Como Ana Maria Gonçalves escreveu Um defeito de cor e por que o romance se tornou um clássico
Quem procurar comentários ou posts da escritora mineira Ana Maria Gonçalves em qualquer rede social vai quebrar a cara. Ela nunca frequentou o X, o Instagram ou o TikTok. Já flanou pelo Facebook, mas o abandonou em maio de 2010. Tampouco cedeu às seduções do WhatsApp, Telegram ou Messenger. “Todo mundo diz que as mídias sociais geram ansiedade e tiram a concentração. Vou entrar no inferno para quê?”, justifica.
A autora do romance Um defeito de cor – clássico da literatura brasileira sobre a escravidão – até possui celular, só que costuma esquecê-lo desligado e nem sempre o leva à rua. Por incrível que pareça, continua gostando de aparelhos fixos. Daí não abdicar da linha telefônica que serve o apartamento de 90 m² onde mora sozinha, no bairro paulistano da Pompeia. Embora disponha de e-mail, dificilmente responde com rapidez às solicitações que fãs, jornalistas, estudantes e organizadores de feiras literárias lhe mandam sem trégua. “Sou uma ermitã digital”, resume. Mesmo assim, em 18 de julho de 2023, enquanto se encontrava com um grupo de leitores no Rio de Janeiro, empregou uma gíria muito apreciada por influencers: “Zerei a vida, gente!”
A expressão se origina dos videogames. Zerar um jogo significa vencer todas as etapas dele. Por associação, zerar a vida é realizar uma proeza ou conquistar algo bastante almejado. “Primeiro, o destino me concedeu a felicidade de estar perto da Angela Davis num show da Elza Soares. Agora Um defeito de cor se tornou enredo da Portela. O que ainda posso querer? De fato, zerei a vida. Não preciso fazer mais nada”, reiterou a escritora diante de uma plateia majoritariamente negra, constituída por dezenove mulheres e apenas dois homens. Descendente de pretos, indígenas e brancos, a autora de 53 anos e olhos esverdeados também se considera negra, apesar de ter a pele menos escura que a de vários familiares.
Passava um pouco das sete da noite quando a conversa com os 21 leitores começou na Portelinha, antiga quadra da centenária escola de samba que hoje funciona como centro cultural. É ali que os integrantes da velha guarda se reúnem para cantar, tocar, dançar e bater papo. Não à toa, em outubro de 2022, a Portelinha ganhou o status de patrimônio imaterial do estado. A escultura de uma águia observa todo o galpão, onde predominam o azul e o branco, cores oficiais da agremiação. A ave que simboliza a escola está pendurada no teto, de asas abertas, bico em riste e garras crispadas. Alguns retratos de portelenses ilustres dividem o recinto com imagens de santos e uma galeria de troféus.
Naquela terça-feira chuvosa, os termômetros marcavam 20°C, temperatura amena para os padrões cariocas. A romancista, porém, reclamava de calor. Mal se posicionou à frente dos leitores, puxou um leque da bolsa e se abanou freneticamente. “É a menopausa”, comentou, rindo. “De repente, um fogacho invade o meu corpo e… Uma calamidade!” Os responsáveis pelo encontro logo se mobilizaram e arranjaram um ventilador de pedestal. “Graças a Oxalá!”, festejou a convidada.
Com 1,58 metro de altura, Gonçalves parece crescer sempre que fala em público. Tímida por natureza, sofre uma rápida metamorfose e revela habilidades estratégicas. Consegue ser extrovertida, afetiva e espirituosa. Foge do linguajar hermético e sabe o momento certo de demonstrar humildade ou imodéstia. Volta e meia, reverencia seus antepassados e personalidades negras que admira. Foi o que fez na Portelinha quando mencionou Elza Soares e Angela Davis. Uma década atrás, a cantora e a intelectual americana – figura central da luta contra o racismo – compareceram à sétima edição do Festival Latinidades, em Brasília. A romancista também participou do evento, como palestrante. Na noite em que Elza se apresentou, calhou de Davis e Gonçalves acompanharem o show lado a lado. A coincidência inebriou a escritora.
Uma honraria ainda maior a aguardaria em 12 de fevereiro de 2024. No Sambódromo do Rio, sob a batuta dos jovens carnavalescos negros André Rodrigues e Antônio Gonzaga, a Portela homenagearia Um defeito de cor. O romance histórico de 951 páginas exigiu da autora cinco anos de trabalho árduo. Ela gastou os dois primeiros só em pesquisas. Levou mais um ano para redigir a versão original da trama e outros dois na batalha de reescrevê-la. “Tenho imaginação fértil. Se esbarro em alguém interessante num parque ou numa praça, não resisto. Vou logo inventando um novelão sobre o desconhecido. Projeto cenas, diálogos, intrigas”, contou a romancista horas antes de visitar a Portelinha. “No entanto, jamais imaginei ver meu livro em plena Marquês de Sapucaí. Um tijolão daqueles, que retrata justamente a diáspora negra para o continente americano, chegar à principal festa afro-brasileira… É ou não uma maravilha?”
Um defeito de cor figura entre os romances mais longos da literatura nacional. Passa-se durante quase todo o século XIX e enfoca a trajetória mirabolante da africana Kehinde (pronuncia-se “quéindé”). A personagem, escravizada na Bahia, compra a liberdade depois de inúmeras desventuras e ascende à condição de empresária. Coalhado de reviravoltas, o livro entretém, arranca lágrimas e indigna à medida que oferece um panorama do que significa ser negro numa sociedade escravagista.
Em 2006, mal a obra surgiu, o professor e crítico literário Idelber Avelar, do blog O biscoito fino e a massa, definiu Kehinde como o “Riobaldo-Diadorim dos subterrâneos da história brasileira”, uma referência a Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Um ano depois, o épico de Ana Maria Gonçalves faturou o prestigioso Casa de las Américas, prêmio outorgado pela instituição cubana de mesmo nome. Em 2022, no bicentenário da Independência, uma enquete da Folha de S.Paulo com 169 intelectuais colocou Um defeito de cor entre os duzentos livros fundamentais para a compreensão do país. A narrativa mereceu o sétimo lugar da lista. Quarto de despejo, célebre diário que Carolina Maria de Jesus publicou há seis décadas, conquistou o primeiro.
As aventuras de Kehinde não angariaram somente o apreço da intelectualidade. Em 13 de maio de 2020, enquanto bolsonaristas relacionavam a abolição da escravatura à benevolência da princesa Isabel e não à luta dos negros, o hoje presidente Lula elogiou o romance. “Uma obra que li na prisão e recomendo sobre a questão do racismo é Um defeito de cor. Tem quase mil páginas, mas vale muito a pena”, enfatizou no X, que à época ainda se chamava Twitter. O ator Lázaro Ramos frequentemente se declara fã da trama. “É meu livro definitivo – o que mais dou de presente, o que mais indico, o que mais me abriu o olho para a situação dos pretos em nosso país”, costuma dizer.
