eu não me cansava nem quando a Ana escrevia várias vezes a mesma frase ou o mesmo parágrafo, até que fossem aprovados.”
Em 2006, a autora disponibilizou os treze capítulos da trama num terceiro blog, o 100 meias confissões de Aninha. Ela ainda rejeita a possibilidade de reimprimir a obra. “Melhor deixá-la quietinha. Não me envergonho do livro, mas também não me orgulho. É uma prosa imatura, apressada, que carece de ajustes. O texto ganharia consideravelmente, em termos estilísticos, se sofresse um processo de reescrita. Já a personagem principal… Boba demais! Reescrita nenhuma a salvaria.” Blogueiros ativos na ocasião do lançamento pensavam diferente. “Terminei o livro ontem com uma pontada de perda. Saboreei palavras fragmentadas e frases inteiras como quem degusta um doce muito bom depois de uma dieta rigorosa”, derramou-se Claudia Letti, do Afrodite sem Olimpo. “Vai escrever bem assim lá longe! Que musicalidade! Musicalidade de artista feita!”, reforçou Augusto Vieira, do blog que levava o nome dele.
O geólogo e jornalista Luiz Gravatá é outro que admira o romance. “Um relato excelente, rapaz! Do cacete! Poético, reflexivo, sedutor. Não compreendo as restrições da Aninha…” Morador do Rio desde a adolescência, o baiano de Itabuna tem 82 anos e sempre se referiu à escritora pelo diminutivo afetuoso. Por dominar computadores, assinou uma coluna semanal de informática no jornal O Globo, entre 1996 e 2008. “Eu cobria a área minuciosamente, das especificidades comerciais e técnicas à blogosfera. O Udigrudi, da Aninha, me fisgou assim que apareceu. Era inevitável, portanto, dar notas esporádicas sobre o blog.”
Gravatá logo comprou um exemplar de Ao lado… e, em 16 de junho de 2003, dedicou toda a coluna do Globo à autora. Numa entrevista de meia página, Gonçalves falou do livro e do Udigrudi, além de anunciar que preparava Um defeito de cor – até então, ainda sem título. Uma simpática foto da escritora ilustrava a conversa. Naquele período, o geólogo cultivava fecunda amizade com o humorista, dramaturgo, desenhista e tradutor carioca Millôr Fernandes, falecido em março de 2012.
Depois de ler Ao lado…, Gravatá o indicou para o amigo. “Tome o meu exemplar. Você não vai se arrepender.” O humorista, de fato, não se arrependeu. Por insistência do geólogo, procurou a blogueira em Itaparica. “Ele me ligou do nada, num fim de semana. Claro que, de início, não botei fé. Só podia ser trote”, lembra a romancista. “De repente, um dos intelectuais mais prestigiados do Brasil estava na linha com uma novata e a cobria de elogios por causa de um livrinho independente. Quem iria acreditar?” Millôr criticou um único aspecto da obra – o título. “É invendável!”, sentenciou.
O humorista aproveitou o telefonema e indagou sobre outros planos da jovem. “Contei das pesquisas para Um defeito de cor. Ele se empolgou com o projeto e criou a rotina de me ligar quase todo domingo à tarde.” Foi assim durante uns três anos. “Millôr me estimulava, dava conselhos e tirava dúvidas. Jamais pediu uma migalha em troca. Queria somente acompanhar o desenvolvimento do romance e me ajudar.” À época, o humorista traduzia A Celestina, tragicomédia do espanhol Fernando de Rojas, cuja primeira edição data de 1499. “A tarefa exigia bastante do Millôr, que lia para mim umas partes da tradução em andamento.”
Um pouco sem jeito, a escritora revela as qualidades que o humorista lhe atribuía: “Ele dizia que uma galera extremamente soberba circulava pelo meio literário. ‘Um bando de convencidos. Muitos nunca bolaram um parágrafo que preste e já se julgam o máximo’, reclamava. ‘Você me parece mais low-­profile. Resolveu se meter num desafio homérico, arregaçou as mangas e está tocando o barco com seriedade, sem nenhuma afetação. É bonito de observar.’”
Os dois se conheceram pessoalmente apenas quando a romancista visitou Millôr no Rio, meses depois de estabelecerem o laço telefônico. “Enquanto nos relacionamos, tivemos quatro ou cinco encontros. Eu adorava nossas reuniões. Millôr se comportava de modo tão descontraído que não me intimidava. Era carinhoso e engraçado, mas um tanto pavão. Amava se gabar da memória prodigiosa. Certa vez, no estúdio dele, sugeriu: ‘Vá àquela estante, pegue o livro tal e abra em qualquer página. Me informe o número.’ Eu segui as instruções, e o cara reproduziu de cabeça a página escolhida, sem errar uma vírgula.”

Para escrever Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves saiu da Bahia e se refugiou na casa dos pais, em Três Corações. “O convite partiu de minha mãe: ‘Venha! Assim você poupa o dinheiro do aluguel e das refeições.’” A autora ocupou o maior dos quatro dormitórios que se distribuem pela confortável residência – um imóvel térreo, com quintal arborizado e uma piscininha. “Adotei um horário de trabalho inusitado. Às dez da noite, me trancava no quarto, sentava diante do teclado e varava a madrugada. Raramente folgava. Passei muitos sábados e domingos brigando com as palavras.” No computador, a escritora não usava o Word, popular software de texto comercializado pela Microsoft. Preferia o OpenOffice, um programa gratuito e de código aberto.
Às seis da manhã, quando terminava o expediente, imprimia o que acabara de produzir e acomodava os papéis no chão, fora do dormitório, mas junto da porta, que mantinha fechada enquanto dormia. Hélia apanhava as folhas tão logo pulava da cama e as devorava entre goles de café. Depois, entregava a papelada para Andressa, a filha caçula. A mãe e a irmã da romancista se tornaram, então, as primeiras leitoras da trama. As duas acompanhavam o desenrolar da saga em tempo real, como se vissem uma telenovela.
Naquela etapa do processo, Gonçalves pretendia apenas trazer o enredo à tona. Buscava, por isso, redigir sem amarras. Não se preocupava tanto com o estilo ou a correção gramatical. “Eu permitia que o fluxo da narrativa e a intuição me guiassem.” Caso travasse, apelava para um método curioso na esperança de recuperar o fio da meada: copiava trechos aleatórios de livros, respondia às correspondências atrasadas ou listava afazeres cotidianos. Por razões enigmáticas, o exercício banal da escrita restituía a fluência da imaginação.
A autora diz que escutava todas as observações da mãe e da irmã com atenção, especialmente as de Hélia. “Ela é minha leitora ideal. No fundo, escrevo para agradá-la.” Entretanto, nem sempre acatava o que a dupla propunha. Ambas se indignaram, por exemplo, com a morte de Banjokô, o primogênito de Kehinde. “Matar uma criança de 9 anos?! Que insensibilidade!”, protestou Andressa. “Uma gracinha de menino… Tocava até piano… Jamais pensei que você pudesse ser tão má, Ana Maria!”, reiterou Hélia, antes de avisar: “Corrija o estrago! Vou parar de ler os prints se você não ressuscitar o garoto.” A escritora fincou o pé, e a ex-costureira cumpriu a ameaça. “Fiquei brava de verdade”, garante Hélia, com um tom de voz levemente pesaroso. “Mas, devagarinho, entendi que a morte do Banjokô se justificava. A Kehinde precisava enfrentar aquela perda para adquirir resiliência. Minha zanga abrandou e retomei a leitura.”
A romancista ainda conserva o hábito de trabalhar entre as dez da noite e as seis da manhã. Só que já não fuma nem necessita de silêncio absoluto, como na casa dos pais. Ela superou as três décadas de tabagismo em 2020 e hoje, durante as jornadas tardias, costuma ouvir gravações de dois ruídos que considera apaziguadores. Um é o da chuva. O outro é o das máquinas de costura, que a faz se lembrar da mãe.
Gonçalves acabou a primeira versão do romance no finzinho de 2003. Levou praticamente um ano para concluí-­la. Impresso em sulfite, na fonte Times New Roman 12, o texto somava 1,4 mil páginas. Kehinde não narrava a saga. Uma voz onisciente conduzia o enredo na terceira pessoa. O relato tampouco estava dividido em capítulos. Estendia-­se pela imensidão de folhas sem qualquer interrupção.
Com o intuito de descansar, a escritora viajou para o Rio de Janeiro. Encadernou os originais do épico antes do voo e, mal desembarcou do avião, deixou o calhamaço no estúdio de Millôr Fernandes. Eram quatro volumes. Ele leu todos. De quebra, corrigiu o português, apontou os erros de lógica e sublinhou os vícios de linguagem com uma canetinha vermelha.
No tradicional restaurante La Fiorentina, o humorista deu a sentença à pupila: “Você é talentosa e inventou uma história incrível, mas por ora não tem um livro. Volte para Minas e recomece.” No jantar, Millôr tomou o cuidado de se expressar com tato e gentileza. Mesmo assim, a romancista acusou o golpe. “Morri de raiva! Cogitei desistir de tudo e regressar à publicidade.” Também aventou soltar os cachorros em cima do humorista. “Por sorte, o bom senso reinou e me recolhi à minha insignificância.”
Depois de digerir o veredito, a autora respirou fundo, encarou novamente a saga e a reescreveu dezoito vezes no intervalo de dois anos. Da sexta versão em diante, Kehinde assumiu o papel de narradora. O romance ganhou capítulos e perdeu mais de quatrocentas páginas. “Suei para eliminá-las. Com dor no coração, tirei as intrigas paralelas que me encantavam, mas que realmente atrapalhavam a fluidez da trama.”
Vira e mexe, Millôr recomendava à jovem que rejeitasse o beletrismo e valorizasse o linguajar simples, direto, sem firulas – de tal maneira que o enredo imperasse e ocultasse a carpintaria textual. “Quando você sentir que um trecho está muito bem escrito, trate de deletá-lo”, preconizava o humorista. “Geralmente, as frases lapidares afagam a nossa vaidade e destroem o livro. Cubra o ego, Ana Maria! Evite deixá-lo de fora.”
Foi também por sugestão do mestre que a escritora decidiu contar a saga na ordem cronológica e arejá-la com subtítulos. “Facilite a vida dos leitores”, clamava Millôr. “O romance já contém uma porção de episódios históricos, conceitos religiosos, descrições e reviravoltas. Se você fugir da linearidade e não botar uns respiros nos capítulos, vai complicar excessivamente a coisa.”
Outra caraterística fundamental da narrativa é a ausência de diálogos. “Eu não conseguia redigi-los. Tentei um bocado e naufraguei. Só a Kehinde conquistou uma dicção própria. Os demais personagens ficavam todos com a mesma voz. Um horror!”, afirma a romancista.
Na saga, Gonçalves nunca emprega as palavras “escravizado” ou “escravizada” para se referir àqueles que amargavam o cativeiro. As regras contemporâneas do politicamente correto avalizam os dois termos e recusam “escravo” ou “escrava”, muito comuns no livro. “A Kehinde vivia em pleno século XIX. Não podia se curvar às contingências linguísticas de agora”, pondera a autora. Por motivo idêntico, a protagonista diz “crioulo”, “crioula”, “mulato” e “mulata”, designações igualmente condenadas na atualidade. Durante o século XIX, aliás, “crioulo” não soava tão pejorativo. O vocábulo definia os descendentes de africanos nascidos no Brasil. Quanto às expressões “negro”, “negra”, “negrinho” e “negrinha”, Kehinde as utiliza apenas cinco vezes com o sentido racial. Ela prioriza os substantivos “preto”, “preta”, “pretinho” e “pretinha”.
Para driblar os anacronismos, a escritora também conferiu a origem de cada palavra-chave do épico. “Recordo que suprimi ‘maquiagem’ depois de constatar que a dicionarizaram somente no século XX.” Uma infinidade de termos afro – extraídos do iorubá, eve-fon, hauçá e quicongo – se espalham pela obra. A romancista traduz a maioria deles em notas de rodapé.
No final de 2005, Gonçalves chegou à versão derradeira do livro. “Percebi que a narrativa iria piorar caso houvesse novas reescritas. Gosto de reescrever, mas é necessário saber a hora de parar.” Ela não guardou nenhuma das versões anteriores. Num primeiro momento, a saga se chamava Defeito de cor. O artigo indefinido só despontou mais tarde. “Que tal Um defeito de cor?”, palpitou Millôr. “Não parece melhor?”
Quando arrematou a trama, a autora mergulhou num profundo vazio. As centenas de personagens que a rodearam por uma eternidade saíram do palco e se calaram. “Me defrontei com um luto pesado. Todo aquele povo que tagarelava na minha cabeça se recolheu. Achei que não suportaria o silêncio.” A escritora idealizou um número tão vasto de personagens porque almejava exprimir a diversidade dos pretos que circulavam pelo Brasil e pela África no século XIX. “A escravidão anulava os indivíduos. O senso comum enxergava os cativos como uma grande massa homogênea, uma multidão sem rosto, cultura, passado, anseios ou sentimentos. No romance, quis percorrer o caminho oposto. Cada negro do livro é absolutamente particular.”
À medida que escrevia, a romancista procurava imaginar as feições dos personagens. “Até hoje, associo a fisionomia da Kehinde à de uma das meninas retratadas pelo artista paulistano Vik Muniz na série Crianças de açúcar.” O ensaio visual de 1996 exibe filhos de trabalhadores rurais caribenhos. A protagonista da saga cresceu, acumulou fortuna, gerou herdeiros e se aproximou dos 90 anos, mas a autora ainda a vê como uma garotinha.

“Não vou ler nada. Confio em você”, anunciou Millôr Fernandes quando Ana Maria Gonçalves lhe apresentou a última versão do romance. Ele já ouvira pelo telefone vários trechos que a pupila reescrevera. “Leia uns pedaços da história para mim”, pedia à jovem nas conversas de domingo. “Se você engasgar em alguma palavra, corte sem dó. É sinal de que está sobrando.”
A escritora levou os originais pessoalmente até o estúdio de Millôr. Logo após se recusar à leitura, o humorista fez uma ligação: “Querida Luciana, tudo em cima? Vou te encaminhar a moça que acabou de terminar aquele livro esplêndido. Cuide bem dela. Do contrário, nunca mais trabalho com você.” Mal desligou, sacou 100 reais do bolso, os entregou à romancista e ordenou: “Pegue um táxi agora!” A neófita conheceu, assim, uma das principais executivas do mercado livreiro, a carioca Luciana Villas Boas. “O Millôr publicava pela Record. Por isso, costumávamos nos encontrar”, conta a diretora editorial do conglomerado à época. Num dos encontros, o humorista mencionou “a saga de quase mil páginas” que uma principiante mineira teimava em redigir: “Você precisa ler. É um assombro!” A diretora não se animou: “Mil páginas? De uma estreante? Ficou louco, Millôr? Onde arranjarei tempo para enfrentar o catatau?”
Semanas depois do encontro, o telefonema abrupto do humorista desarmou Villas Boas – pelo menos, parcialmente. A executiva não só recebeu a autora como resolveu espiar o calhamaço. “Pensei: vou olhar umas cinquenta páginas apenas para não deixar o Millôr sem um parecer mais abalizado. Eu pretendia me esquivar com bons argumentos: ‘De fato, meu amigo, não posso bancar o livro por causa disso, disso e disso.’ Ele dificilmente me recomendava alguém. Se estava insistindo naquela novata, merecia uma atenção especial.”
Para surpresa de Villas Boas, o relato a enfeitiçou: “O Millôr tinha razão. É um projeto ambiciosíssimo. A prosa límpida e fluente, a trama engenhosa, os personagens complexos e magnéticos, o pano de fundo histórico, a percepção aguçada de como os escravizados e os escravocratas se relacionavam com o mundo, tudo sensibiliza o leitor e o impede de abandonar o romance. A Ana Maria não despejou as fichas numa empreitada qualquer. Ela realmente se esforçou para construir um épico negro inigualável. Não há nada similar na literatura brasileira.”
Quando soube que a diretora planejava publicar a narrativa, Sergio Machado – presidente da Record – se opôs. O grupo lançava ficções de 250 a 300 páginas, em média. Seria arriscado apostar num produto três ou quatro vezes maior. A impressão sairia uma fortuna. “Péssimo negócio”, decretou Machado, que morreu em julho de 2016.
Perante a insistência da executiva, o presidente cedeu, mas alertou: a empresa não investiria um centavo além do habitual no marketing do livro. Já bastavam os gastos astronômicos com papel e gráfica. “Perguntei à Ana Maria se existia a possibilidade de cortar mais algumas partes. Ela avaliou que não. Suspirei um tanto apreensiva e respondi: ‘Pois bem… Seja o que Deus quiser…’”, rememora Villas Boas. Em maio de 2006, a Record colocou Um defeito de cor nas livrarias. Cada exemplar custava 79,90 reais. Hoje, sai por 109,90 reais, sem os eventuais descontos.
A escritora ganhou um pequeno adiantamento de direitos autorais: “Nem me lembro da quantia. Só recordo que não dava para muita coisa.” Villas Boas confirma que se tratava de “um valor irrisório” – algo em torno de 2,5 mil reais. À época, contudo, Gonçalves festejou a remuneração. “[A editora vai] me enviar o cheque, que vou fotografar e mandar enquadrar, como um amuleto, a ‘moedinha número 1 do Tio Patinhas’”, relatou num bilhete para o geólogo Luiz Gravatá.
Depois de resistir um pouco, Millôr topou fazer a orelha do livro. “Ele temia me prejudicar se aceitasse o convite”, revela a autora. O humorista dizia colecionar detratores. “O meu aval público jogará contra você”, explicou. A romancista ignorou o prenúncio, e a orelha resultou tão elogiosa quanto divertida: “Um defeito de cor está entre os melhores que li em nossa bela língua eslava. [O épico] não tem hausto, parada pra respirar. Desmintam-me, por favor.” A página que Millôr assinava semanalmente na revista Veja reproduziu o texto em maio de 2006, com uns acréscimos ainda mais laudatórios: “Entre os cem melhores? Que exagero é esse, rapaz? Entre os dez. Te cuida, Saramago!”