Quando lançou Um defeito de cor, Gonçalves estava com 35 anos, não exibia grandes credenciais acadêmicas e praticamente debutava no mercado. Antes, escrevera Ao lado e à margem do que sentes por mim, romance independente que despertou pouca atenção da crítica. Embora sem um currículo notável, a autora ousou abraçar um projeto bem mais ambicioso e logrou que um conglomerado influente, o Grupo Editorial Record, topasse publicá-lo. As peripécias de Kehinde também se destacam por antecederem as discussões sobre negritude que atualmente incendeiam o país. Com um quê de pioneirismo, o livro logo seduziu um número expressivo de leitores e, em dezoito anos, não perdeu o fôlego comercial. Vendeu mais de 150 mil exemplares e alcançou a 41ª edição.
Entre setembro de 2022 e agosto de 2023, o Museu de Arte do Rio (mar) sediou uma bem-sucedida exposição inspirada na saga. Sob a curadoria de Amanda Bonan, Marcelo Campos e da escritora, a mostra juntou aproximadamente 370 trabalhos de 130 artistas, a maioria negros, e atraiu 165 mil visitantes. Depois da temporada carioca, o Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), em Salvador, abrigou a exibição por quatro meses. Cerca de 127 mil pessoas a prestigiaram. Em abril, o evento desembarcou no Sesc Pinheiros, de São Paulo, onde permanecerá até o princípio de dezembro.
O sucesso inesperado do épico assustou e travou a autora, que ainda não conseguiu terminar um novo livro. De 2006 para cá, Gonçalves concebeu espetáculos teatrais, contos e roteiros cinematográficos, mas não arrematou nenhum dos trinta romances que começou. Uns avançaram bastante, sobretudo o juvenil Quem é Josenildo?, híbrido de policial e ficção científica. Outros se limitaram à sinopse. “Durante muito tempo, Um defeito de cor me pesou. Eu receava virar prisioneira dele”, confessou numa das cinco entrevistas por vídeo que concedeu à piauí. “Nunca o reneguei, claro, mas o enxergava como uma montanha altíssima que deveria escalar duas vezes. Pensava: tenho de escrever algo tão consistente quanto Um defeito de cor. Só que, no fundo, sabia estar me impondo uma tarefa irrealizável. Agora vejo as coisas com mais leveza porque aprendi uma lição essencial: a literatura é uma arte em que a prática não conduz obrigatoriamente à evolução. Hoje você pode criar uma história excelente e, amanhã, uma péssima. Não existe a certeza – nem a necessidade – de subir degraus. O importante é persistir no ofício e fazer o melhor, dentro do possível.”
Livre do encargo de superar Um defeito de cor, Gonçalves se sente mais à vontade para assumir a missão de “guardiã do romance”. “Entendi que preciso tomar conta dele com o máximo de dedicação e alegria. Divulgá-lo sempre e me orgulhar dos voos incríveis que alçou.”
Apesar de caudaloso, o livro se divide em apenas dez capítulos. O maior totaliza 162 páginas. O menor, 46. Cada capítulo é introduzido por um provérbio africano, que funciona como um oráculo e antecipa ou comenta de modo um tanto cifrado o conteúdo que se lerá a seguir. “A sola do pé conhece toda a sujeira da estrada”, apregoa um dos adágios. “A espada não poupa o próprio ferreiro”, adverte outro. “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que jogou hoje”, sentencia um terceiro. Para facilitar a leitura, os capítulos se compõem de várias partes, iniciadas por subtítulos.
Nem Ana Maria Gonçalves é capaz de informar quantos personagens há no romance. A escritora já tentou enumerá-los, mas desistiu. “Contei uns 450 até o oitavo capítulo. Depois, entreguei os pontos.” A protagonista Kehinde narra a história inteira na primeira pessoa, em ordem cronológica, com uma linguagem simples e sem diálogos. Sempre que deseja reproduzir uma conversa, lança mão do discurso indireto. Ela se identifica como integrante do povo jeje-maí e diz que nasceu em 1810, no então Reino do Daomé, atual República do Benim. Quando pequena, falava dois idiomas: o eve-fon e o iorubá. Morava na cidade de Savalu com a mãe, a irmã gêmea (Taiwo), o irmão mais velho (Kokumo) e a avó (Dúrójaiyé). As crianças não tinham o mesmo pai. O do menino exercia a função de ministro real e ignorava o filho. O das meninas sumiu tão logo engravidou a parceira.
Na cultura iorubá, gêmeos são denominados ibêjis. Conforme a tradição, o bebê que deixa primeiro o ventre da mãe deve se chamar Taiwo, independentemente do sexo. O que sai por último recebe o nome de Kehinde. Acredita-se que, embora chegue na frente, Taiwo seja o caçula. Dentro da barriga materna, Kehinde manda que o irmão mais novo o preceda para verificar se o mundo vale a pena. Após uma ligeira averiguação, Taiwo se comunica espiritualmente com o primogênito, que recusa o nascimento caso não considere as notícias animadoras.
A tradição também preconiza que ibêjis trazem sorte e riqueza. Entretanto, na família da protagonista, o vaticínio não se cumpriu. Quando Kehinde beirava os 7 anos, cinco guerreiros do rei invadiram a casa dela para levar algumas galinhas. Os soldados agiam por ordem do tirânico soberano. Durante o confisco, mataram Kokumo, além de estuprarem e assassinarem a mãe das crianças. Não satisfeitos, exigiram que as gêmeas os masturbassem. Dúrójaiyé, a avó, presenciou tudo, aterrorizada.
Depois de os guerreiros se afastarem, a idosa enterrou os mortos e abandonou Savalu com as meninas, que supunham compartilhar a mesma alma. O trio se refugiou na cidade litorânea de Uidá, mas acabou sequestrado por tripulantes de um navio negreiro. Junto de outros cativos, a avó e as netas zarparam sem saber o destino exato da jornada. Navegaram pelo Oceano Atlântico em condições tão ruins que Taiwo e Dúrójaiyé morreram durante o trajeto. Quando finalmente chegou à Ilha dos Frades, na Bahia, Kehinde recebeu a notícia de que um padre subiria a bordo e batizaria os pretos. Nenhum dos forasteiros deveria pisar em terras brasileiras se não rejeitasse as crenças pagãs, adotasse o catolicismo e trocasse de nome. Fiel às divindades da África, a garota arrumou um jeito de escapar do batismo.
Ela e os demais negros ficaram na ilha o tempo necessário para se recuperarem da viagem insalubre. Bem tratados pelos captores, ganharam peso, recobraram o viço e se tornaram mercadorias cobiçadas em Salvador, onde o fazendeiro José Carlos de Almeida Carvalho Gama adquiriu Kehinde. Quando lhe perguntaram se tinha um nome cristão, a criança mentiu e afirmou se chamar Luísa. O comprador fisgou a isca e deu à africana o próprio sobrenome, como de praxe na época. A partir daí, a escravizada virou Luísa Gama, mas só para os brancos que a exploravam. No íntimo e diante dos pretos, continuava Kehinde.
Localizada em outra ilha baiana, a de Itaparica, a fazenda do sinhô José Carlos produzia algodão, mandioca, cana e milho. Lá também funcionavam um engenho e uma fundição. De início, a menina trabalhava na casa-grande e se ocupava de serviços leves. Fazia companhia para uma garota dois anos mais velha, a sinhazinha Maria Clara, única filha legítima do latifundiário. À boca pequena, fuxicava-se que o fazendeiro semeara uma prole de bastardos, fruto dos abusos cometidos contra as negras da propriedade. Depois de enviuvar, José Carlos se casou com a sinhá Ana Felipa.