O aplauso do humorista não jogou nada contra e acabou favorecendo Ana Maria Gonçalves. A primeira edição da saga, com 3 mil cópias, esgotou rapidamente graças à exaltação na Veja, acredita Luciana Villas Boas, que se afastou da Record há doze anos e agora é agente literária. Em termos comerciais, depois do boom inicial, o livro sempre se comportou de maneira estável. Raramente atraiu legiões de compradores numa só tacada, mas também nunca perdeu força. O best-seller Torto arado, de Itamar Vieira Junior, outro romance que se debruça sobre a negritude, vendeu 828 mil unidades desde que a Todavia o lançou, em 2019. Já as peripécias de Kehinde precisaram de dezoito anos para suplantar a marca dos 150 mil exemplares. “Um defeito de cor tem saída muito constante e superior à de uma parcela considerável das ficções nacionais. É um long-seller”, resume a editora executiva Livia Vianna, que hoje zela pelo título na Record.
Em 11 de maio de 2006, pouco antes de a Veja publicar a apologia de Millôr, Sérgio Rodrigues saudou o épico. O crítico e romancista nem sequer terminara de ler “o tijolaço” quando se pronunciou. “Quis dar em primeira mão a boa notícia de que a literatura brasileira ainda consegue provocar surpresas”, escreveu num site relevante da época, o NoMínimo. O Prosa & Verso – extinto caderno semanal de O Globo – também celebrou a novidade. No dia 24 de junho de 2006, o repórter André Luis Mansur entrevistou Gonçalves e resenhou o livro. Sem camuflar o entusiasmo, anunciou que o “romance histórico de grande qualidade” nascia clássico. Ele avalizou o estilo “dinâmico e envolvente” da narrativa, além de glorificar “a pesquisa profunda” que a sustentava. No entanto, fez duas previsões que não se realizaram: disse que o relato seria adaptado para outras mídias e traduzido em “muitos idiomas”.
Até o momento, a saga continua restrita à seara literária. Em 2013, a Globo adquiriu os direitos da obra e cogitou transformá-la numa série de cinquenta capítulos, que passaria às 23 horas. Uma equipe de oito profissionais, liderada pela roteirista Maria Camargo, esquadrinhou o livro por dois anos e meio. O historiador Nei Lopes e o escritor Paulo Lins, que se destacou com o romance Cidade de Deus, integravam o time. Durante a pandemia, quando a série estava na redação final, a emissora a suspendeu. “Era uma tarefa descomunal, talvez cara demais para as condições atuais do mercado. A produção demandaria um elenco gigantesco, locações na África e uma reconstituição detalhada do século XIX”, afirma Camargo. “De qualquer modo, espero que, cedo ou tarde, Um defeito de cor ganhe uma adaptação à altura. A Kehinde merece.” Em novembro de 2023, os direitos comprados pela Globo expiraram, e a empresa não os renovou.
A monumentalidade também dificulta que a saga ultrapasse as fronteiras do país. Traduzi-la exige um esforço e um gasto de dinheiro que as editoras não parecem interessadas em despender. Por enquanto, somente Cuba encarou o desafio. A versão caribenha é de 2008 e decorre do Prêmio Casa de las Américas, conquistado pela autora na categoria que contempla apenas ficcionistas, poetas ou ensaístas do Brasil. Lêdo Ivo, Alberto Mussa, Nélida Piñon e Luiz Ruffato figuram entre os que já receberam a láurea.

Em 2007, por causa do épico, a Universidade Tulane, de Nova Orleans, convidou Ana Maria Gonçalves para se tornar escritora residente no Departamento de Espanhol e Português. Ela participava como palestrante de um curso que discutia as relações da literatura brasileira com a diáspora africana e a escravidão. Alunos da graduação e da pós assistiam às aulas.
Quando a residência semestral terminou, a romancista decidiu permanecer na cidade americana, já que se casara com um professor de Tulane. “Foi uma fase muito rica, em que aprofundei meus estudos a respeito da negritude”, relembra. A autora lia boa parte do tempo. Não raro, dava conferências ou workshops sobre Um defeito de cor em outras universidades dos Estados Unidos, como Stanford e as do Texas, de Michigan, do Kentucky e de Iowa. Também visitava locais que o movimento negro julga simbólicos. Esteve, por exemplo, em Montgomery e Selma, municípios do Alabama que presenciaram aguerridas manifestações pelos direitos civis durante as décadas de 1950 e 1960.
Um episódio que a marcou imensamente ocorreu num festival de jazz. A cantora Irma Thomas interpretava o repertório de Mahalia Jackson diante de uma plateia lotada, em Nova Orleans. “Eu avistei um lugarzinho entre duas senhoras pretas, que abriram espaço e me chamaram para sentar. Mal agradeci, ambas disseram: ‘You are welcome, sista!’” A palavra sista – corruptela de sister (irmã) – emocionou a escritora. “Senti que as mulheres me consideravam uma igual. As negras de lá não usam a expressão sista para se referir às brancas. Naquela tarde de 2007, minha identidade em construção se estruturou de vez. Rejeitei definitivamente as qualificações de mestiça, parda ou morena – eufemismos que ainda empregava – e me reconheci negra com N maiúsculo.”
Em novembro de 2014, depois de romper o casamento, Gonçalves trocou Nova Orleans por Salvador. A segunda temporada na capital da Bahia durou até 2017. A partir daí, a romancista se estabeleceu em São Paulo. O longo período no exterior lhe trouxe mais embasamento teórico e mais confiança para levantar a bandeira da luta contra o racismo. Desde 2010, com maior ou menor frequência, trata do assunto em artigos incisivos que o Portal Geledés, a Revista Fórum, o Intercept e outros veículos eletrônicos costumam publicar. “Elegi as questões raciais como o tema principal da minha literatura e do meu ativismo político”, afirma. Não por acaso, a autora gosta de repetir uma frase que a filósofa e militante Sueli Carneiro proferiu em fevereiro de 2000: “Entre esquerda e direita, continuo sendo preta.”

O meio acadêmico do Brasil também se interessou pelas aventuras de Kehinde. Eduardo de Assis Duarte, professor aposentado de letras na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), assinou o primeiro ensaio importante sobre Um defeito de cor. O educador de 73 anos dedicou parte expressiva do magistério à investigação de ficcionistas, poetas, dramaturgos e pensadores brasileiros que descendem de africanos. Para divulgá-los, ajudou a fundar o Literafro há duas décadas. O portal reúne textos e biografias de autores negros que se espalham por todo o país. O trabalho acerca do livro de Ana Maria Gonçalves saiu em 2009, no volume 1 da coletânea Leituras da resistência: corpo, violência e poder.
Depois do artigo, o romance serviu de mote para uma infinidade de pesquisas. Dissertações de mestrado, teses de doutorado e papers enfocam a trama pelos mais diversos ângulos: os do feminismo, da maternidade, da filosofia, da literatura comparada, da memorialística, da psicologia, da religiosidade, das discussões raciais… Em paralelo, no YouTube, canais como o da jornalista Isabella Lubrano e o do escritor Humberto Conzo Junior já organizaram leituras comentadas do épico. Desde janeiro de 2023, a ex-deputada federal Manuela d’Ávila e o professor de história Júlio César Vellozo oferecem um curso online sobre a saga.
A análise de dez estudos, incluindo o ensaio pioneiro de Assis Duarte, permite elencar, no mínimo, seis aspectos que fizeram Um defeito de cor despertar a atenção da academia:
* O fato de a narradora ser uma preta do Daomé torna o livro muito peculiar. Kehinde não apenas descreve a escravidão pela ótica de quem a vivencia. Ela também observa os eventos políticos, a ordenação econômica e as particularidades culturais do Brasil sob a perspectiva não eurocêntrica dos que estão na camada mais baixa da pirâmide social. A protagonista expõe, ainda, a própria subjetividade. Fala com desenvoltura dos temores, alegrias, tristezas, anseios, reminiscências e paixões que a atravessam. Até 1879, a legislação nacional impedia os negros sem alforria de frequentar a escola. Daí o analfabetismo entre os não libertos atingir a assombrosa taxa de quase 100% na segunda metade do século XIX. Consequentemente, são raríssimos os manuscritos que registram o testemunho de um escravizado. Refletindo o que se passou na realidade, a literatura brasileira não cultiva o hábito de dar voz para cativos. Em meio às poucas exceções, sobressai Úrsula. Trata-se do primeiro romance lançado por uma mulher no país. A negra maranhense Maria Firmina dos Reis o publicou em 1859. Num trecho do livro, uma personagem secundária – a escravizada Susana – assume a função de narradora e denuncia as agruras da servidão. Enfatiza, principalmente, os horrores de cruzar o Atlântico dentro de um tumbeiro superlotado. Nenhuma ficção em língua portuguesa adotara recurso similar até então. Mais de um século depois, Kehinde ampliou significativamente o relato que Susana principiara.
Um defeito de cor subverte as regras clássicas da narrativa épica. “Geralmente, os épicos celebram as façanhas de um herói que simboliza as qualidades de um povo. Na Odisseia, de Homero, Ulisses – o rei de Ítaca – espelha a bravura dos gregos. Na Eneida, de Virgílio, o semideus Eneias se revela o maior dos guerreiros troianos”, explica Assis Duarte. “Já em Um defeito de cor, o herói imaculado cede espaço para uma heroína tão falível quanto qualquer indivíduo. Kehinde tem gestos admiráveis, mas se contradiz, destila preconceitos, manifesta soberba e consolida alianças moralmente duvidosas. A escritora faculta à protagonista o direito de errar. Transforma a personagem numa heroína anti-heroica.” Se a mentalidade racista desumaniza os negros, Gonçalves segue a trilha inversa e humaniza Kehinde até o último fio de cabelo.
* Por destacar a exuberância sociocultural da África, o livro refuta o pensamento ocidental que tira do continente o status de civilização. Em contrapartida, o romance foge do maniqueísmo e não edulcora aquele pedaço do mundo. Sem meias palavras, evidencia os sangrentos jogos de poder na região, a perversidade de certos reis, a escravização dos africanos pelos próprios conterrâneos, a opressão masculina sobre as mulheres e os conchavos da elite local com estrangeiros cobiçosos.
* A saga evita demonizar os brancos. Mesmo os piores escravocratas são capazes de atitudes generosas no decorrer da trama. Um defeito de cor tampouco idealiza os escravizados. Por um lado, os retrata como solidários, engenhosos, intrépidos, resilientes e empreendedores. Por outro, desnuda suas traições e mesquinharias, além das rivalidades entre os pretos naturais do Brasil e os nascidos na África ou entre os muçulmanos e os adeptos das religiões afro.
* O épico não sensualiza em excesso nem animaliza os personagens negros. Rechaça, assim, um estereótipo muito comum. Kehinde exercita a sexualidade ora com hesitação, ora com júbilo e assertividade, mas nunca de maneira ostensiva ou vulgar. A protagonista recusa a “encarnação de um erotismo primitivo e desenfreado”, para usar uma frase da intelectual americana bell hooks.
* A literatura brasileira não costuma associar as afrodescendentes à condição de mães, em parte porque as objetifica demais. “Mata-se, no discurso literário, a prole das mulheres negras. […] Elas quase sempre surgem como infecundas e, portanto, perigosas”, salientou Conceição Evaristo em agosto de 2005, num artigo para a Revista Palmares. Um defeito de cor nada contra a corrente quando ressalta a maternidade de Ke­hinde. Enquanto suporta a perda de dois filhos – Banjokô, o que morreu, e Luiz, o que desapareceu –, a personagem reproduz a experiência de inúmeras mães negras em luto. “O racismo extermina crianças e jovens de ascendência africana desde a era colonial. Lidamos com um passado que se atualiza permanentemente e que assombra qualquer família de pretos ou mestiços no país. Qual seria a história do Brasil se alguma daquelas mães enlutadas a contasse? O romance nos apresenta uma das respostas possíveis”, avalia Fabiana Carneiro da Silva, a professora da UFPB cuja tese de doutorado resultou no livro Ominíbú: maternidade negra em Um defeito de cor.
As críticas negativas à saga normalmente tocam em questões formais. Uns a julgam muito extensa e passível de cortes. Outros acham que a romancista se apressou no desenvolvimento de cenas fundamentais e se alongou no de episódios dispensáveis. Há, ainda, quem sustente que a linguagem simples e pouco figurada empobrece a narrativa. Em 2018, na revista Aletria, periódico trimestral mantido pela Faculdade de Letras da UFMG, o professor Gabriel Estides Delgado desaprovou a “linearidade absoluta” do enredo. Também notou que, às vezes, o épico “descamba para o didatismo exacerbado, algo escolar”, e soa um tanto artificial quando tempera o fictício com situações e personalidades verdadeiras. “Não tiro a razão dos que enxergam problemas na trama”, diz Assis Duarte. “O romance ocupa mesmo a prateleira das obras-primas salpicadas de pequenas imperfeições.”

“Caríssima Ana Maria Kehinde, […] ninguém escreve impunemente Um defeito de cor. Acabo de chegar à última sentença […]. Zonzura é o termo, porque vertigem é branca demais.” O poeta e babalorixá Ruy Póvoas, então docente da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), na Bahia, começou assim o e-mail que endereçou à autora em 18 de fevereiro de 2009. A mensagem comparava o livro com um crochê “magistralmente tecido”, que joga o leitor “numa sala de espelhos”. Póvoas opinava não somente como professor de literatura e representante do terreiro baiano Ilê Axé Ijexá Orixá Olufon, em Itabuna. Posicionava-se, acima de tudo, como tataraneto da nigeriana Inês Mejigã, sacerdotisa de Oxum que enfrentou a escravidão num engenho de Ilhéus.
Em 2009, Gonçalves lutava contra o renitente bloqueio criativo. Os trinta romances que a escritora tentou conceber durante o período de seca exploravam uma gama sortida de temas. Alguns exemplos: as mazelas das mulheres estupradas por militares brasileiros que compunham a missão de paz no Haiti, entre 2004 e 2017; a construção da Estrada Real, que interliga o litoral do Rio à região de Diamantina (MG); a imigração de latino-americanos para os Estados Unidos; os dilemas de um homem trans.
Depois de receber o e-mail, a romancista sedimentou uma frutífera amizade com o babalorixá. Em 2014, quando voltou de Nova Orleans, passou uma semana no terreiro de Itabuna para acompanhar uma festa de Oxalá. Ao longo das celebrações, o pai de santo disse à amiga que Um defeito de cor abrira um portal: “Você o cruzou e usufruiu de todas as benesses que havia do outro lado. Só que o portal se fechou. Não adianta insistir em reabri-lo. Nada se repetirá. Daquela mina, não brotará mais água. No entanto, pela graça dos orixás, a fonte da criação literária nunca cessará de jorrar em você.”
O presságio reverberou, e a autora finalmente se tranquilizou. “As palavras do Ruy contribuíram para me destravar. Eu estava pensando de um jeito infantil. Esperar que as situações se repitam é mania de criança. Meninos e meninas gostam de ver sempre os mesmos filmes porque já sabem como terminam, o que lhes traz certo aconchego.” Pouco a pouco, a escritora compreendeu que poderia desbravar novos meios de expressão. “Saquei que não precisava contar uma história apenas pela via da literatura.” Partiu, assim, para o estudo de outras linguagens e acabou redigindo três peças. (Diversos), sobre relações de casais, e Tchau, querida!, com uma pegada mais política, tiveram somente leituras dramáticas – em 2015 e 2016, respectivamente. O ator Wagner Moura dirigiu a segunda. Por sua vez, o espetáculo Chão de pequenos, que narra a trajetória de jovens abandonados pelas famílias, estreou em março de 2017, no Festival de Curitiba. A Companhia Negra de Teatro se encarregou da montagem. Felipe Soares e Ramon Brant dividiram a concepção do texto com Gonçalves.
Entre novembro de 2019 e janeiro de 2020, o Sesc Pompeia, em São Paulo, acolheu uma quarta investida teatral da romancista, a ópera pop Pretoperitamar, que homenageia o cantor Itamar AssumpçãoA dramaturga Grace Passô e Gonçalves assinam o libreto. A escritora ainda fez dois roteiros cinematográficos – um deles em parceria com o ator Humberto Carrão – e a sinopse de uma série, mas não os ofereceu para nenhum produtor.
Enquanto se aventurava por linguagens diferentes, a autora conseguiu arrematar uns contos e, logo antes da pandemia, findou a primeira versão de Quem é Josenildo?. O romance juvenil de 450 páginas, que se desenrola em 2064, retrata um garoto negro de 13 anos. O personagem frequenta um colégio de elite na capital paulista e desaparece subitamente, mas deixa um bilhete que motiva três linhas de investigação: ou o rapazinho se suicidou, ou fugiu de casa, ou sofreu um sequestro. A metrópole distópica onde o adolescente mora se desligou do Brasil e virou um país independente, governado por uma inteligência artificial. Se Um defeito de cor olha para o passado, Quem é Josenildo? navega pelos mares do afrofuturismo. “Como estou reescrevendo a trama inteira, não sei quando vou finalizá-la”, afirma a romancista.
Ela também elabora com a irmã seis livros infantis sobre duas gêmeas que adquirem poderes mágicos. Outro projeto em execução, um misto de relato pessoal e ficção, aborda as vicissitudes da menopausa. A escritora – que não tem filhos – se percebeu na nova fase em 2020. “Meu ciclo menstrual, sempre tão regular, mudou de repente. Em seguida, pintaram os calores, um fogo interior, uma queimação que me causa suores absurdos. A transpiração abundante e inoportuna encharca tudo: roupa, cabelo, lençol. Parece que o corpo está me traindo.” Depois que os sintomas despontaram, a autora resolveu andar constantemente com um leque e se abanar quando necessário, sem qualquer pudor, como na Portelinha. “Já reparei que usá-lo em público é quase um gesto político. Há muito preconceito contra a menopausa. Por isso, iniciei o livro. Quero botar o assunto na roda.”
A romancista diz que não sofre pressão da Record para lançar mais títulos. “A Ana é contemplativa e detalhista. Possui o ritmo de quem escreve épicos. Não cria nada sem pesquisar e refletir bastante. Eu respeito o tempo dela. Não vejo por que pressioná-la”, argumenta a editora executiva do grupo, Livia Vianna.
Recentemente, Gonçalves leu Um defeito de cor pela primeira vez desde que o terminou. “Me deu vontade de acrescentar umas coisinhas, acredita? E de alterar palavras, frases, pontuações…” A autora encarou a leitura com o intuito de decupar a saga, que vai se transformar em graphic novel. Paulo Lins cuidará do roteiro, e Íldima Lima, das ilustrações. “O romance praticamente não chega às escolas de ensino fundamental ou médio. Por ser enorme, fica complicado trabalhá-lo em sala de aula. Daí a ideia de adaptar a história para os quadrinhos, um formato que os estudantes adoram”, explica Vianna.
Em setembro de 2022, paralelamente à edição habitual do livro, a Record colocou no mercado uma versão “de luxo”. Com capa reformulada e 968 páginas, a publicação especial traz um conto inédito da escritora (Ancestars) e obras da artista visual Rosana Paulino. A ficcionista Cidinha da Silva responde pelo texto da orelha, que substitui o de Millôr Fernandes.
O triunfo do épico ainda não garantiu independência financeira à romancista. Ela recebe trimestralmente 10% de direitos autorais sobre as vendas. Também fatura com oficinas literárias e cursos. Para dar palestras ou falar em rodas de conversa, debates, seminários e feiras, cobra 3 mil reais, no mínimo. Excepcionalmente, pode se apresentar de graça. No ano passado, participou de pelo menos dezoito eventos, que aconteceram em seis estados: Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Sergipe. Compromissos internacionais dificilmente aparecem. “Eu gostaria de ir à África, mas por enquanto não calhou. Nunca estive lá.”
De acordo com os “cálculos precários” da autora, Um defeito de cor lhe rendeu o suficiente para comprar um apartamento de dois quartos, equivalente àquele de que se desfez quando decidiu enveredar pela literatura. “Investi tudo no romance e, até agora, empatei o dinheiro. Não tive lucro.” Em vez de tentar adquirir outro imóvel, a escritora gasta as ocasionais economias com livros. “Sou compulsiva… Caso esbarre numa obra que me interesse, sai de baixo.” Sua biblioteca já totaliza cerca de 5 mil volumes.

Às 23h30 do último dia 12 de fevereiro, uma segunda-feira, Ana Maria Gonçalves adentrou o Sambódromo do Rio no topo de um carro alegórico que também abrigava o professor Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania. Felicíssima, de cabelos soltos, a romancista trajava uma fantasia com mangas bufantes, dançava de braços erguidos e cantava o samba-enredo da Portela: Saravá, Kehinde!/Teu nome vive!/Teu povo é livre!/Teu filho venceu, mulher!/Em cada um de nós, derrame seu axé. O desfile da escola não só enalteceu como recriou Um defeito de cor. Se no épico a protagonista redige uma correspondência para Luiz, na avenida os papéis mudaram: o filho tomou as rédeas da narrativa e escreveu uma resposta à mãe. Foi a carta dele que os 2,8 mil integrantes da Portela, distribuídos em 24 alas, encenaram diante de uma plateia muito receptiva. Na missiva, cujo teor o samba explicitava, o remetente se dizia saudoso da progenitora e a exaltava: O teu exemplo me faz vencedor.
Os carnavalescos André Rodrigues e Antônio Gonzaga escolheram fundir abertamente Kehinde com Luiza Mahin e o filho desaparecido com Luiz Gama, associações que o livro estabelece de maneira mais sutil. No desfile, ainda subvertendo o romance, houve um momento em que a heroína e o abolicionista se reencontraram. O abraço dos dois sintetizou lindamente as diferenças entre a trama original e a do Sambódromo.
O ministro – um dos intérpretes de Luiz Gama na Marquês de Sapucaí – compartilhou a passarela com outras personalidades afrodescendentes: Lázaro Ramos, Conceição Evaristo, a jornalista Flávia Oliveira, a atriz Taís Araújo, o ator Antonio Pitanga, o ex-jogador de futebol Cafu e o humorista Paulo Vieira. Dezesseis mães negras que perderam filhos para a violência, incluindo a da vereadora Marielle Franco, cruzaram a avenida no último e tocante carro alegórico. Ora atônitos, ora deslumbrados, os pais e os irmãos da autora desfilaram junto de 46 parentes e amigos. Por enfrentar alguns problemas técnicos durante a exibição de 67 minutos, a Portela ficou em quinto lugar na classificação geral. Levou, contudo, o mais antigo prêmio extraoficial do Carnaval fluminense, o Estandarte de Ouro, como melhor escola e pelo melhor enredo.
Meses depois de lançar a saga, a escritora recebeu um aviso de Mãe Lindaura, sua conselheira espiritual: Xangô, o orixá da justiça, queria o romance. A autora não ousou indagar por quê. Simplesmente pegou um exemplar e anotou numa das páginas iniciais: “Este livro é para Xangô.” Embrulhou o volume com zelo e, tão logo quanto possível, o entregou à Mãe Lindaura em Salvador. Ela o depositou no assentamento da divindade, sem a presença da romancista. “Pedido de orixá a gente não questiona”, afirma Gonçalves. “Hoje enxergo Um defeito de cor como uma graça, um valioso presente que ganhei da minha ancestralidade. Por razões que desconheço, meus antepassados resolveram me brindar com a história da Kehinde, que é também a deles. Eu apenas fiz jus à dádiva, já que trabalhei intensamente para colocar a narrativa de pé.”
(revista piauí)

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

De patas pro ar

A aposentadoria do labrador Guapo, cão de busca que trabalhou nas inundações gaúchas

Valente, fiel, obstinado, excepcional. Em 4 de julho, durante uma cerimônia de meia hora na Câmara Municipal de Santa Maria (RS), não faltaram elogios para o homenageado, um bombeiro de características incomuns. “Lembraremos eternamente de ti”, discursou Manoel Badke, vereador do União Brasil e presidente da Casa. Enquanto acompanhava a celebração, o merecedor das loas às vezes bocejava e fungava. Outras vezes, se deitava no carpete azul do plenário ou coçava a barriga sem o menor recato. Não bastasse, ousou dispensar a farda e compareceu à solenidade praticamente nu. Vestia apenas um colete vermelho.
O herói de Santa Maria é um labrador retriever de 10 anos e 3 meses, pelagem marrom, focinho grisalho e 30 kg. Gaúcho da fronteira, tem antepassados uruguaios. Por isso, chama-se Guapo, adjetivo que, tanto em espanhol quanto em português, significa bonito, elegante ou corajoso. Ele integra o 4º Batalhão de Bombeiro Militar e, desde 2016, trabalhava como cão de busca. Procurava mortos em desabamentos, enchentes e deslizes de terra ou vítimas desaparecidas de homicídios. Agora, depois de muitas façanhas, está se aposentando. Daí o aplauso dos parlamentares.
Nas centenas de missões em que atuou, Guapo sempre contou com o auxílio de outro bombeiro, igualmente gaúcho, só que de 46 anos e 1 mês, pele branca, cabelos castanhos e 90 kg. O primeiro-sargento Alex Sandro Teixeira Brum se afeiçoou por cachorros ainda menino. Na época, morava perto de Santa Maria, em Dilermando de Aguiar, onde a família tocava um armazém de secos e molhados. “Vivíamos num sítio, e nosso vizinho criava gado. Eram 160 cabeças. Para complementar o orçamento doméstico, meu pai cuidava do rebanho com o apoio de dois vira-latas. Observar a camaradagem daquele trio me comovia.”
Em 1998, à beira dos 20 anos, Brum ingressou no Exército e logo se incumbiu de uma tarefa que o fascinou: amestrar os cães encarregados de farejar drogas ou vigiar propriedades. “Eu treinava principalmente rottweilers e pastores-alemães”, recorda. Mais tarde, trocou as Forças Armadas pela Polícia Militar e acabou no Batalhão de Choque. Quando saiu de lá, resolveu combater infrações contra a fauna e a flora. Migrou para a Polícia Militar Ambiental, que o acolheu por quase uma década.
Veio, então, o desejo de se tornar bombeiro. “Percebi que gostaria de lidar com outro tipo de cachorro: os de busca, resgate e salvamento.” O curso preparatório de 45 dias exigia que os alunos dispusessem de um cão ágil e tranquilo. Como não possuía nenhum do gênero, o futuro bombeiro pegou Guapo emprestado de um amigo. A dupla se deu tão bem que Brum comprou o labrador assim que o curso terminou.
Ao longo dos meses seguintes, o militar continuou o adestramento de Guapo em casa e no quartel. “Existem cachorros que rastreiam somente humanos vivos. Eles se guiam sobretudo pelo olfato e pela audição. São capazes de ouvir a respiração e o batimento cardíaco de quem estão procurando”, explica o primeiro-sargento. “Já o Guapo se especializou em localizar humanos que morreram. Usa especialmente o faro e consegue notar a diferença entre o cheiro de pessoas e o de galinhas, vacas, porcos, cavalos, tatus…” Para alcançar essa habilidade, os cães treinam com restos cadavéricos de homens e mulheres. “Serve qualquer parte do organismo que exale algum odor marcante: rim, fígado, estômago, placenta ou até um membro amputado. Cabelos, dentes e unhas não funcionam direito”, afirma Brum. Os adestradores adquirem o material em hospitais e nos institutos médicos legais. “Os cachorros, porém, não acessam diretamente os resíduos biológicos. Nós enfiamos tudo dentro de caixas, e os cães se relacionam apenas com os cheiros.”
À semelhança de outros investigadores caninos, Guapo lidava com seu ofício co­mo um jogo, uma brincadeira. A eficácia das buscas dependia bastante de quanto o animal se revelava apto para compreender os sinais do tutor e vice-versa. “Eu colocava o uniforme, e o Guapo já entendia que precisava botar o nariz em alerta.” Assim que a dupla chegava à área de varredura, o primeiro-sargento dava um único comando: “Procura!” O labrador se aprumava de imediato e começava o expediente. Caso descobrisse algo relevante, latia de um jeito específico. O militar averiguava o ponto indicado e recompensava o parceiro com tapinhas, afagos ou palavras de incentivo: “Bah, guri! Excelente!” Não raro, também lançava bolinhas surradas de tênis para Guapo apanhar ou iniciava um cabo de guerra. Só evitava lhe oferecer petiscos. “O malandro é comilão. Não pode engordar.”
O primeiro-sargento ressalta que o labrador nunca enfrentou jornadas exaustivas. “Trabalhávamos, no máximo, por duas horas ininterruptas. Não adianta forçar os cachorros. Eles necessitam de descanso entre os deveres. Do contrário, perdem o prazer de vasculhar.” Brum acrescenta mais uma qualidade às que os vereadores exaltaram em Guapo: a calma. “O bicho não se afobava nos rastreamentos. Examinava cada metro de terreno com atenção, minúcia e vagar. Uma belezinha!”

O cão estreou como detetive no dia 31 de maio de 2016, em Dilermando de Aguiar. Uma jovem sumiu repentinamente, e o labrador recebeu a atribuição de encontrá-la. Havia a suspeita de que o companheiro da moça a matara e escondera o cadáver. Com a colaboração de outros cachorros, Guapo esquadrinhou o sítio que o casal compartilhava. Não identificou nada. A polícia acabou confirmando o crime, mas o homicida nunca esclareceu onde depositou o corpo.
Posteriormente, o labrador participou de pelo menos três missões históricas. Em 2019, viajou para Brumadinho (MG) logo depois que a barragem da Vale se rompeu. No verão de 2022, ajudou Petrópolis quando as chuvas devastaram a região serrana fluminense. Meses atrás, não se acovardou diante das terríveis inundações gaúchas e socorreu o Vale do Taquari. O primeiro-­sargento não sabe dizer quantos mortos Guapo achou durante a carreira. “Foram muitos… Difícil calcular.”
Hoje o cão está vendendo saúde e só vai abandonar a lida por causa da idade avançada (labradores costumam viver entre dez e catorze anos). Sheik, um dos filhos de Guapo, substituirá o pai na corporação de Santa Maria, que agora “emprega” cinco cães de busca. O recém-aposentado continuará morando com a família do primeiro-sargento e, quinzenalmente, visitará um hospital universitário – atividade que realiza desde dezembro de 2017. Ali se deixa acariciar por crianças que sofrem de câncer e adultos que amargam transtornos psiquiátricos. De resto, o veterano bombeiro tomará banhos de açude, comerá rações premium, cairá no sono em plena tarde e, claro, perseguirá bolinhas surradas de tênis.
(revista piauí)

sábado, 1 de junho de 2024

“Envelhecer não significa tirar fotos melhores”

Com 80 anos, Sebastião Salgado rejeita a aposentadoria, prepara uma exposição sobre fábricas soviéticas e conta que já trabalhou como cantor