Os escravizados da casa-grande ensinaram o português para Kehinde, que se alfabetizou graças às aulas particulares recebidas pela sinhazinha. Como as duas não se desgrudavam, a africana aprendeu por tabela e se apegou à leitura – de tal maneira que, mais tarde, devoraria obras de padre Antônio Vieira, Miguel de Cervantes, Gil Vicente e Luís de Camões. Quando os familiares internaram Maria Clara num colégio de freiras, Kehinde precisou deixar a casa-grande. Foi transferida para a fundição e amargou turnos exaustivos, sob o jugo de um impiedoso capataz. Enquanto circulava entre os trabalhadores, ouviu boatos sobre as rebeliões abolicionistas que pipocavam na Bahia desde o começo do século XIX.
Com 12 anos, a africana menstruou. O desabrochar da menina acendeu a volúpia do sinhô, que a trouxe de volta para a casa-grande, a estuprou e a engravidou. Kehinde concebeu, então, Banjokô, um garoto de pele alva e olhos cinza-azulados. Rapidamente, Ana Felipa se afeiçoou ao bebê e decidiu cuidar dele como do filho que não conseguia ter. A africana tolerou a situação na esperança de que o menino desfrutaria de uma boa educação.
Meses depois do estupro, uma picada de cobra matou José Carlos. A viúva tratou de vender a fazenda e se mudou para um solar em Salvador. Os serviçais da casa-grande a acompanharam. Na capital, uma família britânica alugou Kehinde por um ano e pouco, o que possibilitou à mocinha aprender inglês e diversas receitas de sobremesas, especialmente de cookies. Assim que o aluguel terminou, a africana se transformou em escravizada de ganho. Ana Felipa, que já não queria muita proximidade com a mãe de Banjokô, lhe permitiu arranjar um trabalho remunerado. A sinhá cobraria quase 700 réis por semana da jovem, que poderia guardar o dinheiro excedente, caso o faturasse.
Kehinde agarrou a oportunidade com entusiasmo. Resolveu preparar cookies e comercializá-los pelas ruas de Salvador. Mal completou 18 anos, a moça – que engrenara nos negócios e embolsava pelo menos 10 mil réis mensais – bolou um modo de chantagear Ana Felipa. Encurralada, a sinhá aceitou libertar a africana e Banjokô. Vendeu-lhes a carta de alforria por um preço bem abaixo do que estimara.
Nessa altura, Kehinde se relacionava com Alberto, comerciante branco e português que se revelaria viciado em jogos e bebida. O casal abriu uma padaria, a Saudades de Lisboa, e assumiu o compromisso de não escravizar ninguém. O estabelecimento, que caiu imediatamente no gosto da freguesia, empregava apenas funcionários pagos. Depois de inaugurá-lo, a jovem e o parceiro geraram um filho de pele escura, que a mãe tratava por Omotunde e o pai, por Luiz. Um babalaô predisse que, no futuro, o recém-nascido se destacaria pelo senso de justiça.
Quando o movimento da padaria diminuiu, os sócios a desativaram. Kehinde não esperou para iniciar outro negócio: uma fábrica de charutos. Na ocasião, Banjokô tinha 9 anos. Enquanto xeretava onde não devia, se acidentou com uma faca e morreu. A africana, mesmo de luto, não parou de trabalhar duro. À medida que prosperava, se engajava na causa abolicionista. Lecionava para crianças negras, comprava a liberdade de cativos e abrigava escravizados em fuga. Participou, inclusive, de uma revolta malsucedida que um grupo de pretos muçulmanos organizara. Cultos e muito unidos, os islâmicos rechaçavam o domínio dos brancos por razões espirituais: acreditavam que nenhum humano estaria à altura de lhes botar cabresto e que somente Alá poderia regê-los.
Depois de passar uma temporada no Maranhão e no Recôncavo Baiano, dedicando-se às práticas religiosas de seus ancestrais, Kehinde descobriu que Luiz desaparecera. O garoto permaneceu em Salvador durante o retiro da mãe e acabou vendido pelo pai para um mercador de pretos. Alberto cometeu o disparate porque necessitava saldar dívidas de jogo. Em seguida, também sumiu do mapa. Transtornada, a africana saiu à procura do filho escravizado, que festejara 10 anos recentemente. Uma série de pistas a fez esquadrinhar Salvador e outras quatro cidades: Rio de Janeiro, Santos, Campinas e São Paulo. Tudo em vão. O fracasso das demoradas buscas abateu Kehinde e lhe aguçou a ideia de voltar para o Daomé.
Os dois últimos capítulos do romance se desenrolam na África. Em novembro de 1847, a protagonista saltou do navio britânico Sunset e reencontrou Uidá, de onde partira três décadas antes. Ela, porém, já não se identificava com os costumes do lugar. Os moradores da cidade lhe pareceram brutos, atrasados e pouco inteligentes. “Uns selvagens”, como dizia.
Em Uidá, a retornada se amasiou com John. Originário de Freetown, na Serra Leoa, o preto bonito e refinado comprava armas dos ingleses e as revendia para alguns reis africanos. Os fuzis e as espingardas, usados em guerras tribais, nutriam o tráfico negreiro. Afinal, os derrotados nas batalhas viravam escravos dos vencedores, que os comercializavam. Kehinde tinha consciência do esquema, mas não reprovava o companheiro, uma vez que as transações enriqueciam o casal.
Ela e John se tornaram pais de gêmeos e julgaram mais adequado lhes dar nomes em português, o que diferenciaria as crianças dos “selvagens”. Chamaram o garoto de João e a garota de Maria Clara, para homenagear a sinhazinha, que mantinha uma sólida amizade com Kehinde e se transformara numa mulher de espírito progressista. Sem os pudores de outrora, a retornada não ligava que os habitantes de Uidá a tratassem de sinhá Luísa ou dona Luísa. Seguia respeitando as divindades africanas, mas agora também venerava as do catolicismo. Paralelamente à ascensão de John como traficante de armas, estreitou laços com os figurões da região, incluindo os mercadores de negros, que a deixaram negociar óleo de palma, cachaça, fumo e outros produtos.
A protagonista enveredou, ainda, pelo ramo da construção civil. Fundou uma empresa que fazia palacetes à moda dos soteropolitanos para os milionários do Daomé e de Lagos, hoje a maior cidade da Nigéria, onde a antiga escravizada decidiu viver depois dos 53 anos. Cada vez mais rica e influente, adotou hábitos aristocráticos. Criava cavalos de corrida, apreciava toalhas de linho, tapetes chineses e móveis da Inglaterra, recepcionava a nobreza da Europa com festas nababescas, andava de carruagem ou riquixá e matriculou os gêmeos em escolas da França. Por outro lado, nunca se esqueceu inteiramente das próprias origens nem abdicou de honrar os antepassados. Quando o livro termina, em 1899, Kehinde tinha onze netos e continuava procurando Luiz, o filho mestiço que jamais conseguiu rever.
De repente umas vozes na rua/me gritaram negra!/Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!/Por acaso sou negra? – me disse. Sim!/Que coisa é ser negra? Negra!/Eu não sabia a triste verdade que aquilo escondia.