Há pelo menos quatro décadas, Sebastião Salgado cultiva o hábito de cantar enquanto fotografa. Ô Inácio, ô Inácio/ Tua mãe é minha tiaÔ Inácio, ô Inácio/ Somos da mesma família. Às vezes, o canto irrompe baixinho, quase num sussurro. Outras vezes, sai mais audível, embora não o suficiente para afugentar os retratados. Ô Inácio, ô InácioMuié parida não come/ Ô Inácio, ô Inácio/ Farinha do mesmo dia. Eclético, o repertório de Salgado mescla uma infinidade de composições brasileiras com algumas em inglês, espanhol e francês, idiomas que o fotógrafo conhece bem. Ô Inácio, ô Inácio/ Se ela comê, ela morre/ Ô Inácio, ô Inácio/ Ou a criança não se cria. “Sei todas as canções de memória. São dezenas ou, talvez, uma centena – desde clássicos do Chico, Gil, Caetano e Luiz Gonzaga até modas de viola e músicas folclóricas como a do Inácio, que escutei na roça”, diz o mineiro de Aimorés. Um mês atrás, Salgado inaugurou uma pequena, mas significativa mostra em São Paulo. Organizada pelo Museu da Imagem e do Som (MIS), a exposição – que termina no final de junho – reúne aproximadamente cinquenta fotos inéditas sobre os desdobramentos da Revolução dos Cravos. O levante cívico-militar estourou em 25 de abril de 1974 e derrubou a ditadura que assombrou Portugal durante 48 anos. A rebelião também contribuiu para a independência de Angola, Moçambique e outras colônias lusitanas na África. Muié danada, essa dona MariaQue dorme de noite, que acorda de diaCom a mão lá embaixo, coçando as virilhaSe não fosse os homi, as muié não paria.
O costume de cantarolar no trabalho nasceu de uma necessidade. “O meu ofício exige concentração total. Preciso estar inteiramente conectado àquilo que pretendo registrar. Certas fotos demandam tamanha atenção que me deixam exausto. Tão logo as concluo, tenho que deitar no chão para relaxar”, explica o fotógrafo. Ele acredita que qualquer distração pode impedi-lo de fisgar o “instante decisivo” – o milésimo de segundo em que todos os elementos de uma cena se equilibram e revelam a essência daquela situação, como definiu Henri Cartier-Bresson, outro nome crucial da fotografia. “No início de minha carreira, usava câmeras analógicas com filmes de 36 poses. Era um problemaço”, continua Salgado. “Eu perdia a concentração sempre que o filme acabava. O simples ato de rebobinar a película, retirá-la da máquina, guardá-la e substituí-la já me roubava o foco. Com o tempo, notei que permaneceria concentrado se cantasse enquanto fotografava e prosseguisse cantando no momento de trocar o filme.” O mineiro preservou a cantoria mesmo depois de aderir às máquinas digitais.
Soltar a voz o remete invariavelmente à infância. “A Rádio Cultura, de Aimorés, transmitia um programa de calouros que me fascinava. Os candidatos se apresentavam ao vivo, no estúdio da própria emissora.” Apesar de criança, o fotógrafo participava frequentemente da atração. “Eu me saía bem, viu? Aos 8 anos, tirei até uma carteira profissional de cantor.”
Em fevereiro, quando se tornou octogenário, Salgado protagonizou uma reportagem no jornal The Guardian que repercutiu muito por aqui. De acordo com o diário britânico, o aniversariante iria “se aposentar do campo” (“retire from the field”) e devotar o resto da vida à edição das mais de 500 mil imagens que vem produzindo desde a década de 1970. Parte da imprensa brasileira entendeu – e noticiou – que o mineiro penduraria as lentes em definitivo para virar algo como um curador de si mesmo. “Não é bem assim”, esclarece Salgado. “Vou continuar exercendo a função de fotógrafo. Abdicarei somente dos projetos extensos – aqueles que requerem seis ou sete anos de dedicação. Me parece imprudente que um homem da minha idade assuma compromissos de longo prazo.” Os fãs, portanto, já não devem esperar dele ensaios tão ambiciosos quanto Êxodos, um retrato dos fluxos migratórios que marcaram o fim do século XX, ou Gênesis, sobre ecossistemas que resistem às ameaças da sociedade industrial e seguem intocados. “De agora em diante, priorizarei empreitadas menores”, anuncia. “Se depender de mim, nunca vou parar de fotografar.” Nem de cantar, obviamente.

Os 51 anos de profissão, que levaram o fotógrafo para mais de 130 países, lhe deixaram marcas no corpo. Em 1975, Salgado cobria a guerra civil angolana quando um estilhaço de granada o atingiu. “Foi à tardinha. Eu me encontrava em Luanda, perto de uma fortaleza antiga, a de São Pedro da Barra. Estava com uma tropa de guerrilheiros esquerdistas, que portavam fuzis russos, os célebres Kalashnikov. A gente descansava numa clareira, dentro da mata, onde os combatentes acharam uma bola de pano e começaram um joguinho de futebol. O barulho da pelada despertou a atenção do grupo inimigo, que ocupava a fortaleza. Os caras nos atacaram, e uma das granadas quase arrancou a perna de um guerrilheiro. ‘Não me abandones, pá!’, gritou o jovem para mim. Com a colaboração de outro rapaz, botei o ferido nas costas e fugi. O coitado sangrava à beça. A perna dele ficou presa só na pele. Um negócio tenebroso… Enquanto o pau quebrava, um pedaço de granada se alojou no meu peito. Mais tarde, ouvi do médico que me examinou: ‘Você deu muita sorte. Por um triz, o estilhaço não alcançou o coração.’”
Pouco antes, em 1974, o fotógrafo já havia driblado a morte. Ele reportava os conflitos anticoloniais que incendiavam Moçambique e, no Norte do país, descolou uma carona com o Exército português. “Às tantas, nosso caminhão passou sobre uma mina terrestre. Buuum! A explosão matou o pobre do chofer e machucou o oficial que o acompanhava na cabine. Eu viajava em cima da carroceria, totalmente aberta. Por isso, voei longe. Mal aterrissei, percebi uma fisgada na cervical. À época, um médico me avisou: ‘Você vai melhorar logo, mas terá sequelas quando envelhecer.’ Hoje preciso de fisioterapia duas vezes por semana. Do contrário, o meu pescoço reclama.”
Em fevereiro de 1999, na Turquia, houve mais um percalço. Salgado retratava o movimento nacionalista dos curdos – população que reivindica uma parcela dos territórios iraniano, sírio, iraquiano e turco com o intuito de fundar um Estado próprio. “A polícia de Istambul provavelmente me monitorava. Num domingo de manhã, uns sete agentes avançaram contra mim em plena rua. Os brutamontes chutaram um dos meus tendões de Aquiles até rompê-lo. Doeu horrores. Eu não conseguia erguer o pé, que inchou na hora. Só me recuperei após uma cirurgia.”
Por causa de quedas ou escorregões que sofreu durante outras missões, o fotógrafo também operou o joelho direito e os dois ombros. Não bastasse, em 2010, na Nova Guiné, contraiu uma variedade grave de malária, a transmitida pelo protozoário Plasmodium falciparum. A doença comprometeu severamente o sistema imunológico de Salgado. “Minha máquina de fabricar glóbulos brancos e plaquetas quebrou. Não funciona mais de maneira adequada.” Em decorrência, aumentam as chances de tromboses, hemorragias, infecções e leucemia. “Faço exames periódicos para controlar as taxas sanguíneas. De resto, estou saudável. Sou bom como um coco!” Ele afirma que vibrou intensamente quando completou 80 anos. “Você não pode calcular o tamanho da minha felicidade. Eu cheguei lá, porra! Sobrevivi, mesmo me arriscando tanto. Não é fantástico?”
Enquanto se defrontava com os perigos do ofício, o mineiro jamais deixou de sentir medo. “Que ninguém se iluda: não tenho nada de Super-Homem. Em situações tensas, minhas pernas bambeiam, a boca seca, e uma hesitação se insinua. Só que nenhum receio supera meu imenso desejo de ver o mundo.” Para o ensaio Gênesis, lançado em 2013, Salgado se embrenhou pelo Alasca e documentou a Cordilheira Brooks. “Fui no verão. Um aviãozinho me largou sobre uma vasta planície e me buscou depois de uma semana. Fiquei absolutamente sozinho ali, subindo e descendo aquelas montanhas. Eu sabia que corria três grandes riscos: deparar com um urso faminto, cair nas águas congelantes de algum rio ou tropeçar em meio às escaladas e fraturar uma perna. Claro que o medo me rondava incansavelmente. No entanto, o prazer de observar paisagens tão magníficas compensava tudo. Era genial! Alcançar o topo de uma montanha e me enxergar como parte do universo vegetal, do universo mineral… Nada me gratifica mais do que entrar em comunhão com o planeta.”

Embora não vá se aposentar do campo, o mineiro está, sim, dedicando um esforço maior à garimpagem do próprio acervo, conforme adiantou o Guardian. A designer, cenógrafa, produtora e ambientalista Lélia Wanick Salgado o auxilia na tarefa. A capixaba de Vitória e o fotógrafo se conheceram em 1964. Casaram três anos depois e tiveram dois filhos. Há mais de cinco décadas, moram em Paris, onde também ficam os arquivos do casal. Desde que se uniram, Tião e Lelinha – apelidos carinhosos que gostam de usar – trabalham juntos. A designer não apenas faz o projeto gráfico de todos os livros do parceiro como assina a curadoria das mostras dele.
A exposição no MIS paulistano já é resultado das incursões que a dupla anda empreendendo pelas milhares de imagens cuidadosamente guardadas. Em abril de 1974, quando a Revolução dos Cravos eclodiu, Salgado estava fora de Portugal. O fotógrafo só chegou à capital do país um mês após a insurreição, na companhia da mulher e do primogênito. “Percorremos de automóvel os quase 1,5 mil km que separavam nossa residência parisiense de Lisboa. Eu dividia com Lelinha o volante de um Renault bem compacto. O Juliano, ainda bebê, viajava no banco de trás, dentro de uma cesta. A gente dirigia praticamente sem parar. Mandamos pau naquele carrinho… Queríamos muito presenciar e registrar a alegria dos portugueses.”
Na ocasião, as Forças Armadas governavam o Brasil havia dez anos. Não por acaso, a sublevação em Portugal inundava Salgado e a companheira de esperanças. Se os lusos conseguiram vencer uma ditadura tão ferrenha, os brasileiros também poderiam lograr façanha semelhante. O mineiro cursava economia e nem sequer imaginava adotar a profissão de fotógrafo no dia em que os militares expulsaram o presidente João Goulart de Brasília e assumiram o poder. Tempos depois, insatisfeitos com o regime autoritário, o economista recém-formado e a mulher se ligaram à Ação Libertadora Nacional. O grupo de esquerda abraçou a luta armada na infrutífera tentativa de derrotar os generais, almirantes e brigadeiros.
“Em 1969, a repressão aumentou por causa do Ato Institucional n.º 5, decreto que reduzia ainda mais os nossos direitos políticos e civis. Toda hora, recebíamos notícias de torturas contra oposicionistas. Apavorados, resolvemos nos exilar. Trocamos São Paulo, onde vivíamos, por uma jornada de estudos em Paris”, recorda Salgado. Ele ingressou na Ensae, prestigiosa escola de estatística e administração econômica, mas acabou não defendendo a tese que o tornaria doutor. Já Lélia aproveitou o degredo francês para se graduar em arquitetura. 
Como a faculdade lhe exigia fotografar prédios e outros tipos de edificações, a capixaba decidiu arranjar uma câmera. Em junho de 1970, numa loja de Genebra, comprou uma Pentax Spotmatic II e três lentes: uma normal, uma grande angular e uma teleobjetiva. Salgado tinha 26 anos e, até então, jamais se interessara por equipamentos fotográficos. Mesmo assim, sentiu uma vontade irresistível de manusear a câmera da parceira. “No momento em que olhei pelo visor, me transformei completamente. Rolou uma epifania ou algo do gênero. Descobri a possibilidade de materializar em imagens tudo que me dava prazer, que considerava bonito ou que me revoltava.” Rapidamente, o mineiro aprendeu como lidar com a Pentax e revelar negativos. Lélia posou para a primeira foto que o marido tirou. A modelo casual estava diante de uma janela. 
Em 1971, Salgado debutou no fotojornalismo, ainda que de maneira diletante. Foi uma estreia glamourosa: o aprendiz clicou ninguém menos que Jorge Amado. O romancista baiano passava uns dias em Paris, onde a Academia do Mundo Latino lhe concederia um prêmio. Por sugestão de uma amiga, o jovem fotógrafo compareceu à homenagem e presenteou o escritor com os registros da cerimônia. Naquele mesmo ano, Tião e Lelinha deixaram a França, já que a Organização Internacional do Café ofereceu um emprego para o mineiro em Londres. Ele ocupou o cargo de secretário e, durante as reiteradas viagens de trabalho pela África, não desperdiçou as oportunidades de exercitar o novo hobby. Logo percebeu que fotografar o satisfazia “dez vezes mais” do que elaborar relatórios econômicos. 
A constatação desencadeou uma drástica mudança de rumo. Em 1973, após sair do emprego londrino, Salgado retornou à capital francesa e se profissionalizou como fotógrafo. De início, retratava imigrantes portugueses nas comunidades pobres de Paris e negociava as reportagens com instituições sociais ou jornais católicos. Mal juntou um dinheirinho, voou até o Níger e cobriu a onda de fome que assolava o país africano. Graças às fotos realizadas por lá, ganhou o suficiente para adquirir câmeras e lentes melhores, da marca Leica. Ele as utilizou quando acompanhou a tumultuada fase que sucedeu a Revolução dos Cravos. Entre 1974 e 1975, o mineiro fotografou tanto a redemocratização de Portugal quanto a descolonização de Moçambique e Angola. Duas importantes agências da França o contrataram no período: primeiro, a Sygma e, depois, a Gamma. Em 1979, Salgado se transferiu para a Magnum, onde permaneceu por quinze anos. Ali ficou amicíssimo de Cartier-Bresson, que criou a lendária cooperativa de fotógrafos com Robert Capa, George Rodger e David Seymour no dia 6 de fevereiro de 1947.

O mergulho de Tião e Lelinha pelo acervo parisiense vai gerar mais uma exposição, agora sobre as fábricas e os operários da extinta União Soviética. O museu Wende – instituição de Los Angeles que busca preservar e divulgar a memória da Guerra Fria – abrirá a mostra em maio de 2026. “Produzi as fotos enquanto preparava o livro Trabalhadores”, conta Salgado. A publicação de 1993 exibe homens e mulheres em atividades braçais normalmente penosas, como a construção de barragens na Índia, o garimpo na Amazônia, a luta contra o fogo nos poços petrolíferos do Kuwait e a pesca do atum na Sicília.
Boa parte das imagens captadas dentro das indústrias soviéticas se mantém inédita. Raros fotógrafos ocidentais obtiveram autorização para visitar aquelas fábricas. “O socialismo convertia os operários em donos das companhias. Eles mesmos decidiam o modo de organizá-las. Trabalhavam duro, mas usufruíam de alguns luxos espetaculares. Descansavam em áreas com aquário, música erudita, sauna e cadeiras relaxantes. Podiam, inclusive, festejar aniversários nas linhas de montagem. Cessavam de atarrachar peças ou apertar parafusos e bebiam champanhe.” 
Pouco depois de se exilar em Paris, Salgado – então marxista-leninista – cogitou estudar engenharia mecânica numa universidade de Moscou. “Desisti porque o Roberto Morena, militante histórico do Partido Comunista Brasileiro, me disse: ‘Não vá! O comunismo na União Soviética acabou. Uma oligarquia tomou o poder e se encheu de privilégios. Melhor você continuar na França.’”
O fotógrafo documentou a rotina das indústrias entre 1985 e o começo dos anos 1990. Para acessar as fábricas, barganhou com um figurão da Novosti, a agência local de informações. O mandachuva colecionava orquídeas. “Eu queria tanto umas espécies do Brasil… Se você as trouxer, vai gozar de trânsito livre por todo o nosso território”, propôs o burocrata. Como a mãe de Lélia também cultivava orquídeas, Salgado conseguiu 36 variedades capixabas da flor e as levou pessoalmente para o chefão. “O homem só faltou me coroar. Ele me abraçava, me beijava, me dava tapinhas nas costas.”
O mineiro garante que se lembra perfeitamente do ensaio soviético. “Recordo cada detalhe: o cheiro das indústrias, a abertura do diafragma de minha câmera, a velocidade com que fotografei… Tenho memória afiada. Preciso ter.” Inúmeras vezes, Salgado viajou sem a companheira e os filhos. Despedia-se dos três em Paris e ganhava a estrada. Nessas circunstâncias, as lembranças de casa ou de antigas experiências profissionais amenizavam a solidão. Memorizar o salvava.
Para o fotógrafo, não existe muita diferença entre as imagens que fez recentemente e as do passado. “Desde o princípio, meu trabalho resulta dos elementos que absorvi no interior de Minas Gerais quando pequeno. O que me guia é a herança visual daquela época. Eu a carrego em mim. Por isso, minha fotografia continua praticamente a mesma. Houve poucas alterações no decorrer do tempo. Envelhecer não significa tirar fotos melhores.”
Todo ano, o pai do mineiro – que possuía diversas fazendas – juntava 2 mil cabeças de gado em Aimorés e as conduzia para o matadouro mais próximo, na cidade fluminense de Campos dos Goytacazes. O filho participava da comitiva. “Cavalgávamos 45 dias até o nosso destino.” No percurso, o garoto observava atentamente as montanhas, os rios, a vegetação e os bichos. Por ser branquinho, costumava evitar o Sol. Estava sempre à procura da sombra e se protegia com chapéus de abas largas, uma recomendação da mãe. As paisagens, em consequência, chegavam às retinas do menino sob certa penumbra. “Entendeu agora por que fotografo tanto na contraluz?”
O barroco de Minas também influenciou Salgado. “Repare na composição, nas formas, nas cores, no drama das minhas fotos. É puro barroco! Já me acusaram de estetizar a pobreza. Não concordo. Nunca me interessei especificamente pela miséria do mundo nem pela beleza física de ninguém – pelo narizinho bonito, pelo olho bonito. Apenas retrato a dignidade das pessoas nos lugares onde vivem e conforme o meu legado cultural, imagético e ideológico.”
(revista piauí)

sexta-feira, 1 de março de 2024

Sem pai nem mãe

O primeiro Mickey, de 1928, finalmente se livra da Disney e ganha permissão para aloprar nos Estados Unidos

Se gostasse de pagode romântico, o Mickey agora poderia cantarolar, à moda do Só pra Contrariar: O que é que eu vou fazer/Com essa tal liberdade? Desde o começo de 2024, o camundongo mais famoso, querido e lucrativo do mundo caiu em domínio público nos Estados Unidos e está livre da Disney. Para que exatamente? Talvez para beber e fumar de novo. Ou para falar palavrões, emitir opiniões políticas, abrir a relação com a Minnie… Ideias não faltam, como bem demonstram os doze cartunistas que, nesta edição da piauí, imaginaram o personagem em situações nada habituais.
O Mickey que se libertou, porém, é apenas o de 1928. As outras versões do roedor continuam obedecendo às normas da centenária empresa californiana. O ratinho alforriado se distingue do atual por ter um formato menos arredondado, dispensar as luvas e, o mais importante, não ser colorido. Ele apareceu no dia 18 de novembro daquele ano, em O Vapor Willie, curta-metragem de sete minutos que arrebatou a plateia do Colony Theatre, um cinema de Nova York.
A produção logo virou um clássico – e não somente porque apresentou o personagem que iria se tornar mascote da Walt Disney Company. Também chamou a atenção pelo fato de a trilha e os efeitos sonoros estarem totalmente sincronizados com a ação, um prodígio técnico para a época. Mickey e seus parceiros de cena, todos animais, não diziam uma única palavra, mas assobiavam, gargalhavam, mugiam, cacarejavam, miavam e soltavam uns resmungos. A turma viajava no barco a vapor, onde a pancadaria corria solta. O comandante – um gigantesco felino – maltratava o camundongo, que maltratava o papagaio, o gato, os porcos, o ganso… Ou melhor: Mickey descia a lenha nos bichos para extrair deles sons ritmados e, assim, executar uma alegre música folclórica, Turkey in the straw. Outros tempos…
Em maio e agosto de 1928, o roedor já protagonizara os curtas O avião do Mickey e O gaúcho galopante. Os filmes, originalmente mudos, ficaram meses na gaveta. Só estrearam depois de O Vapor Willie e em versões sonorizadas. Uma simpática Minnie participava das três produções como coadjuvante. O gigantesco felino que fazia bullying com o Mickey ganharia, por aqui, a alcunha de João Bafo de Onça. Quando O Vapor Willie surgiu, Walt Disney amargava sérios problemas financeiros. O sucesso estrondoso do curta o tirou do buraco. Não à toa, o artista nutria especial afeto pelo ratinho e o considerava um poderoso amuleto. De início, Mickey se chamava Mortimer, nome que Lillian Bounds – animadora e mulher de Disney – julgava excessivamente formal. Ela sugeriu a mudança, e o marido topou. O camundongo dos primórdios, além de distribuir porrada, curtia bebida e cigarro. De 1930 em diante, ficou mais certinho, devido à imensa popularidade que alcançou. Um astro daquele tamanho não poderia dar maus exemplos.
As leis americanas protegem os direitos autorais de uma obra audiovisual durante 95 anos, contados a partir do seu lançamento. A entrada em domínio público do Mickey ancestral garante que qualquer pessoa exiba ou compartilhe O Vapor Willie nos Estados Unidos sem pagar nada à Disney. Permite-se também parodiar ou alterar o curta. No Brasil, contudo, o papo é outro. A legislação prevê que os direitos patrimoniais do autor sobre produções audiovisuais perdurem por 70 anos, e não por 95. Entre nós, portanto, o Mickey de 1928 tem licença para aprontar desde janeiro de 1999. Mas, até o momento, parece que não está aproveitando muito a emancipação…
(revista piauí)

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Frangoesa e jabuticabra

Um ás da guitarra viciado em trocadilho

Recentemente, o guitarrista Marcinho Eiras abriu o Instagram e se deparou com a selfie de uma amiga que, dentro de um avião, aguardava a decolagem. Ele não titubeou. Foi até o espaço de comentários e escreveu “jato indo”. Poucos dias depois, num restaurante, pediu “aquele peixe que pulou do prédio”. O garçom, claro, não compreendeu. “Aaaaaa… tum!”, explicou o músico de 52 anos, com ares de menino travesso. Em outra ocasião, contou para a mãe que pretendia estudar na escola de inglês recém-inaugurada pelo Sérgio Mallandro, a CCIéIé. “Eu simplesmente não resisto”, diz Eiras. “Faço trocadilhos o tempo inteiro, mesmo em momentos inoportunos: no Uber, nas reuniões de trabalho, numa consulta médica ou num encontro amoroso. Virou uma obsessão.”
Não por acaso, há quem o considere bobo, infantiloide, sem noção, mala ou o próprio tio do pavê. “Pior que sou… Nem adianta negar”, reconhece, enquanto despeja mais uma leva de gracinhas: “Qual é o inseto que só come madeira cor-de-rosa? Cupink! Qual o doce favorito dos átomos? Pé-de-molécula! Quais as frutas que os veganos detestam? Frangoesa e jabuticabra!”
No entanto, há também os que o julgam genial, seja por se lembrar rapidamente de trocadilhos clássicos, seja pela agilidade com que inventa novos. Desde 2016, o guitarrista integra um grupo de WhatsApp em que todos os diálogos precisam conter jogos de palavras. Entre os 51 membros, prevalecem os humoristas, como Marcos Castro, Ed Gama, Criss Paiva, Talita Halliday e Marcio Ballas. Outros participantes são revisores de texto, produtores, dubladores, roteiristas ou mesmo engenheiros e matemáticos. Até o saxofonista Derico, que compunha o sexteto de Jô Soares, está ali. No grupo, Eiras já atingiu os patamares de “máquina”, “mito” e “monstro” – termos que designam os craques do time. “Por que o padre bateu o carro? Porque deu uma rezinha! Por que o lápis resolveu malhar? Para ficar grafitness! Por que não pode soltar pum numa loja da Apple? Porque lá não tem Windows!”
Paulistano da Vila Mariana, o guitarrista demonstrou talento musical antes de se alfabetizar. Com apenas 4 anos, tocava canções de novelas ou sucessos de Roberto Carlos que pescava na televisão. Começou dedilhando o piano de uma tia-avó. Mais tarde, se deixou seduzir pela bateria e finalmente aderiu à guitarra. Frequentou um conservatório na pré-adolescência, mas logo o abandonou, para desgosto do pai. Até hoje, aprende tudo de ouvido e não sabe ler partitura. “É mal de família. Meu avô materno arrasava no acordeão e meu tio se tornou um exímio contrabaixista profissional. Nenhum dos dois estudou música formalmente.”
Em 1997, Eiras fez parte do Rádio Táxi, grupo que ganhou fama com EvaSanduí­che de Coração, Garota Dourada e outros chicletes do pop. Também engrossou por meia década a banda do extinto Domingão do Faustão. No programa, acompanhou cantores dos mais diversos estilos: Ivete Sangalo, Vanessa da Mata, Zezé Di Camargo e Luciano, Agnaldo Rayol, Latino, Reginaldo Rossi, Felipe Dylon…
Entretanto, o que realmente distingue o guitarrista dos colegas brasileiros é o domínio de uma técnica difundida pelos americanos Eddie Van Halen e Stanley Jordan: a two-handed tapping. “Os adeptos do método tocam sem palheta e unicamente com as cordas que estão no braço da guitarra”, esclarece o músico. “Não usamos a porção das cordas que atravessa o corpo do instrumento. Extraímos do braço tanto a melodia quanto a harmonia das composições.” Graças à técnica, os instrumentistas conseguem tocar duas ou três guitarras de uma só vez. No Instagram e no Facebook, Eiras gosta de publicar vídeos em que realiza a façanha. São hipnotizantes.
O virtuosismo possibilita que o guitarrista promova workshops e se exiba regularmente no Brasil, na Europa, na Ásia e nos Estados Unidos. Ele costuma entrar em cena sozinho ou à frente do Projeto BePop – trio cujo nome é um trocadilho com bebop, gênero que inaugurou o jazz moderno.

O fascínio de Eiras por jogos de palavras também nasceu na infância. “Eu pirava sempre que ouvia bobagens do tipo: ‘Como se chama o dono do cemitério? Seu Pultura.’ Para mim, não havia ninguém mais inteligente do que os autores de trocadilhos.” Em paralelo, o menino descobriu o universo das anedotas – inclusive as chulas ou preconceituosas – e tratou de decorar o maior número possível delas. “Acumulei um repertório tão gigantesco que o pessoal do colégio vivia me pedindo para contá-las.”
À época, o pai de Eiras tinha o hábito de escutar o comediante Juca Chaves no toca-fitas do carro enquanto passeava com o filho. “Foi outra descoberta incrível. O Juca tocava modinhas satíricas num alaúde durante os espetáculos. Unia o humor à música.” Por volta de 2010, o guitarrista – que também é cantor – resolveu imitá-lo. “Botei alguns causos, piadas e trocadilhos nos meus shows. O público se amarrou tanto que não parei mais.”
Hoje, Eiras se apresenta até em clubes de stand-up. “Qual o país onde se prepara o melhor omelete? Kosovo! Se virasse terrorista, o Tiririca participaria de que grupo? Do Abestado Islâmico! O Cebolinha entrou no cinema com dois sorvetes para ver qual filme? Lambo 2 – A Missão! Que posição sexual faz o Galvão Bueno subir pelas paredes? Anal do Cezar Coelho!”

Embora crie trocadilhos diariamente, o músico não reivindica a autoria de nenhum. Tampouco se priva de roubar as invenções alheias. “Jogos de palavras não têm dono. São como os memes. A gente recebe um, morre de rir, passa adiante e não se preocupa em saber quem bolou aquilo.” De uns tempos para cá, Eiras vem apostando justamente na disseminação de memes – um mais tosco que o outro. Ele próprio os elabora, ainda que mal domine programas de design. Há uns meses, por exemplo, concebeu o Nanando Reis, fotomontagem em que o baixista dos Titãs aparece dormindo de óculos escuros numa cama com lençóis muito brancos.
O guitarrista afirma que inventa trocadilhos quase sem pensar. “Às vezes, quebro a cabeça. Mas, na maioria dos casos, as ideias pintam naturalmente. Vejo ou escuto algo que me inspira e, pronto, transformo o banal em zombaria.” O processo se assemelha à improvisação no jazz. “Quando toco, amo o freestyle. Quando falo, também. Sinto prazer em contaminar os ambientes com brincadeiras infames. Boa parte das pessoas curte as minhas tolices. Raras se irritam de verdade: ‘Porra, Marcinho! Jura que você se orgulha de uma babaquice dessas?’”
Solteiro e sem filhos, Eiras mora num tríplex em São Paulo. Mantém os cabelos loiros sempre compridos e se veste de maneira jovial. Toda semana, pratica surfe na Praia Grande, município da Baixada Santista que frequenta desde criança. À espera da melhor onda, não perde a oportunidade de pentelhar os companheiros do lado: “Deve ser horrível dar aula de natação. O professor ensina, ensina, ensina, e o aluno nada!”
(revista piauí)

sábado, 1 de julho de 2023

O sumiço de Teresa

Depois de encalhar em Angra, orca-pigmeia não manda mais notícias

Cadê Teresa? Ela nunca dava as caras. Numa tarde de março, chegou sem avisar. Estava bem desorientada. Precisava de ajuda. Muita gente se comoveu e fez de tudo para animá-la. Funcionou. Teresa se recuperou, ainda que lentamente. Ficou tão aprumada que, certa manhã, pegou carona num barco e caiu fora, mas jurou que mandaria notícias. Por um tempo, cumpriu a promessa. Enviou mensagens bastante alentadoras, em que demonstrava se sentir cada vez melhor. De uma hora para outra, porém, meteu um ghosthing e sumiu sem dizer tchau. Será que, um dia, vai aparecer novamente?
Não, a Teresa daqui não tem nenhum parentesco com aquela do Jorge Ben Jor, que resolveu sambar no morro e jamais voltou. A protagonista desta história é uma orca-pigmeia. Como pertence à família dos delfinídeos, os cientistas a consideram um tipo de golfinho. Ela, de fato, lembra os cetáceos que equilibram bolas ou cruzam arcos em parques aquáticos. Não dispõe, no entanto, do “bico” característico de seus parentes mais conhecidos. Em vez de pontiaguda, a boca de Teresa é arredondada. Daí a associação com a orca, também um golfinho sem “bico”, apesar de o senso comum defini-la como uma baleia.
Predominantemente negra, Teresa exibe manchas esbranquiçadas na barriga. Mede 2,25 metros e pesa 116 kg. Ninguém sabe direito quando nasceu, mas tudo indica que se trata de um mamífero adulto (as orcas-pigmeias vivem cerca de trinta anos). Com 22 dentes na mandíbula superior e 26 na inferior, gosta de comer peixes e lulas. Costuma se deslocar em grupos de pelo menos quatro indivíduos. Não raro, um deles mordisca a nadadeira do outro. “É um jeito de se comunicarem. Humanos trocam abraços e apertos de mãos. Golfinhos se mordem ou compartilham esfregadinhas”, explica o biólogo Rafael Ramos de Carvalho, pesquisador da Uerj.
As orcas-pigmeias normalmente apresentam comportamento dócil. Só se tornam agressivas em cativeiro. Identificadas pela primeira vez na segunda metade do século XIX, não correm risco de extinção, conforme a União Internacional para a Conservação da Natureza. Habitam águas tropicais e subtropicais de todo o mundo, mas são difíceis de encontrar (e estudar) porque nadam longe da costa, nos chamados taludes – regiões oceânicas com mais de 200 metros de profundidade.

Às 16 horas do último dia 4 de março, dois policiais militares patrulhavam a Ilha Grande, em Angra dos Reis, quando avistaram Teresa. Ela havia se perdido e encalhado na Praia de Provetá. Estava muito distante de casa, já que o talude fica a 140 km daquele ponto do litoral fluminense. “Os golfinhos se desorientam por diferentes motivos”, afirma Carvalho. “Às vezes, o ruído de navios ou de atividades petrolíferas os atrapalha. Outras vezes, o desnorteamento resulta da poluição marítima ou de alguma doença.”
Embora respirem fora d’água, pois têm pulmões e não brânquias, as orcas-­pigmeias podem morrer caso encalhem e ninguém as acuda. Em terra, a força da gravidade lhes pressiona excessivamente os órgãos, o que acaba por sobrecarregá-­los. Não bastasse, a pele delas resseca bem rápido e ganha feridas preocupantes. Há, ainda, o alto nível de estresse que qualquer bicho selvagem manifesta quando sai do habitat natural. Na esperança de salvar Teresa, a dupla de PMs a isolou e pediu auxílio especializado. Os biólogos, veterinários e oceanógrafos convocados logo perceberam que o golfinho necessitava de socorro hospitalar. Na manhã do dia 5, depois de quinze horas encalhada, ela finalmente pegou uma lancha para o Centro de Reabilitação e Despetrolização de Animais Marinhos, também em Angra. Foi lá que a batizaram de Teresa, uma brincadeira com o nome científico das orcas-pigmeias (Feresa attenuata).
Exames mostraram que a paciente desenvolvera uma pneumonia grave, além de alterações neurológicas que a faziam nadar sem direção e flutuar de maneira inadequada – seu corpo sempre virava de lado. Por duas semanas, doze profissionais cuidaram de Teresa em três piscinas de tamanhos diferentes. “Nunca a deixávamos sozinha. Mesmo à noite, tinha alguém dentro d’água para impedi-la de afundar ou ficar parada durante muito tempo”, conta a veterinária Anneliese Kyllar. A médica é uma das coordenadoras do Projeto de Monitoramento de Praias da Bacia de Santos (PMP-BS), executado pela Petrobras desde 2015 em parceria com diversas instituições públicas e privadas. A iniciativa busca diminuir o impacto que a produção e o escoamento de petróleo exercem sobre as aves, os mamíferos marinhos e as tartarugas nos municípios litorâneos de Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro.