A professora desempregada Neuci Santos Souza, de 65 anos, declamou os versos da peruana Victoria Santa Cruz sem exagerar na dramaticidade. Outras mulheres a ajudavam. À maneira de um coro grego, berravam em uníssono: “Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!” O estribilho se repetiria pelo resto do poema, como acusação ou expressão de orgulho. Quando o jogral de quase três minutos acabou, Ana Maria Gonçalves sorriu e abraçou a professora.
Os 21 leitores que encontraram a romancista na Portelinha não se preocuparam em disfarçar a alegria. Eufóricos, recitaram mais um poema, entregaram à convidada uma placa que comemorava a visita, tiraram fotos e encerraram a reunião com quitutes. O grupo frequentava aulas semanais e gratuitas sobre Um defeito de cor na Oficina de Artes Paulo Benjamin de Oliveira, que oferece diversos cursos à comunidade portelense (de cenografia, maquiagem, cavaquinho…). Toda noite de terça-feira, entre abril e dezembro de 2023, o funcionário público Virgilio Magalde explicava o épico para 32 alunos. Ele faz doutorado em comunicação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e lançou quatro livros de poesia. “A escolha do romance pela Portela serviu de chamariz para o curso. Vários matriculados não tinham o hábito da leitura, mas desejavam entender por que, afinal, a escola iria desfilar a obra. A gente analisou a saga inteira, bem devagar”, conta Magalde.
Antes de Um defeito de cor, a Portela homenageou ao menos três romances. Em 1966, venceu o Carnaval com Memórias de um sargento de milícias, que Manuel Antônio de Almeida publicou como folhetim na metade do século XIX. Paulinho da Viola assinava o samba-enredo. Em 1968, a escola celebrou O tronco do ipê, narrativa regionalista de José de Alencar, e ficou na quarta colocação. Já em 1975, encenou Macunaíma, a rapsódia modernista de Mário de Andrade, que rendeu o quinto lugar à agremiação.
Durante as aulas, Magalde aproveitava para apresentar outros autores que pensam a negritude, como a antropóloga Lélia Gonzalez e a historiadora Beatriz Nascimento. Os debates entre os alunos, não raro, se convertiam em desabafos coletivos. “Muitas partes do livro comoviam a galera. Os estudantes se reconheciam na trama. Relacionavam as próprias dores – ou as dos pais e avós – com as da Kehinde”, relembra o funcionário público, que é noivo da rainha de bateria Bianca Monteiro, criadora da oficina. Todos os cursos do projeto ocorrem na Portelinha.
Depois de recitar o poema Me gritaram negra e abraçar Gonçalves, a professora improvisou um breve discurso: “Pratico o candomblé há décadas. Sou filha de Iemanjá e jamais desisti de procurar uma bíblia para a minha religião. O candomblé não tem um livro sagrado. Se alguém cismar de esclarecer o motivo de algumas coisas que acontecem nos terreiros, vai penar bastante. Por que o babalaô se comporta assim ou assado? Qual a origem de determinados ritos? Eu vivencio uma realidade nas casas de santo, mas não faço ideia de como tudo aquilo começou. Quer dizer, não fazia até descobrir Um defeito de cor. Finalmente, achei a minha bíblia! Agora pretendo visitar os terreiros com o romance debaixo do braço. ‘Venham cá, meus irmãos’, vou falar para os zeladores das casas. ‘Vocês gostariam de sanar as dúvidas sobre nossa fé? Pois tratem de ler a palavra da Kehinde!’”
A assistente social Elisângela da Cruz Hipólito, de 52 anos, pediu licença e contou que o romance lhe atiçou a vontade de escarafunchar a história de sua família: “Nunca me interessei pelo assunto. Sei apenas que minha mãe nasceu na Praia do Rio Vermelho, em Salvador. Na praia mesmo! Na areia! Minha avó correu para o hospital, mas o bebê estava com pressa. Quando minha mãe cresceu um pouquinho, virou uma peste. Imagine uma criança levada… Minha avó reclamava: ‘Sossega, menina! Você ficou desse jeito porque nasceu naquela praia de malandro. Um lugar de prostituta, bêbado, ladrão.’ Sempre escutei horrores do Rio Vermelho. O resultado é que enxergava a Bahia como uma terra complicada. Um defeito de cor me provou o contrário. A Bahia esbanja maravilhas! Resolvi, então, que vou deixar a implicância de lado e pesquisar as minhas raízes maternas.”
O testemunho das duas mulheres tirou lágrimas da autora. “O carinho dos leitores ainda me emociona. Muitos se sentem íntimos da Kehinde e, em consequência, de mim”, afirmou Gonçalves, mal saiu da Portelinha. “É comum as pessoas me abordarem para trocar um abraço, confidenciar algo ou expressar as sensações que o romance lhes causou. A [escritora] Conceição Evaristo tem uma brincadeira que volta e meia repito: ‘Nós não damos autógrafo. Damos consulta.’”
Equiparar Um defeito de cor à Bíblia – como fez a professora – soa exagerado, mas não completamente absurdo. De fato, a religiosidade africana perpassa todo o livro. Filha de Oxum, dona dos rios e das cachoeiras, Kehinde não venera só os orixás, deuses dos povos iorubás. Cultua igualmente os voduns, dos povos jeje-fons, e os inquices, dos povos bantos. Em inúmeros trechos da saga, a protagonista se refere às divindades. Ela também conta sonhos premonitórios, discorre sobre rituais de iniciação, morte ou cura, enfatiza o poder de cantigas mágicas, amuletos e feitiços, prova comidas de terreiro, retrata sacrifícios de animais, elucida jargões litúrgicos e recorda mitos. De quebra, aponta semelhanças inesperadas entre as crenças afro e o islamismo, além de abrir generoso espaço para o detalhamento de solenidades católicas. O mundo espiritual se revela tão presente na trajetória da personagem quanto o material.
Um dos mitos que o romance mais rememora é o dos abikus – espíritos bastante adaptados à rotina do Orum, o Céu dos iorubás, onde desfrutam de amizades divertidas. Eles gostam tanto de lá que preferiam nunca ir para o Àiyé, a Terra. Cedo ou tarde, porém, Olorum – o Ser Supremo – determinará que encarnem. Uma vez corporificados, os abikus ficam saudosos dos amigos deixados no Orum e cultivam o desejo de revê-los prontamente. Por isso, costumam morrer logo, em geral durante a infância. Oráculos podem informar se um bebê é abiku. Caso seja, os pais da criança devem lhe atribuir um nome que busque retê-la o máximo possível entre os vivos. Nem sempre funciona, como demonstraram dois abikus bem próximos de Kehinde, que partiram do Àiyé precocemente: o irmão e o primeiro filho dela. Kokumo significa “não morrerás porque os deuses irão segurá-lo” e Banjokô, “permaneça comigo”.
Numa das impressionantes cerimônias fúnebres que a protagonista relata, sacerdotes de Uidá promovem o sacrifício de humanos. As convenções locais exigiam que o defunto – um mandachuva riquíssimo – merecesse todas as honras, o que implicava decapitar um jovem casal e enterrá-lo junto do morto eminente.