Assim que Teresa melhorou, iniciaram-se os preparativos para devolvê-la à natureza. A equipe que se encarregou da reabilitação fixou um pequeno rastreador na barbatana da orca-pigmeia. O aparelhinho retangular atua como um GPS. “Precisávamos saber se, depois de solta, Teresa retornaria para o talude”, diz Carvalho. O pesquisador da Uerj integra o Laboratório de Mamíferos Aquáticos e Bioindicadores, que faz parte da faculdade de oceanografia e assessora o PMP-BS. “Alcançar de novo o talude seria o principal indicativo de que Teresa sarou totalmente e conseguiu se reorientar”, prossegue o biólogo.
Em 18 de março, um barco partiu cedinho de Angra com a orca-pigmeia no convés. Ela estava sobre um colchão inflável. Um grupo de veterinários averiguava a frequência cardiorrespiratória e a temperatura do golfinho. Também molhava regularmente seu corpo com água salgada. “Navegamos por duas horas e percorremos uns 35 km”, recorda Carvalho. “Quando cruzamos a Baía da Ilha Grande, libertamos Teresa.”
O rastreador indicou que, num primeiro momento, a orca-pigmeia se manteve perto da costa fluminense. Passou pela Barra da Tijuca e pelas Ilhas Cagarras. Na altura de Maricá, se afastou das zonas costeiras até atingir o talude em Arraial do Cabo. Depois, desceu para São Paulo e atravessou o Paraná. Ao longo do trajeto, zanzou por mares com quase 2 km de profundidade. “Não fazemos ideia se Teresa arranjou companhia. O rastreador não capta informações desse tipo”, esclarece Carvalho.
O aparelho transmitiu a última localização da orca-pigmeia em 8 de abril. Ela ainda estava no talude, mas se aproximava de Florianópolis. “Perdemos o sinal do rastreador. O equipamento deve ter quebrado ou ficado sem bateria. Uma pena…”, lamenta o biólogo. “Rastreadores não funcionam para sempre, claro. O de Teresa nos abasteceu de dados por 22 dias. Já houve casos, porém, em que os aparelhos duraram mais de sessenta.”
O bom é que, enquanto se comunicou com os pesquisadores, o golfinho provou que esbanjava saúde. Antes de Teresa despontar na Ilha Grande, o PMP-BS registrou apenas um outro encalhe de orca-pigmeia. Infelizmente, o cetáceo acabou morrendo. “Espero que Teresa continue no talude e nunca regresse para a costa”, diz Carvalho. “Agora, se ela arrumar um modo de enviar notícias, a gente agradece.”
(revista piauí)

segunda-feira, 1 de maio de 2023

“Abra os pernões, gostosinho!”

Mulher-gorila expõe a crueldade do machismo em monólogo que “abusa” do público masculino

Inicialmente, a impressão é de que a atriz Rafaela Azevedo está fazendo um simples pedido. “Você… Sim, você mesmo. Por gentileza, poderia trocar de lugar com aquela moça?”, indaga a protagonista do monólogo King Kong Fran para um jovem da plateia, num teatro do Rio de Janeiro. Surpreso, o rapaz de barba concorda sem reclamar. Ele usa camisa e bermuda claras. A atriz, posicionada no canto direito do palco, mira outro jovem e repete o apelo. Dessa vez, o alvo resiste. Também de bermuda, o homem não pretende trocar de poltrona com mulher nenhuma. “Ah, prefere continuar aí?”, certifica-se a artista. “Beleza. Mas você vai se arrepender…” Num piscar de olhos, o rapaz entende que não se trata de um pedido. É uma ordem, e só lhe resta ceder. “Método Paulo Freire… Funciona, viu?”, zomba a atriz.
O espetáculo mal começou e a estrela da noite já tem o público nas mãos. Ela desce languidamente do palco. Enverga uma fantasia de gorila, bem peluda. A máscara do primata, no entanto, não lhe oculta o rosto. Repousa sobre a cabeça da artista, como um boné. Os dois rapazes estão, agora, em poltronas vizinhas, perto de um terceiro jovem, que traja uma elegante calça comprida. A atriz caminha até o trio, equilibrando-se num salto plataforma de 10 cm, que a deixa com 1,80 metro de altura. Impetuosa, encara um dos homens de bermuda: “Pernão de fora, hein? E a camisa? Aberta no peito… Por que você se vestiu assim? É um código, né? Você deseja que a mulherada avance. Confessa! Que tal dar uma levantadinha para todo mundo admirar o material?” Completamente sem jeito, o jovem obedece. “Hmmmm… Resolveu meter o tímido, é?”, provoca a artista.
Ela aborda, então, o segundo rapaz de bermuda. “Outro gostosinho aqui. Você se incomodaria de abrir as pernas? Quero checar um negócio: a sua mala está marcando?”, pergunta com voz quase ingênua, enquanto aponta o pênis do jovem. “Está marcando ou não? Preciso saber… Abra os pernões! Não está?! Que absurdo! Por que você saiu de casa se não planejava mostrar o que interessa?!”
Cada vez mais afrontosa e destemida, a atriz sugere que os três homens fiquem de pé e se acariciem mutuamente. O de calça comprida não topa. Os de bermuda, ainda que embaraçados, aceitam compartilhar esfregadinhas nas costas. “Gosto quando vocês se pegam. Lindo, lindo!”, incentiva a artista. “Por que não se beijam?” Os rapazes, atônitos, suspendem imediatamente os carinhos. A atriz se agarra à oportunidade e explica: “Minha peça acontece no limiar do constrangimento e do terror. Mas apenas para metade da plateia… Para a outra metade, é só comédia, humor, curtição!”
Na verdade, o sarcasmo de King Kong Fran lava a alma de uns 80% do público. Desde a estreia, em novembro, as mulheres ocuparam praticamente todos os assentos dos teatros cariocas que receberam a montagem – o Ipanema, o Cesgranrio e o xp Investimentos, onde o monólogo estará de novo neste mês, depois de passar por lá em março. Os poucos boys que ousam se defrontar com o espetáculo de setenta minutos dificilmente saem incólumes da experiência. A protagonista inverte a ordem patriarcal e se transmuta em algoz dos “machos héteros” não somente porque assedia parte da audiência masculina. Ela também conta histórias reais de sexismo no showbiz, que desconcertam os marmanjos presentes. A intenção é fazê-­los sentir empatia pelo sofrimento feminino. Claro que as espectadoras se entregam freneticamente à catarse e estimulam a artista o tempo inteiro, com uma profusão de gritos, assobios, gargalhadas e aplausos. Há, inclusive, as que antecipam certas frases da atriz, numa demonstração de que assistiram à peça mais de uma vez.
O boca a boca dentro e fora da internet acabou tornando a encenação um inesperado sucesso. Dez mil pessoas já a prestigiaram – número elevadíssimo para os padrões brasileiros, sobretudo quando a produção é de baixo orçamento. King Kong Fran custou 30 mil reais, garimpados numa vaquinha digital.

Escrito e dirigido pela própria atriz e por Pedro Brício, o monólogo agrega várias linguagens: as do circo, do vaudeville, da performance e do cabaré burlesco. O espírito justiceiro das redes sociais norteia to­do o espetáculo, na medida em que a protagonista adota um tom assertivo, lacrador, e comanda um tribunal anár­quico, onde nenhum homem goza da presunção de inocência.
A montagem não tem exatamente uma trama. Em linhas gerais, apresenta a versão alongada de um velho quadro circense – o da Monga, mulher sensual que vira gorila e ataca a plateia. Se a fera do passado apenas urrava, a do século XXI fala pelos cotovelos e levanta sem trégua as bandeiras do feminismo. Curiosamente, quem se converte em gorila na peça é a palhaça Fran, alter ego de Rafaela Azevedo. A protagonista assume, portanto, duas facetas complementares: a da macaca tagarela e a de uma clown tão mordaz quanto egocêntrica, autoritária e perversa. Ela inicia a encenação numa jaula e rapidamente se liberta. Logo abaixo da cintura, exibe um dildo de 37 cm, ora utilizado como arremedo de microfone, ora como um simulacro de espada ou porrete. A música Dona do Prazer – adaptação de Toxic, sucesso de Britney Spears, gravada pelo grupo Forró na Veia – serve de trilha sonora. Um trechinho da letra: Bem que eu te avisei/Para não me tocar/Cuidado, baby/Você vai se queimar/É perigoso/Provar do meu amor.
Carioca de Honório Gurgel, bairro periférico onde também nasceu a cantora Anitta, a atriz de 31 anos criou Fran em 2013, durante uma oficina de palhaçaria. Inspirou-se na mãe, que já morreu e padecia de uma doença mental grave, o transtorno de personalidade limítrofe. “Ela não separava a fantasia da realidade. Dizia que iria telefonar para um galã de novela, por exemplo, e acreditava naquilo. Conversava horas pelo celular com absolutamente ninguém. Era triste, singelo e engraçado. Tudo junto”, relembra a artista. “Minha mãe fazia coisas em casa que muitos atores não conseguem fazer em cena.”
Diferentemente dos palhaços tradicionais, Fran evita pintar a face. Usa apenas uns cílios postiços enormes, uma peruca chanel preta e um batom vermelho, sempre borrado. Esforça-se para bancar a gata do pedaço, mas frequentemente naufraga e soa desajeitada, excessiva ou ridícula. Entre 2018 e 2019, a personagem estrelou o solo Fran World Tour, em que tentava executar diversos números de circo e fracassava.

Um terrível acontecimento está por trás do espetáculo que Rafaela Azevedo encabeça agora. Quando tinha 21 anos, a atriz sofreu um estupro. Ela se tratava com um osteopata, que a violentou durante uma consulta. “No momento da agressão, uma dúvida me atormentava: ‘Será que dei motivo para o cara se comportar assim? Será que agi de maneira inadequada?’ Eu me culpei… Por isso, não o denunciei.”
O ataque lhe deixou marcas profundas. “Meu útero adoeceu, parei de menstruar e senti cólicas horrorosas. Os sintomas me assombraram por um bom tempo.” Não bastasse, a moça se fechou para as relações amorosas. “Eu me enxergava como o problema. Então, pensava: qualquer homem que me atrair vai abusar de mim, já que sou fácil demais.”
Graças à psicoterapia e à leitura de ensaios feministas, a atriz reinterpretou o episódio. “Compreendi que posso reagir. Os agredidos têm direito à violência. Por que nem cogitei esmurrar o médico na hora do estupro? Não seria impossível. Faço ginástica, cultivo os músculos, exercito minha agilidade. Só que, em vez de peitar o agressor, aceitei o papel de vítima como inerente à mulher.” Uma década depois do ocorrido, com King Kong Fran, a artista finalmente reagiu.
(revista piauí)

quinta-feira, 6 de abril de 2023

A bandeira do Brasil que os patriotas destruíram

Três meses depois dos atos golpistas em Brasília, filhos do pintor Jorge Eduardo ainda não sabem o que o governo vai fazer com obra vandalizada do pai

Na manhã do dia 9 de janeiro, enquanto acompanhava pela tevê as repercussões dos ataques golpistas à Praça dos Três Poderes, Felipe Eduardo Alves de Souza teve a sensação de ver algo familiar. O designer carioca passava aquela segunda-feira em casa. “Quando a câmera mostrou os estragos no Palácio do Planalto, levei um susto. Entre as peças danificadas, avistei de relance uma pintura que parecia a do meu pai. ‘Será que os bolsonaristas avançaram no trabalho dele? Não faz sentido…’, pensei. Foi uma cena muito rápida. Não consegui ter certeza de nada, mas fiquei com a pulga atrás da orelha.”
Pouco depois, a imprensa divulgou a lista preliminar dos bens avariados pelos baderneiros no domingo, dia 8. “Infelizmente, minha suspeita se confirmou”, lamenta Souza. Uma foto publicada no site G1 flagrava a pintura Bandeira do Brasil em condições lastimáveis. A criação de Jorge Eduardo, o pai do designer, estava suja e molhada. Os vândalos a arrancaram da parede e jogaram no chão, inundado pela água dos hidrantes abertos durante a invasão. Em cima do trabalho, havia pedaços de vidro e pó químico de extintores. Marcas de dedos e calçados, além de arranhões, se espalhavam por toda parte.
Com 1,5 metro de largura e 2 metros de comprimento, a pintura de 1995 reproduz a bandeira nacional que tremula diante do Planalto. É um quadro hiper-realista, em tinta acrílica sobre MDF, material semelhante à madeira. De acordo com a Presidência da República, vale 80 mil reais. Vinte obras do palácio sofreram danos, incluindo a escultura O Flautista, de Bruno Giorgi, e a tela As Mulatas, de Di Cavalcanti, que leiloeiros estimam custar mais de 15 milhões de reais. Morto em abril de 2019, Jorge Eduardo abraçou o hiper-realismo na década de 1980 e virou entusiasta do gênero. Gostava de pintar cenários naturais ou urbanos e, principalmente, coisas. Quando as retratava, dizia-se um criador de “ilujetos”, imagens tão detalhadas que causavam a impressão de tridimensionalidade – ou a ilusão de se mirar um objeto. Em razão disso, muitos confundem os trabalhos do artista com fotografias de alta resolução.
“Por que os caras atacaram uma reprodução super fidedigna da bandeira brasileira? Eles não se consideram patriotas? Não usam verde-amarelo dos pés à cabeça? Não cantam o hino o tempo inteiro? Por que, então, investiram contra um símbolo que idolatram?”, pergunta Souza. “Num primeiro momento, aquilo me soou como um tremendo absurdo. Ou melhor: como um absurdo dentro de uma situação já totalmente nonsense. Questionar o resultado das eleições?! Ocupar o Planalto, o Congresso e o Supremo?! Quebrar tudo?! Depois, me liguei que não adianta esperar bom senso ou coerência de bolsonarista. Vândalo é vândalo. Destrói o que encontra pela frente.”
Mal leu o texto do G1 sobre a pintura mutilada, o designer de 59 anos o compartilhou no grupo de WhatsApp que mantém com os irmãos: Adriana, a mais velha, e o caçula Paulo. “Não fiz nenhum comentário. Apenas enviei a notícia”, relembra. Adriana e Paulo repudiaram o episódio. “Sorte do nosso pai que não verá uma barbaridade dessas”, escreveu a primogênita. Ao mandar o link, Souza quebrou uma regra que os irmãos buscam seguir de uns tempos para cá: não tratar de política, seja nas reuniões virtuais, seja nas presenciais. Desde 2016, quando o impeachment da presidente Dilma Rousseff se consolidou, eles estão rachados ideologicamente – uma cisão que se repetiu em inúmeras famílias do país.
O trio não se interessava muito por questões políticas e costumava ter opiniões parecidas sobre o assunto. No entanto, à medida que a Operação Lava Jato avançava e a extrema direita saía do armário, as divergências familiares ganharam corpo. Souza guinou para o campo progressista e hoje se identifica com a esquerda. Já seus irmãos permaneceram na seara conservadora. “Chegou uma hora que não conseguíamos mais dialogar”, conta o designer. “Para o caldo não entornar de vez, resolvemos abolir o tema de nossos papos.”     
Agora, três meses depois dos atos golpistas, os irmãos convergem pelo menos num ponto: desejam saber o que o staff do presidente Luiz Inácio Lula da Silva fará com a pintura de Jorge Eduardo. Vai recuperá-la? Vai exibi-la de novo? Quando e onde? Logo que tomou conhecimento da ofensiva contra o “ilujeto”, Souza divulgou um comunicado no site do pai com a esperança de que alguém do governo federal o lesse. Ele pedia que os responsáveis pela reconstituição do trabalho o contactassem a fim de obter informações sobre como executar a tarefa. Na mensagem, chamava as invasões de “eventos terroristas”. O designer também encaminhou um aviso similar para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Até o momento, ninguém o procurou.

O carioca Jorge Eduardo de Affonseca Alves de Souza nasceu em agosto de 1936. Era filho do arquiteto Wladimir Alves de Souza, que alcançou certa notoriedade no Rio de Janeiro por dirigir a Escola de Belas Artes, restaurar a Capela Mayrink, do século XIX, e projetar a Chácara do Céu, residência do industrial Raymundo Ottoni de Castro Maya. Localizada em Santa Tereza, bairro montanhoso e boêmio do Centro, a propriedade de feições modernistas se tornou um renomado museu, que abriga o acervo do antigo morador. À semelhança do pai, Jorge Eduardo estudou arquitetura, mas exerceu o ofício somente por dois anos. Achou melhor enveredar pela publicidade. Começou como ilustrador e se transformou em dono de agência. Depois, arranjou emprego numa loja de departamentos, onde assumiu a gerência de marketing. Em 1981, abandonou a carreira para se dedicar apenas à pintura, que o fisgara ainda menino e lhe trouxe sucesso comercial. Foi representado por um dos principais marchands e colecionadores do país, o romeno Jean Boghici. De 1972 até 2013, expôs em diversas capitais brasileiras, além de Paris, Nova York e Miami. A partir de 2014, deixou as mostras coletivas e individuais de lado.
O artista se orgulhava do autodidatismo. Aprendeu sozinho as técnicas pictóricas que iriam caracterizá-lo. De início, produzia quadros abstratos. Mais tarde, aderiu à figuração de viés realista e finalmente se especializou no hiper-realismo. Entre os papas do estilo, admirava o chileno Claudio Bravo, que se radicou em Tânger, cidade portuária do Marrocos.
O próprio Jorge Eduardo fotografava as paisagens, os objetos e os personagens que decidia pintar. Ele também cortava e preparava o MDF que utilizava como base para as obras, já que nem sempre recorria às telas. Por isso, se proclamava “carpintógrafo” – um híbrido de carpinteiro, pintor e fotógrafo.
Fã de automobilismo, participou de várias competições e se gabava da ocasião em que venceu Emerson Fittipaldi num rally. Não à toa, adorava pintar carrões. Reproduziu dezenas, como um Jaguar e uma Ferrari de 1954, um Chevrolet Bel Air de 1957, um Porsche de 1994 e a McLaren com que Ayrton Senna se sagrou campeão de Fórmula 1 em 1988. Por ironia, só tinha automóveis velhos. Durante muito tempo, guiou uma Belina mal-ajambrada, que apelidou de Velhina. Posteriormente, comprou uma Caravan de segunda mão.
Detestava ostentar – em parte, por temperamento; em parte, para não despertar a cobiça de ladrões. Certa vez, cogitou pintar manchas de ferrugem na Velhina com a intenção de deixá-la ainda menos atraente. Costumava passar o dia de camiseta puída, sandália e bermuda surrada. Curtia ir à orla do Rio ou de Niterói porque o mar e o Sol o fascinavam. Já a areia… Irritava-se com os grãos que teimavam em lhe impregnar a pele. Era bom de garfo e cozinhava pratos italianos ou franceses, muito celebrados pelos parentes. Não raro, levava um fogareiro para a praia, reunia os amigos e fritava pastéis de massa caseira ali mesmo. Batizou tais aventuras gastronômicas de “pastelâncias”. Desde moço, fumava e bebia com avidez. Não dispensava uma cervejinha ou uns tragos de Underberg, aperitivo bastante amargo de origem alemã. Por volta dos 60 anos, largou o álcool, mas continuou fumando.
Na faculdade de arquitetura, conheceu a polonesa Stella Freiwald, que migrou para o Brasil após resistir à Segunda Guerra. Os jovens, apaixonados, logo se casaram. A união, que durou até 1974, resultou nos três filhos e em três netos. Stella acabou desistindo de ser arquiteta, cursou medicina e virou clínica geral.
Casado novamente, o pintor não dividia o mesmo teto com a segunda parceira quando morreu, aos 82 anos. Jorge Eduardo e a publicitária Rachel Braga preferiam morar em casas separadas. Ele vivia sozinho num apartamento espaçoso e arejado, que também funcionava como ateliê. Disciplinado, pintava todos os dias. Não folgava nem sequer nos fins de semana. Da sala, onde trabalhava, conseguia avistar um lindo pedaço do bairro de Laranjeiras. Uma placa oval na entrada do apartamento anunciava: “Café, Bar e Restaurante Vira-Lata Dormindo”. O artista concebeu o letreiro depois de observar um cachorro que cochilava em plena Copacabana. “Pessoas zanzavam de lá para cá, ônibus tocavam as buzinas, camelôs vendiam bugigangas, e o bicho não dava a mínima”, descrevia o pintor. “Nada abalava a soneca do cãozinho. Quero que o meu apartamento seja assim: tranquilo como um vira-lata dormindo.”

Quando lhe perguntavam se gostava de futebol, Jorge Eduardo respondia: “Não. Gosto do Pelé.” Ele adotava estratégia idêntica sempre que se defrontava com questionamentos sobre partidos, ideologias ou governos: “Não gosto de política. Gosto do Fernando Henrique.” De natureza pacata, cultivava o bom humor e a delicadeza. Evitava, portanto, qualquer discussão acalorada, especialmente em períodos eleitorais. No máximo, zombava do Brasil com piadinhas do tipo: “Os cenários daqui são esplêndidos. A iluminação, maravilhosa. A trilha sonora, de primeira. O elenco, talentoso. Mas a direção… Péssima!”
“Meu pai se enxergava como um sujeito politicamente conservador. Um cidadão moderado, que rejeitava os fanatismos. Ele não tentava impor suas convicções e sabia respeitar as diferenças”, diz Souza. O apelido do cantor Erasmo Carlos – Gigante Gentil – também poderia servir para o pintor, que tinha quase 1m90, porte elegante, sobrancelhas grossas e uma densa barba branca.
A admiração de Jorge Eduardo por Fernando Henrique Cardoso aflorou na época em que o tucano comandava o Ministério da Fazenda (1993-1994). “A hiperinflação maltratava o país. Como praticamente todos os brasileiros, meu pai festejou o êxito do Plano Real, lançado pela equipe de FHC para frear a alta dos preços e reequilibrar a economia”, lembra o designer. Em 1995, assim que Fernando Henrique se tornou presidente da República, o artista resolveu presenteá-lo com a reprodução da bandeira nacional que está na frente do Planalto. Soprou a ideia para um de seus irmãos, o diplomata Carlos Eduardo Alves de Souza. “Meu tio mexeu os pauzinhos até receber sinal verde da presidência”, prossegue o designer. Se o pintor fizesse o “ilujeto”, o tucano o aceitaria. “Não sei em quanto tempo meu pai concluiu a tarefa. Eu chutaria que levou uns três meses. Ele havia fotografado a bandeira no começo da década de 1990. Por isso, tinha uma porção de imagens em que se basear.” O próprio artista entregou o presente para FHC numa cerimônia oficial.
Logo após a entrega, Jorge Eduardo se encontrou com Nelson Piquet, tricampeão de Fórmula 1 que morava em Brasília. A dupla já se conhecia porque o automobilista possuía uma obra do pintor. Em poucos dias, Piquet voaria para o Rio. “Que tal me acompanhar?”, propôs o esportista. “Vou no meu jatinho. Eu mesmo piloto.” O artista, tão fascinado por aviões quanto por carros, nem pensou em recusar a carona. Mais de duas décadas depois, Piquet frequentaria o noticiário como um bolsonarista ferrenho.      
Inicialmente, a pintura Bandeira do Brasil decorou o gabinete de Fernando Henrique no terceiro andar do Planalto. Em seguida, circulou por outras áreas do palácio até descer para o térreo, onde ficava quando os extremistas a atacaram. Muitos pronunciamentos de ministros e presidentes aproveitaram o trabalho como pano de fundo. Daí o “ilujeto” ter aparecido em algumas charges e reportagens. “Às vezes, estava lendo o jornal e me deparava com a foto de um político em que a obra do meu pai servia de cenário”, conta Souza.    
Jorge Eduardo retratou mais cinco bandeiras depois de pintar a de FHC. “Produziu todas sob encomenda – as de Minas Gerais, do Rio de Janeiro, dos Estados Unidos, do Fluminense e do Flamengo”, afirma o designer. “Ele amava bandeiras, mas não por motivos históricos ou algo do gênero. Meu pai as apreciava como objetos. Valorizava a plasticidade, o colorido e a geometria delas.”
Em 1986, quase uma década antes de presentear o tucano, o pintor deu um quadro para outro presidente: François Mitterrand, o socialista que governou a França por catorze anos. Enquanto visitava uma galeria de Paris que exibia trabalhos do brasileiro, o mandatário os elogiou com entusiasmo. Jorge Eduardo fez, então, uma pintura semelhante às da mostra europeia e a ofereceu para Mitterrand. Era a reprodução hiper-realista de um casario vermelho, branco e azul (as cores nacionais francesas) que se situava no bairro carioca da Lapa. Uma janela de madeira, garimpada pelo artista entre restos de demolição, emoldurava o quadro. Quem contemplasse o conjunto teria a sensação de ver a paisagem através de uma vidraça. 

“Eu mesmo gostaria de restaurar a bandeira que os golpistas destruíram. Me sinto à altura do desafio, mas será que o governo toparia?”, indaga Souza. Pintor bissexto, o designer assessorou Jorge Eduardo entre 1991 e 1993. Limpava pincéis, misturava tintas, serrava placas de MDF, preparava telas e, acima de tudo, observava o pai em ação. Foi assim que aprendeu a técnica hiper-realista. “Na época, fiz dois ‘ilujetos’ sozinho: uma garrafa de Coca-Cola e uma de cerveja Heineken.”
Em 2019, Jorge Eduardo aceitou reproduzir outra vez a bandeira do Planalto. Um executivo do setor energético queria uma versão ligeiramente menor que a ofertada para Fernando Henrique. Pagou metade do preço combinado. Iria arrematar o valor tão logo a encomenda estivesse pronta. No entanto, mal iniciou a pintura, o artista ficou doente e morreu. Para honrar a dívida, o filho decidiu concluir o trabalho. Ele passou meses no ateliê do pai. Usava o material de Jorge Eduardo e colocava em prática os segredos que o pintor lhe ensinou. “Não conseguiria imaginar um jeito melhor de me despedir do velho.”
O designer lastima “o sequestro da bandeira nacional” pelo bolsonarismo. “É triste que um símbolo tão importante continue associado à extrema direita. O PT comete um erro de marketing quando prioriza o vermelho. Não tenho nada contra o vermelho, claro. Mas as cores do país – o verde, o azul e o amarelo – deveriam ganhar cada vez mais espaço no campo progressista. A camisa da Seleção e a bandeira do Brasil são de todos nós e não apenas dos que combatem a esquerda.”
Souza admite que já se deixou seduzir pelo antipetismo. “A retórica da Operação Lava Jato, que tachava o Lula e seus aliados como os maiores corruptos da nação, me balançou. Acreditei naquilo e saí às ruas para exigir o impeachment da Dilma. Fui mudando de opinião sobretudo por causa de minha mulher, Patrícia. Ela me abriu os olhos: ‘Vá se informar, pô! Vá ler! Questione os preconceitos da classe média. Escute as minorias. Preste atenção nas favelas, nos sem-teto, nas crianças fumando crack. O mundo não se resume à nossa bolha!’” Convencido de que precisava se repaginar, o designer votou em Fernando Haddad, do PT, na eleição presidencial de 2018. Quatro anos depois, apertou o 13, de Lula. “Jamais escolheria o [Jair] Bolsonaro. Seria inadmissível, o fim da picada!”
Diferentemente do irmão, a oncologista Adriana Alves de Souza Scheliga diz que não se interessa por política. “Dou muita palestra sobre medicina. Tenho de me atualizar constantemente na área e quase não sobra tempo para outros temas. Sem contar que ando bem desanimada com os políticos. A gente elege deputado, senador, prefeito, governador, presidente, e as coisas não mudam. Para piorar, as fake news confundem todo mundo. Não sabemos mais o que é verdade ou mentira quando lemos algo sobre um candidato, uma sessão no Congresso ou um programa de governo. A separação entre Judiciário, Executivo e Legislativo já não existe. Veja os ministros do Supremo Tribunal Federal: me parecem bastante tendenciosos. Eles não fazem justiça de verdade. Interferem nos demais poderes sem que ninguém os impeça. Como a gente vai se entusiasmar com a política diante de tantos despropósitos?”
Ainda que procure manter distância do assunto, a médica de 62 anos afirma não gostar do PT e de Lula. “Nunca votei no partido nem pretendo votar. Difícil esquecer as roubalheiras… No passado, pesquisei muito sobre socialismo e comunismo. São teorias lindas. Pena que não funcionem. As boas intenções acabam descambando para a tirania e a corrupção.” Ela rejeita, porém, a pecha de bolsonarista. “Combater o petismo não significa apoiar o bolsonarismo. Eu me defino como uma conservadora independente. Não considero o governo do Bolsonaro um desastre. Ocorreram avanços, especialmente na seara econômica. Mas também não defendo a gestão dele com unhas e dentes. O Bolsonaro é uma figura complexa, um sujeito turrão… ”
Nas eleições de 2022, a oncologista anulou o voto. “Faz tempo que anulo. Nenhum político me representa, nenhum presta. Por mim, as eleições deveriam ser facultativas. Voto obrigatório?! Países realmente democráticos permitem que o povo escolha se vai ou não comparecer às urnas. Eu só compareço porque tenho que estar com o título de eleitor em dia para renovar meu passaporte. Frequento congressos internacionais. Não posso correr o risco de me barrarem nos aeroportos.”
A médica conta que ficou deprimida quando soube dos ataques à pintura de Jorge Eduardo. “Nada justifica aquele quebra-quebra. Foram atos insanos, sem qualquer sentido. Os governos mudam, a história se altera, mas a arte deve sempre permanecer. Não compreendo quem invade museu para arruinar um Van Gogh, um Picasso… Senti uma tristeza imensa na hora em que vi o legado do meu pai destruído. Suspeito até que havia infiltrados ali. As manifestações da direita costumavam ser pacíficas. Por que, de repente, os ânimos se acirraram tanto? Me soa estranho.”
O filho caçula do artista, Paulo Alves de Souza, um marceneiro de 54 anos, preferiu não conversar com a piauí. Em fevereiro, a revista entrevistou Rogério Carvalho, diretor-curador dos palácios presidenciais, sobre o destino das vinte obras atacadas no Planalto. Ele disse que o governo enviara a maioria das peças para a reserva técnica, mas ainda não começara a reparação de nenhuma. Somente a tela As Mulatas e uma escultura de Frans Krajcberg continuavam expostas, mesmo com avarias. Carvalho também descartou que familiares de Jorge Eduardo possam recuperar a pintura Bandeira do Brasil. “Não convém que o autor de um trabalho danificado ou seus assistentes participem do restauro. É um princípio básico da conservação artística. Restaurar implica uma série de conceitos e habilidades que pintores ou escultores geralmente não dominam.” Por fim, o curador afirmou que o governo iria abrir “um processo licitatório” para viabilizar o reparo dos bens. “Ligue outra vez em março”, sugeriu. “Devo ter novas informações.” Desde então, Carvalho não atendeu mais a piauí, nem por telefone, nem por e-mail.
(revista piauí)

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

O amigo do Renan

Em novembro, vídeo com cena de uma sala de aula numa escola pública se espalhou pelas redes sociais. Conheça a história por trás das imagens

“Está tudo em ordem com o bebê, doutor?” Mal deu à luz num hospital público de São Paulo, a artesã Simone Cristina Rosa Cavallari fez a pergunta que qualquer mãe faz. “Está, sim. O menino parece saudável e herdou os olhos puxadinhos do pai”, respondeu o médico. Olhos puxadinhos?! “Por que o espanto? O pai não é nissei?”, indagou o obstetra. A artesã esclareceu que o pai – um metalúrgico – não tinha nem uma gota de sangue japonês, ou coreano, ou chinês. O médico, então, se alarmou. “Precisamos examinar melhor a criança”, disse, pouco antes de levá-la embora. A mãe só reviu o bebê 48 horas depois. Foi quando soube que o garoto nascera com Síndrome de Down. Por isso os olhos amendoados. Ele também sofria de problemas cardíacos, decorrentes da alteração genética.
A artesã não aceitou a situação. Retornou para casa bastante deprimida e mergulhou no negacionismo. Falava que o menino não lhe pertencia. “Trocaram os bebês. O meu continua na maternidade e logo vai chegar”, teimava. Rejeitou tanto a criança que abdicou de todos os cuidados neonatais. Não conseguia nem sequer amamentar o recém-nascido. “Eu já tinha uma filha de 4 anos, a Larissa. Ela é muito querida, mas fruto de uma gravidez inesperada”, conta Simone. “Como desejava compensar as dificuldades da primeira gestação, programei cada detalhe da segunda – e a Síndrome de Down, claro, passava longe dos meus planos. Talvez em razão disso reagi tão mal à notícia.”
Por ironia, a própria artesã havia enfrentado rejeição na infância. “Fui entregue para uma tia assim que nasci.” Os pais de Simone, paupérrimos, não podiam criá-la porque moravam na rua – mais precisamente, na Praça da Sé, em pleno Centro paulistano. Mesmo depois que se aprumou e arranjou um teto, o casal não pegou a garota de volta. “Minha mãe, uma baiana de pele bem negra, arrumou trabalho como empregada doméstica. Já meu pai… Não sei o que fazia, só sei que se viciou em jogo. Era branco, italiano, e migrou para o Brasil com alguns meses de idade. Eles viveram juntos por um tempão e tiveram mais três filhos – duas meninas e um menino.” A artesã costumava visitar os irmãos até completar 10 anos. “A gente se afastou quando minha mãe morreu. Na ocasião, meu pai não segurou a barra e decidiu ficar somente com uma filha. Confiou a guarda das outras duas crianças para conhecidos, e a família se dispersou.” Simone reencontrou as irmãs apenas recentemente, depois de procurá-las pelo Facebook, mas ainda ignora o paradeiro do irmão.
Um susto evitou que a artesã desse prosseguimento à sina familiar do abandono. A rejeição pelo recém-nascido já durava sessenta dias quando Simone percebeu que o bebê iria despencar do trocador. “Eu estava na cama, totalmente sem ânimo. A pessoa que cuidava do garoto saiu do quarto para tirar umas roupas do varal. Ele se mexeu em cima do trocador – uma peça alta, daquelas com banheira. Senti que o moleque iria cair. Aflita, pulei da cama como um gato e impedi a queda.” Daí em diante, o cenário mudou. Simone se apaziguou e pronunciou o nome do filho sem hesitação pela primeira vez: Renan. “Difícil explicar o que aconteceu. De repente, algo se abriu dentro de mim. Acho que Deus me presenteou com um milagre.”
Hoje Renan tem 21 anos e é capaz de executar várias tarefas sozinho: comer, se vestir, escovar os dentes, cortar as unhas, tomar banho. Compreende quase tudo que lhe dizem, mas se expressa monossilabicamente. Embora reconheça letras e números, não consegue ler nem calcular. “Para minha sorte, é um rapaz sorridente, calmo e amoroso”, elogia a mãe.