Um defeito de cor se destaca, ainda, pela acurada descrição de festas populares, indumentárias, logradouros, moradias, ambientes de trabalho e paisagens litorâneas ou rurais. Mesmo as torturas são narradas meticulosamente. Numa delas, a sinhá Ana Felipa arranca os olhos de uma escravizada. Em outra, o sinhô José Carlos sodomiza e castra um preto diante de Kehinde. No primeiro capítulo, há uma aterradora radiografia de um navio negreiro. As “peças” – como os brancos denominavam os cativos – viajavam deitadas, espremidas e quase imóveis, dentro de um porão abafado e escuro. Não se levantavam nem sequer para defecar ou urinar. Periodicamente, recebiam uma quantidade ínfima de água, farinha, carne salgada e feijão. O cheiro de xixi, fezes, suor e vômito empesteava o ar.
À medida que esmiúça a própria biografia, a protagonista evoca uma sucessão de acontecimentos históricos, ora como partícipe, ora como simples observadora. A maioria dos episódios é muito conhecida: a Independência do Brasil, a abdicação de dom Pedro I, os conflitos federalistas na Bahia, a entronização de dom Pedro II, a Guerra do Paraguai, a Comuna de Paris, a assinatura da Lei Áurea e a Proclamação da República. Não sem motivo, a personagem se ocupa sobretudo de contextualizar a escravidão. Ela mostra a camaradagem entre os sinhôs e os próceres eclesiais, o conluio dos reis africanos com os comerciantes de negros, a resistência corajosa, mas às vezes errática, dos escravizados e o papel ambíguo dos ingleses nas lutas antiescravagistas – enquanto as incentivavam, os súditos da Coroa britânica não abriam mão das benesses que o tráfico negreiro lhes garantia.
Dos vários levantes abolicionistas que o romance menciona, a Revolta dos Malês sobressai por ter Kehinde como uma das insurgentes. A rebelião – maior do gênero no país – tomou as ruas de Salvador em 25 de janeiro de 1835, mobilizou cerca de seiscentas pessoas e fracassou rapidamente. Orquestrada pelos negros muçulmanos (os malês), pretendia assassinar os brancos e lhes confiscar as propriedades, libertar os africanos escravizados, manter cativos os pretos e mestiços brasileiros, vetar as práticas católicas e implantar uma república islâmica na Bahia. Setenta revoltosos morreram durante a batalha com os policiais. Outros amargaram a prisão, o açoite, a deportação ou o fuzilamento.
O capítulo sete do épico reconstitui a revolta em minúcia. Dezenas de páginas antes, ao longo do capítulo cinco, Kehinde explica que a legislação da época impedia os negros de exercerem funções importantes nas repartições públicas, no clero, na política e nas Forças Armadas. Os que almejassem tais cargos precisavam requisitar dispensa do “defeito de cor”.
No decorrer da saga, a protagonista se relaciona, direta ou indiretamente, com personalidades que entraram para a história oficial da África ou do Brasil. A lista engloba desde monarcas do Daomé, administradores coloniais e diplomatas até sacerdotes e artistas. No Rio de Janeiro, Kehinde conhece o doutor Joaquim, um estudante de medicina que está concluindo seu primeiro romance. O rapaz não consegue encontrar um bom nome para a heroína da trama e pede uma sugestão à africana, depois de lhe antecipar uns trechos da narrativa. Ela propõe Carolina, com a intenção de honrar a filha mais velha da sinhazinha Maria Clara. O estudante aprova a ideia. Embora Kehinde o chame somente pelo prenome e não cite o título do romance, o leitor perceberá que o jovem escritor é Joaquim Manuel de Macedo, autor de A moreninha. O livro de 1844, um clássico do romantismo, retrata o enlace amoroso do futuro médico Augusto com uma graciosa moça de 15 anos, justamente a dona Carolina.
Um defeito de cor também enfoca outro ilustre personagem literário: o inescrupuloso Amleto Ferreira, criado por João Ubaldo Ribeiro. No romance Viva o povo brasileiro, de 1984, o negro de pele clara trapaceia um barão, se apossa da fortuna dele e assume modos de branco. Arranja, inclusive, um sobrenome inglês. No épico de Ana Maria Gonçalves, o mestiço ressurge de bengala e pincenê, com a mesma arrogância, e se torna um dos mais assíduos fregueses dos English cookies vendidos por Kehinde em Salvador. “Eu evitava ler ficção enquanto preparava Um defeito de cor. Receava me influenciar pela prosa alheia. Mas abri exceção para alguns títulos, como Viva o povo brasileiro”, conta a romancista, que se declara fã de Ubaldo. “Reli o livro naquela fase e peguei o Amleto emprestado.”
A fusão entre o real e o fictício, tão corriqueira em Um defeito de cor, se evidencia na própria Kehinde. A protagonista não é 100% inventada. Para construí-la, Gonçalves se baseou especialmente na comerciante negra Luiza Mahin. Ou melhor: partiu dos poucos dados existentes sobre a mulher que gerou o advogado, escritor e jornalista baiano Luiz Gama, principal abolicionista do país e um obstinado republicano. Tudo o que se sabe de Mahin advém de um poema e uma carta. Os versos datam de 1861 e a correspondência, do dia 25 de julho de 1880. O abolicionista redigiu os dois textos.
Intitulado Minha mãe, o poema de oito estrofes integra o livro Primeiras trovas burlescas de Getulino e louva “a mais linda pretinha” com uma enxurrada de adjetivos, mas sem expor o nome dela. De concreto, diz apenas que a “mui bela e formosa” matriarca veio da África, se transformou em “pobre escrava” no Brasil, teve um par de filhos e “orava contrita, junto à cruz penitente”. Já a carta, de teor autobiográfico, não só assevera que a musa do poema se chamava Luiza Mahin como a caracteriza com maior precisão. Gama escreveu a correspondência por solicitação de um amigo, o intelectual Lúcio de Mendonça, idealizador da Academia Brasileira de Letras. As informações da carta nortearam um perfil do abolicionista que o Almanaque literário de São Paulo publicou em 1881. Mendonça o assinava.
De acordo com a correspondência, Mahin nasceu na Costa da Mina, região da África Ocidental, e trabalhou de quitandeira. “Muito altiva”, podia se revelar “geniosa, insofrida e vingativa”. Curiosamente, na carta, Gama contradisse o poema e definiu a mãe como uma africana livre e pagã, “que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã”. Ele relatou que, “mais de uma vez”, a quitandeira se envolveu em “planos de insurreições de escravos”, todos fracassados. O missivista, porém, não especificou nenhuma das revoltas. Contou unicamente que as rebeliões explodiram na Bahia. Mencionou, ainda, que a mãe se mudou para o Rio de Janeiro em 1837. Presa um ano depois com outros “amotinados”, acabou desaparecendo. O filho a procurou “na Corte” em três ocasiões – 1847, 1856 e 1861 –, mas não a localizou. Informantes levantaram a possibilidade, nunca confirmada, de o governo ter extraditado a quitandeira.
O pai do abolicionista, um fidalgo de origem portuguesa, também figura na correspondência. Era apreciador de cavalos, farras e baralhos, fazia parte de uma notória família baiana e herdou uma fortuna da tia. Por um período, educou Gama com afeto. Todavia, depois de torrar cada centavo da herança, se viu “reduzido à pobreza extrema” – de tal modo que, em novembro de 1840, vendeu o filho de 10 anos. O menino, escravizado, deixou a Salvador natal, rumou para São Paulo e se alfabetizou somente no fim da adolescência. Uma vez alforriado, estudou as leis por conta própria e advogou em prol da abolição. Nos tribunais, conseguiu libertar mais de quinhentos negros, sem cobrar honorários. Quando morreu de diabetes, em agosto de 1882, a capital paulista lhe rendeu uma imensa homenagem. Único relato confessional de Gama, a correspondência omite a identidade do fidalgo desalmado.
Sob a ótica historiográfica, não há qualquer comprovação de que Mahin existiu. Vários pesquisadores consideram que o abolicionista pode ter falseado certos trechos da carta por motivos políticos. Ele sabia que as informações sairiam no Almanaque literário de São Paulo, anuário republicano de grande prestígio. Se criasse um passado aventuroso para si mesmo, o que incluía heroificar a mãe africana e vilanizar o pai de ascendência europeia, o missivista tornaria a batalha pela libertação dos cativos ainda mais sedutora às boas consciências. Desse modo, a suspeita de que o advogado “revelou ocultando” não é desprezível, como apontou a professora de letras Ligia Fonseca Ferreira no artigo Luiz Gama por Luiz Gama: carta a Lúcio de Mendonça.
Com o tempo, Mahin voou longe e ganhou relevância dentro do movimento negro, principalmente o feminista, que a converteu em símbolo de luta e resistência. Surgiu, assim, a versão de que a mãe do abolicionista e os muçulmanos uniram forças para comandar a Revolta dos Malês. O historiador João José Reis, autor do livro Rebelião escrava no Brasil, procurou evidências que corroborassem o rumor, mas não descobriu nada. Ele sustenta que a faceta subversiva de Mahin é “um misto de realidade possível, ficção abusiva e mito libertário”.
A doutora em literatura comparada Fabiana Carneiro da Silva, que leciona na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), notou um aspecto interessante quando analisou Um defeito de cor. Depois que o sinhô José Carlos comprou Kehinde, a escravizada adotou o nome cristão de Luísa com S – e não com Z, como registrou Gama. Em sua tese de doutorado, a professora defende que a criadora do romance usou a estratégia para realçar a “similaridade não idêntica” entre a personagem e a mãe do advogado. Mesmo diante das controvérsias históricas, a lei federal nº 13816, de 2019, pôs Mahin no Livro dos heróis e heroínas da pátria.
“Não duvido de Luiz Gama”, diz Ana Maria Gonçalves. “Se um homem branco descrever os pais numa carta para um amigo, alguém desconfiará do testemunho? Dificilmente, né? Por que, então, há quem conteste a palavra de um homem negro? Eu creio que Luiza Mahin existiu, sim.” Em Um defeito de cor, a romancista se refere à quitandeira já no prólogo, quando relembra uma viagem que fez para a Ilha de Itaparica antes de escrever o livro. Lá conheceu dona Clara, a responsável por limpar a Igreja do Sacramento. Na casa da faxineira, havia uma pilha de papéis amarelados com uns 35 cm de altura. Um texto em português arcaico, manuscrito, preenchia todas as folhas. Era uma narrativa contínua, sem parágrafos nem pontuação. Gonçalves passou os olhos pelas letras miúdas e distinguiu o nome de Pacífico Licutan, um dos líderes da insurreição malê. Rabiscos infantis cobriam o verso de inúmeras folhas. “Onde você arranjou tantos papéis?”, indagou a escritora. “Na igreja. O padre anterior jogou tudo fora. Eu trouxe para casa porque o Gérson, meu filho de 6 anos, gosta de desenhar”, respondeu dona Clara.
Com o aval da faxineira, a romancista levou a papelada embora. Depois de examiná-la direito, percebeu se tratar de um documento raríssimo – a autobiografia de uma escravizada – e aventou a hipótese de Mahin ser a autora do extenso relato. Em nenhum momento do prólogo, Gonçalves menciona o nome da mãe de Gama, mas fornece pistas que permitem identificá-la. A escritora frisa que somente um estudo aprofundado dos manuscritos poderia ratificar ou não a hipótese. Ela também garante no prólogo que Um defeito de cor equivale à reprodução praticamente integral do documento. “Tomei [apenas] a liberdade de pontuá-lo, dividi-lo em capítulos e, dentro de cada capítulo, em assuntos.” Por fim, esclarece ter inventado alguns trechos do depoimento que estavam ilegíveis ou se perderam. À medida que os recriava, sentia que a escravizada lhe soprava cada palavra. “Coisas da Bahia, nas quais acredita quem quiser…”, conclui.
Quantos leitores do livro realmente acreditaram? Em julho de 2023, durante o programa Roda viva, da TV Cultura, a apresentadora Vera Magalhães questionou a romancista sobre os papéis. “Tudo o que botei no prólogo é verdade, menos a história dos manuscritos”, declarou a convidada. “Ahhh… Você me pegou nessa. Confesso que sou uma das fisgadas”, comentou Magalhães. Em outras entrevistas, a escritora já havia admitido que a papelada nunca existiu.
Mentirinhas do tipo não são incomuns na literatura. João Ubaldo Ribeiro usou recurso semelhante em A casa dos budas ditosos. O divertido romance de 1999 expõe as travessuras sexuais de uma libertina baiana e sexagenária. Na apresentação do livro, o autor explica que uma desconhecida registrou o testemunho safado em fitas cassete e lhe mandou as gravações. A mulher se identificava exclusivamente pelas iniciais CLB. Ribeiro jura que, para lançar o romance, só precisou transcrever e editar o depoimento da misteriosa senhora.
O caso dos manuscritos é a primeira das várias surpresas que tornam Um defeito de cor irresistível. À moda dos folhetins, o épico prende a atenção também por fazer revelações fundamentais de tempos em tempos. A principal delas irrompe somente no capítulo seis. Ali se descobrirá que Kehinde narra toda a saga para o filho desaparecido, Luiz. Como nunca perdeu a esperança de reencontrá-lo, a personagem sonha em lhe entregar o relato por escrito. O romance é, portanto, uma longuíssima carta materna – o legado mais sincero e afetuoso que a antiga escravizada poderia deixar. Ela sente enorme remorso pelo destino trágico de Luiz. Afinal, o pai negociou o menino quando a mãe viajava. Nos capítulos seguintes, os leitores irão constatar que a protagonista ficou cega devido à velhice avançada. Por isso, dita a correspondência para a amiga Geninha, que se encarrega da redação.
Na infância, Ana Maria Gonçalves adorava escutar os causos da avó paterna em Ibiá, cidadezinha mineira onde a autora e a maioria dos parentes nasceram. “Vovó tinha um jeitão agitado e feições indígenas – cabelo liso, pele morena, corpo atarracado. Também se chamava Ana e gostava de cozinhar no quintal. Acendia o fogo entre alguns tijolos e, de cócoras, preparava a comida”, recorda a neta. “Meu avô, um peão de fazenda, provavelmente branco, a abandonou com quatro filhos. Para sustentá-los, vó Ana lavava roupa e vendia peças de crochê que confeccionava nas horas vagas. Era uma exímia crocheteira. Eu segui o mesmo caminho e me apeguei às agulhas. Faço crochê desde criança.”