Em 2008, quando chegou a hora de Renan iniciar a vida escolar, a artesã o matriculou num colégio municipal. À época, muitas instituições comuns de ensino recusavam alunos com deficiência. Imperava a noção de que crianças e adolescentes “especiais” (termo agora inadequado) aprenderiam mais se frequentassem estabelecimentos segregados, onde convivessem apenas entre si, sem a presença de colegas “normais” (expressão também repudiada atualmente). Em paralelo à escola municipal, Renan fazia terapia ocupacional gratuita na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae).
O menino peregrinou por sete colégios públicos até terminar o oitavo ano do ensino fundamental. “Era complicado…”, relembra Simone. “As escolas me decepcionavam. Nenhuma se mostrava preparada para receber garotos como meu filho.” Ora Renan amargava provocações dos estudantes, ora sofria preconceito dos parentes deles. “Certa vez, um grupo de mães organizou uma manifestação na porta de um dos colégios. Entre xingamentos e ameaças, as mulheres tentavam obstruir a entrada de alunos com deficiência. O Renan só furou o bloqueio depois que pedi ajuda policial.”
Não bastasse, nem sempre os professores davam a atenção necessária para o menino. Sobrecarregados, acabavam isolando Renan. “Botavam o garoto no fundo da classe, rodeado de carteiras, e o deixavam ali, com alguns brinquedos. Um dia, visitei uma das escolas sem avisar e flagrei a cena. Fiquei tão enlouquecida que agredi a professora. Mais tarde, me bateu um arrependimento tremendo. Entendi que a professora não agia daquele jeito por maldade. As demandas do meu filho a desnorteavam. Ela não tinha capacitação para cuidar de um aluno como o Renan enquanto toureava uma sala com 35 crianças.”
As adversidades cessaram somente no primeiro semestre de 2019, quando Simone achou a Escola Estadual Lindamil Barbosa de Oliveira, em Guarulhos. A artesã trocara a capital paulista pelo município da Grande São Paulo havia poucos meses. Foi morar num conjunto habitacional com Renan, Larissa e o caçula, Nicolas. Estava separada do marido desde 2011. “O Lindamil fica bem perto do meu apartamento. Pus o Renan lá por ser mais prático e tive uma grata surpresa.”

A assimilação de estudantes com deficiência pelo sistema regular de ensino começou 33 anos atrás. Uma lei federal de 1989 abriu a possibilidade de aqueles alunos frequentarem colégios públicos e particulares. Até então, crianças e adolescentes com tais características se educavam em instituições especializadas (e segregadas) ou em casa. A lei de 1989, no entanto, afirmava que a inclusão só deveria ocorrer caso os estudantes demonstrassem capacidade de se integrar às classes comuns. O pressuposto deixava uma brecha para que as instituições especializadas permanecessem como primeira opção.
Depois, à medida que as discussões jurídicas e pedagógicas avançaram, prevaleceu a ideia de que todos os alunos cegos, surdos, paraplégicos, autistas ou com qualquer outra condição “diferente” têm o direito de ingressar em escolas regulares. Consequentemente, nenhuma delas pode recusá-los. Uma série de dispositivos legais sustenta a premissa. Os dois mais importantes são um decreto presidencial de 2009, que incorporou à Constituição um tratado da Organização das Nações Unidas sobre o assunto, e a Lei Brasileira de Inclusão, sancionada em 2015.
Para atender os estudantes com deficiência, os colégios precisam tomar inúmeras atitudes, como:
* ajustar seus projetos educacionais à nova realidade;
* garantir que professores e demais funcionários recebam formação apropriada;
* oferecer acessibilidade arquitetônica e comunicacional;
* assegurar que cuidadores ajudem as crianças ou os jovens menos autônomos;
* criar salas de recursos multifuncionais, onde os alunos possam realizar atividades complementares, fora dos horários de aula – por exemplo: aprender a língua de sinais ou a leitura em braile.
Ainda hoje, porém, há escolas que desrespeitam a legislação. Umas se negam a aceitar os estudantes com deficiência. Outras até os acolhem, mas não providenciam as condições adequadas. O descumprimento das regras se dá principalmente pela ausência de fiscalização.
Mesmo assim, o quadro vem melhorando. Em 2010, 69% dos alunos com deficiência matriculados nos ensinos infantil, fundamental, médio e profissionalizante do país ocupavam classes comuns. Uma década depois, a taxa ultrapassou os 88%. Dos colégios que abrigavam aqueles estudantes em 2010, 12,5% tinham salas de recursos multifuncionais e 25%, banheiros adaptados. Em 2020, os índices subiram para 28% e 56%, respectivamente. O levantamento é do Anuário Brasileiro da Educação Básica.
O presidente Jair Bolsonaro quis barrar o processo de inclusão no ano retrasado, quando baixou um decreto que tornava facultativa a matrícula de crianças e adolescentes com deficiência em escolas regulares. Ele cedia à pressão das instituições especializadas, ainda existentes, e de colégios privados que rechaçam a integração por razões ideológicas ou financeiras. O decreto gerou protestos de educadores e foi suspenso pelo ministro José Antonio Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal. O plenário da Corte ratificou a suspensão em dezembro de 2020. Desde então, o STF faz consultas públicas sobre o tema. Pretende se inteirar mais da questão antes de tomar a decisão final.

Na Escola Lindamil Barbosa de Oliveira, Renan dispunha de banheiro adaptado e uma cuidadora que o acompanhava fora da classe. Enquanto assistia às aulas, contava com o respaldo dos professores e de colegas que se voluntariavam para auxiliá-lo. O jovem era avaliado de maneira diferenciada, conforme suas potencialidades. Ele repetiu algumas séries durante a trajetória estudantil, quase sempre por falta, já que os problemas cardíacos muitas vezes o prendiam em casa.  Nesta segunda-feira, 12 de dezembro, finalmente se formou no ensino médio. Estudava pela manhã e, de tarde, ia à sala de recursos multifuncionais. Embora não more longe do colégio, necessitava de transporte. “É que, no caminho, tem uma subida. O Renan se cansava demais quando atravessava o ladeirão a pé”, explica Simone. O próprio Lindamil se empenhou para arranjar, junto à Secretaria Estadual da Educação, a van gratuita que conduz o rapaz.
“Não encontrei apoio semelhante em nenhuma outra escola”, afirma a artesã. “Os coordenadores, professores e cuidadores do Lindamil nunca deixaram de me escutar e orientar. Até o pessoal da cozinha seguia minhas recomendações sobre a dieta do Renan.” O colégio – que reúne 1.302 estudantes – admite alunos com deficiência desde a fundação, na década de 1990. Em 2022, abrigou 27 deles. “Como a equipe pedagógica não conseguia monitorar a garotada o tempo inteiro, uma dúvida martelava na minha cabeça: será que os colegas tratavam bem o Renan nos momentos em que não havia adultos de olho? Será que o excluíam? Será que zombavam do meu filho? Não adiantava perguntar para o Renan. Ele não saberia responder.”
Uma coincidência acabou tranquilizando a artesã. Há dois meses, Nicolas – o caçula da família – passeava com uma amiga quando a moça avistou uma conhecida, Esther. Os três engataram um papo animado. Nicolas gostou de Esther e pediu o WhatsApp dela. Poucas semanas depois, descobriu que a adolescente não só estudava no Lindamil como pertencia à turma de Renan, o 3°A. “Meu irmão é bagunceiro?”, sondou Nicolas pelo aplicativo. “O Renanzinho? Imagine! É super de boas! O nosso xodó”, contou Esther, que logo compartilhou uma porção de fotos e vídeos. As imagens exibiam Renan todo alegre, cercado de estudantes e em diversas situações: na sala de aula, no pátio, na quadra esportiva ou no laboratório. “Está vendo aquele grandão ali?”, indicou a adolescente. “É o melhor amigo do Renanzinho. Os dois não se largam.”
O grandão tem 17 anos, 1,75 metro de altura, porte atlético e um nome igualmente robusto: Pedro Henrique Cosmo Germano Beserra de Souza. “Ele adotou o Renanzinho. Cuida do moleque sem ninguém pedir. Faz por prazer mesmo”, prosseguiu Esther. Boquiaberto, Nicolas levou a notícia para Simone e lhe mostrou as imagens. A artesã se emocionou. “Muita gente pensa que os jovens de hoje carecem de empatia e valorizam apenas os bens materiais: boné, smartphone, videogame, tênis de marca… Ou que preferem andar com a galera mais popular da escola. Os colegas do meu filho estão provando que não é sempre assim. Só me restava agradecê-los.”
Simone preparou, então, uma cesta de café da manhã para Pedro. Impossibilitada de presentear os 39 integrantes da classe, a artesã homenagearia o melhor amigo de Renan e, por tabela, os demais alunos. “Às 8h30 do dia 19 de outubro, apareci de surpresa no colégio.” Foi um alvoroço. Simone e Pedro se conheceram naquele instante. Esther, a única que soube antes da homenagem, gravou tudo pelo celular. “Eu não planejava divulgar o vídeo”, diz a artesã. “Queria guardá-lo como recordação e pronto. Só que, depois, refleti: por que não espalhar para todo mundo que o Pedro existe? Talvez o bom coração dele inspire outros jovens.” Em novembro, Simone publicou o vídeo no Instagram e no TikTok. Deu certo. Os posts alcançaram pelo menos 5,3 milhões de visualizações e 515 mil curtidas.

“Sou um menino chorão”, define-se Pedro. “O vídeo deixa muito claro, né? O engraçado é que filmes, séries ou músicas não me arrancam lágrimas. Só a realidade me comove desse jeito. Se vejo uma despedida na rodoviária, por exemplo, abro o berreiro.” O rapaz tem um modo inusitado de falar, que mescla a dicção paulista com a cearense. Ele pode encaixar numa mesma frase a gíria “mano” e o verbo “aperrear”. “Nasci em Guarulhos, mas toda a minha família vem de Lavras da Mangabeira, uma cidadezinha no interior do Ceará. Daí o meu sotaque diferentão.”
Pedro entrou no Lindamil em 2019, como Renan, e logo se destacou. Primeiro, por ser ótimo aluno. “Faço a linha nerdzinho. Sento bem em frente à lousa, presto atenção nas aulas e nunca tiro notas vermelhas.” Depois, por revelar um imenso talento para entreter. “Curto zoar o povo. Tipo: cutuco um, encho o saco de outro, conto piadas, invento dancinhas e arrisco umas loucuras. Simplesmente adoro quando a turma cai na risada.” Das loucuras que arriscou, uma já virou lenda. O adolescente se fantasiou de Chapolin Colorado e saiu pelo colégio repetindo o bordão do personagem: “Não contavam com minha astúcia!” Os colegas, em geral, aprovam as palhaçadas – tanto que o elegeram representante de classe.
Outra marca registrada de Pedro são as camisas extravagantes. “Tenho uma coleção delas: com estampas de flores, coqueiros, frutas, bichinhos, arco-íris ou folhagens. Compro pela internet e uso na escola. Gosto de variar o guarda-roupa. O pessoal repara, elogia e até me pede dicas de moda.”
O jovem prestou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em novembro. “Estava tão ansioso que me lasquei. Fui péssimo. Mó decepção…” Ele sonha estudar história por considerar importante “aprender com os erros do passado”. “Assim que terminar a faculdade, pretendo lecionar. Sabe onde? No Lindamil! O colégio me proporcionou tanta coisa da hora… Sinto vontade de devolver. Respeito bastante o conceito de gratidão.”
Se dependesse da mãe, a dona de casa Maria Aparecida, o filho mais novo abraçaria o sacerdócio ou a medicina. “Como sou muito bonito para me tornar padre e muito mole para me tornar médico, escolhi a carreira de professor”, brinca Pedro. Viúva de um caminhoneiro, com quem gerou o adolescente e outro rapaz, Maria Aparecida ainda derrapa na matemática, na leitura e na escrita. Por sugestão do caçula, retomou os estudos em 2021. “É lindo acompanhar a evolução dela. Também é lindo constatar o avanço dos colegas que já ajudei em sala de aula. Sempre que possível, esclareço as dúvidas da moçada. Explico os pontos complicados das matérias com linguagem coloquial e exemplos simples, do nosso cotidiano. Uma vez, depois de ouvir meus esclarecimentos, um garoto tirou nota maior do que a minha na prova. ‘Uau!’, pensei. ‘Tenho mesmo vocação para lecionar.’”
Na turma do futuro professor e de Renan, havia mais dois alunos com deficiência – um autista e uma cadeirante. “Eu procurava incentivar os três”, diz Pedro. “Não sei bem por que, mas sou um cabra naturalmente inclusivo. Quero que todos participem das minhas bagunças. Odeio aquele negócio de tratar a diferença com desdém.” O adolescente reconhece, no entanto, que desenvolveu uma afeição especial por Renan. “A gente se entendeu logo de cara. Ele é incrivelmente simpático. Enxergo o Renanzinho como um irmão.” A dupla criou maneiras peculiares de se comunicar. A mais engraçada: em plena aula, Pedro grita “rapaaaaaaaaaaaz!”, à semelhança do efeito sonoro que pontua o Programa do Ratinho no SBT. É o mote para que Renan se assanhe e imite o amigo: “Rapaaaaaaaaaaaz!”
Nas horas vagas, Pedro costuma ler romances distópicos (“amei 1984, do George Orwell”), ver ficções científicas e escutar músicas tão díspares quanto sucessos do axé e canções de Padre Marcelo Rossi. Curiosamente, o jovem não liga para as redes sociais. Está no Twitter, no Instagram e no TikTok, mas os frequenta pouco. “Tenho alma de velho. Me atrapalho com o mundo digital.” Ele não postou nem mesmo o vídeo que o homenageava. “Tento seguir um ensinamento de Jesus: ‘Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita.’ Conhece?” A discrição não evitou que o adolescente recebesse uma infinidade de elogios. Muitos dos que assistiram à homenagem na internet acessaram os perfis de Pedro para enaltecê-lo: “Continue assim, campeão! Não perca a essência, cara! Queria andar com você no recreio.”
Em outubro, o jovem arrumou uma namorada pela primeira vez. Ela se chama Nicoly e também estudava no Lindamil. “Se os cuidados com o Renanzinho empatavam o namoro? Claro que não! Sempre dizia à Nicoly: ‘Meu coração é grande, mulher! Cabe todo mundo.’” Pedro gostaria de se manter próximo do amigo mesmo depois de finalizar o ensino médio e sair da escola. Deseja, ainda, legar para o companheiro a paixão pelo Corinthians. “Pode escrever: um dia, o Renanzinho aprenderá a berrar ‘vai, Curintia!’”

Como artesã, Simone confecciona bonecos de cartolina emborrachada e isopor, que batizou de Fofuchas. “A maioria dos meus clientes os utiliza em decoração de festas infantis.” Ela exerceu vários ofícios antes de enveredar pelo artesanato. Foi empregada doméstica, babá, cuidadora de idosos, operária, caixa de supermercado e bombeira civil. Durante cinco semestres, cursou uma faculdade privada de direito com bolsa parcial da Educafro, instituição sem fins lucrativos que luta para elevar a presença de negros no ensino superior brasileiro. “Parei por razões financeiras. A bolsa cobria metade das mensalidades. Eu precisava bancar o resto. Infelizmente, não consegui.”
No fim de 2021, a artesã – que acaba de completar 47 anos – passou mal dentro de casa, fez exames laboratoriais e detectou uma hepatite C em estágio avançado. O quadro evoluiu para uma cirrose hepática aguda, inflamação crônica e incurável que compromete as atividades do fígado. Em virtude da doença, Simone enfrentou três cirurgias e deve tomar diariamente um remédio caríssimo, que combina os fármacos velpatasvir e sofosbuvir. Uma caixa do medicamento, com 28 comprimidos, custa entre 46 mil e 52 mil reais. “A droga está em falta na rede pública. Por isso, acionei a Justiça para que o governo assuma os meus gastos.” Enquanto aguarda a sentença, a artesã tenta arrecadar dinheiro pelo link https://www.vakinha.com.br/3004029. Quando soube da enfermidade, Pedro resolveu ajudar. Pediu doações em grupos de WhatsApp e afixou cartazes sobre a campanha nas salas do Lindamil.
Unidos por Renan, o adolescente e Simone têm diferenças significativas. Pedro é católico, devoto de Padre Cícero e cerimoniário, o responsável pela organização das missas numa paróquia de Guarulhos. Como a mãe, admira o PT e votou em Lula para presidente. Já a artesã é evangélica pentecostal desde os 15 anos e apertou o 22, de Jair Bolsonaro, nas eleições de outubro. “Quem ama o meu filho merece toda consideração, independentemente de preferências religiosas ou políticas”, diz Simone. “Verdade… O Renanzinho está acima de qualquer polarização”, emenda Pedro.  
(revista piauí)

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