Enquanto cozinhava, Ana contava histórias que deliciavam os ouvintes. “Me lembro bastante da voz dela. Quando escrevo, busco aquela cadência, aquele jogo de sedução, aquela franqueza. Daí não me considerar propriamente uma romancista, ou dramaturga, ou roteirista. Sou contadora de histórias, como a minha avó.”
O ramo materno da família, todo negro, mantém estreita relação com a música. “Meu avô, ferroviário, tocava banjo e cantava em reuniões sociais. Ele curtia uma dor de cotovelo, uns sambas-canções do gênero: Diga que já não me quer/Negue que me pertenceu… Ou, então: Nunca, nem que o mundo caia sobre mim… A vó Lola, dona de casa, brilhava como pandeirista. Meus tios e primos continuam mandando bem no violão e na percussão.” A escritora, em contrapartida, não toca, não canta e dança “mal à beça”.
Quase diariamente, Lola assava dois bolos – um para os netos e outro para os presos de Ibiá. “Conheci poucas pessoas tão bondosas quanto minha avó. Ela visitava a cadeia simplesmente porque se apiedava dos prisioneiros. Às vezes, me levava junto. Todo mundo a respeitava lá dentro. Vó Lola pedia para o delegado abrir as celas e deixar os presos comerem bolo no pátio. Por incrível que pareça, o homem obedecia.”
Católica fervorosa, a mãe da romancista – Hélia Iza da Silva Gonçalves – cantou na igreja até 2008. Parou depois de extrair um tumor benigno do cérebro. A operação trouxe sequelas. “Fiquei com uma paralisia na face e, de vez em quando, enxergo duplicado”, explica. Por causa da cirurgia, Hélia também largou o ofício de costureira, mas ainda preserva o costume de ler avidamente. “Comecei muito nova. Primeiro, me apaixonei pelos gibis da Luluzinha e do Bolinha. Mais tarde, descobri os livros de espionagem.” Hoje, se define como uma leitora sem preconceitos, que saboreia de Gustave Flaubert e Clarice Lispector a Sidney Sheldon e Agatha Christie. “Não ligo tanto para poemas, ensaios ou biografias. Meu negócio é ficção e a Bíblia, né?”
O apreço de Hélia por contos e romances beira a obsessão. “Minha mãe não parava de ler nem durante as tarefas domésticas. Eu, bem pequena, a observava, impressionada. Ela varria a sala, tirava pó e mexia em panelas com um livro nas mãos. De repente, interrompia tudo – ‘Menina, escuta aqui!’ – e lia em voz alta um trecho que achava bacana”, relata Gonçalves. À época, Hélia comprava os volumes de um vendedor que aparecia mensalmente em Ibiá. “Quando se aproximava a data de o sujeito passar, minha mãe aceitava um monte de serviço e varava as noites na máquina de costura. Queria ter mais dinheiro para gastar com o vendedor.”
O pai da escritora – Ivan Gonçalves – não toca nenhum instrumento nem lê muito, mas faz esculturas de madeira. “Sou doido pelo Espírito Santo. Já esculpi uns cinquenta.” Ele se casou com Hélia em julho de 1969. Da união, resultaram duas garotas e um menino. A romancista é a primogênita do trio.
Ivan e a parceira moram atualmente em Três Corações, no Sul de Minas Gerais. Juntos, frequentam o movimento Equipes de Nossa Senhora, constituído por “casais que desejam se santificar”, de acordo com Hélia. “Santos não são apenas os que a gente vê nos altares. Todos nós podemos nos santificar. Basta cultivarmos o altruísmo, a fé e o amor universal”, acredita a ex-costureira. Os integrantes do movimento se encontram periodicamente para rezar, discutir assuntos religiosos e organizar eventos filantrópicos.
De origem pobre, Ivan trabalhou como operário de linhas férreas, torrefador e pedreiro antes de ingressar numa unidade da Nestlé que fabricava leite em pó. A multinacional o empregou por três décadas. Depois, a Kerry – outra indústria alimentícia – o recrutou. “Vou comemorar 81 anos em setembro e estou aposentado desde 2003. Não posso reclamar de nada. Entrei na Nestlé como auxiliar geral e deixei a Kerry como gerente de produção. Deus me ajudou.”
Por influência de Hélia, a futura escritora pegou gosto pela literatura logo que se alfabetizou. “Quando devorei tudo o que a única biblioteca pública de Ibiá oferecia às crianças, decidi explorar os romances de adultos. ‘Me dá aquele!’, pedia. ‘Não, senhora! É forte demais’, respondia a bibliotecária. ‘E aquele outro?’ ‘Idem’”, conta Ana Maria Gonçalves. “Apelei, então, à minha mãe.”
Hélia mantinha seus romances numa estante. Sensibilizada pela curiosidade da menina, bolou um plano. “Colocarei nas prateleiras baixas os livros de adultos mais adequados para criança”, avisou. “Você pode ler qualquer um deles. Só não mexa nos que estão lá em cima.” A garota concordou. Entretanto, mal concluiu a leitura dos títulos autorizados, rompeu o trato e avançou sobre os proibidões. “Minha mãe enfiou nas prateleiras altas a coleção do Jorge Amado e um exemplar de O exorcista.” A menina não titubeou em se aventurar pelo clássico de terror que William Peter Blatty lançou na década de 1970. “Resultado: tive pesadelos, corri para o quarto dos meus pais à caça de aconchego e confessei o crime.” Hélia não brigou com a filha. Preferiu uma saída pedagógica: “Entendeu agora por que você não deve ler os livros de cima?” A partir daí, a garota recebeu sinal verde para acessar todos os volumes da estante, inclusive os proibidões. “De que adiantava censurar? A Ana Maria sempre arrumaria um jeito de me driblar. Melhor liberar e pronto. Mas, antes, preveni: ‘Se você escolher de novo alguma história amedrontadora, não quero saber de choro!’”
Outro episódio da infância que a autora evoca frequentemente aconteceu no colégio. Com o intuito de treinar a caligrafia dos alunos, a professora solicitou que copiassem textos interessantes em casa e os mostrassem durante a aula. “Adivinhe o que a Ana Maria copiou? A carta-testamento do Getúlio Vargas! Ela a descobriu numa das minhas enciclopédias”, relembra Hélia. “Assim que viu aquilo, a professora se alarmou, me chamou à escola e disse: ‘Parece que a Ana Maria anda lendo umas coisas inapropriadas…’” Detalhe: não satisfeita em copiar o trágico documento, a menina o decorou e recitou para a classe.
Como a filha entrava cedo no colégio, Hélia não lhe permitia ler até tarde. “Minha mãe apagava a luz do meu quarto às 23h30. Não valia a pena acendê-la de volta porque a luminosidade vazaria por baixo da porta.” Qual a solução? A garota usava a mesada para adquirir velas às escondidas. Sob a iluminação tênue da chama, varava a madrugada de olho nos livros.
“Ibiá fica dentro de um vale. Quem mora ali não avista muito adiante. Enxerga montanha, montanha, montanha. É uma cidade sem horizonte”, descreve a romancista. “A literatura ampliava o meu campo de visão.” A tevê poderia surtir efeito idêntico, só que a menina não demonstrava a menor paciência para desenhos, seriados e novelas. “Vou dar um exemplo do tanto que os livros alargavam o meu mundo: quando li Capitães da areia, o romance do Jorge Amado, levei um susto. Os personagens da trama são moleques de rua. Em Ibiá, não havia nada semelhante. Eu nem imaginava que existiam crianças naquela situação. Deparar com uma realidade tão dura bagunçou a minha cabeça: como os garotos conseguiam viver assim, sem a proteção de ninguém?”
O calendário voou, a menina cresceu e conquistou prestígio, mas o hábito da leitura permanece intacto. “Para mim, ler é o mesmo que escovar os dentes. Não… Talvez seja mais do que uma necessidade. Talvez seja um vício. Se atravesso um dia sem ler, me desestabilizo. Pinta um mal-estar. Às vezes, leio por quinze, dezesseis horas quase ininterruptas. Preciso dos livros até para dormir. Há pessoas que só adormecem depois de ver um filme ou uma série. No meu caso, apenas a literatura resolve.”
A autora também lê enquanto toma o café da manhã. “Eu assinava a imprensa justamente porque gostava de espiar o noticiário na mesa, logo cedo. Agora me contento com os livros. Deixei de comprar jornal.” Para se atualizar, navega pelo UOL e pelo g-1 ou escuta as rádios CBN e Itatiaia. Tempos atrás, assistia à GloboNews, mas parou. “Tenho medo do Demétrio e do Merval”, afirma, rindo. Os comentaristas Demétrio Magnoli e Merval Pereira se notabilizaram por defender posições conservadoras.
À semelhança da mãe, Gonçalves evita largar um livro pela metade. Hoje consome sobretudo edições digitais, o que não a impede de seguir anotando nas páginas. “Amo sublinhar frases, destacar palavras e fazer observações à margem dos parágrafos.” Em geral, a romancista lê quatro ou cinco obras simultaneamente e prioriza a não ficção. Interessa-se por ensaios sobre uma infinidade de temas: desde feminismo e questões raciais até música e artes plásticas. No entanto, não abre muito espaço para a teoria literária. “Temo perder o prazer da leitura se estudar demais os bastidores da escrita.”
Na seara da ficção, novamente repete a conduta da mãe: não privilegia “a alta literatura em detrimento da baixa”. “Sou eclética. Senti vontade de me distrair com um romance de banca, tipo Sabrina ou Julia? Beleza! Vou lá, compro e me esqueço dos problemas enquanto mergulho naquele universo. Obviamente, sei que Sabrina e Julia diferem de Crime e castigo. Mas, em certas ocasiões, um enredo leve cai melhor do que Dostoiévski.”
Embora leia bastante, Gonçalves diz ter dificuldade para guardar nomes de autores ou títulos de livros. “Minha memória é ruim. Passo cada vergonha… Erro citação, troco datas.” Contudo, se lhe requisitam indicações de bons ficcionistas brasileiros, negros e contemporâneos, a resposta sai num jorro: Geni Guimarães, Conceição Evaristo, Eliana Alves Cruz, Jarid Arraes, Cidinha da Silva, Geovani Martins, Itamar Vieira Junior, Paulo Lins e Jeferson Tenório. “Como leitora, continuo sendo uma garota de 8 ou 9 anos que se deslumbra com histórias bem narradas. Juro por Oxalá! No fundo, me orgulho mais da leitora em mim que da escritora.”
Primorosas. A mãe da romancista qualifica assim as redações que a filha apresentava no colégio. “A Ana Maria arrasava! Era uma criança observadora. Por isso, escrevia bem. Na juventude, quando me comunicou que estava pensando em lançar um romance, não duvidei da capacidade dela e procurei incentivá-la. Mas nunca cogitei que o negócio iria tão longe”, conta Hélia. Na escola, por baixo dos panos, a menina elaborava as redações dos craques em química e física, que a retribuíam com um arsenal de colas durante as provas das duas matérias. “As tais ciências da natureza me derrubavam…”, lamenta a autora. Ela adotava toda uma estratégia para o professor acreditar que os nerds das exatas concebiam os próprios textos. “Eu fazia a redação de cada aluno num estilo diferente e não mirava a nota máxima. Acrescentava uns errinhos de ortografia, concordância e regência às tarefas porque, se os caras tirassem dez ou nove, dariam muita bandeira.”
Ainda que não se recorde, a escritora mantinha um diário na adolescência. “Verdade?!”, surpreende-se. “Esqueci totalmente.” Quem não o esquece é Andressa Iza Gonçalves, sua irmã caçula: “Nasci em abril de 1981. Sou, portanto, quase onze anos mais nova que a Ana e sempre a admirei. Lembro que a gente brincava de modelo. Ela punha umas roupinhas bonitas em mim, me sugeria posar como estrela de Hollywood e batia um monte de fotos com a câmera do nosso pai. Também me recomendava clássicos da literatura e discos sensacionais, além de me levar para o cinema, o teatro e as exposições. Graças à Ana, conheci Gabriel García Márquez, Caetano Veloso, Belchior, o grupo Língua de Trapo e o filme Labirinto, com o David Bowie. Até hoje, temos uma forte conexão. Sem combinarmos, já rolou de a gente comprar sandálias idênticas ou aparecer em festas usando vestidos da mesma cor.”
Depois que a primogênita deixou a casa da família, Andressa encontrou “os preciosos diários” dentro de uma caixa. “Foi na década de 1990, período em que dois livros para jovens – O mundo de Sofia e Confissões de adolescente – estavam bombando. A meninada os engolia.” O primeiro, do norueguês Jostein Gaarder, vendeu mais de 1 milhão de exemplares no Brasil. O segundo, da carioca Maria Mariana, originou um seriado televisivo de sucesso. “Li ambos na época, e nenhum me fascinou tanto quanto as confidências da Ana. Eu curtia o modo de a minha irmã abordar os dramas e as alegrias daquela fase.” Infelizmente, a caixa com os diários sumiu.
Formada em turismo, Andressa é assistente da romancista desde 2017. Com o marido, o jornalista Paulo Morais, escreveu o livro infantojuvenil O reinado de Bené. O casal vive em Belo Horizonte, onde cria duas filhas e coordena o Museu da Oralidade, projeto digital que busca preservar as tradições e a memória popular do Sul de Minas.
O apego precoce de Ana Maria Gonçalves à leitura não a transformou numa garota reclusa. “Pelo contrário! Eu lia só à noite. Era supermoleca. Andava de patinete, desbravava matas, subia em árvores e me esbaldava no pega-pega ou pique-esconde.” Regularmente, também se embrenhava pelo quintal da avó Lola, que beirava um rio. “Havia de tudo por lá: patos, galinhas, porcos, jabuticaba, abacate, goiaba… Um paraíso!”
Quando a pequena se avizinhava dos 10 anos, a Nestlé transferiu Ivan para Porto Ferreira, município do interior paulista. Como o pai da escritora já ocupava um cargo de gerência, pôde morar com Hélia e os filhos numa vila dentro da fábrica. A multinacional lhes ofereceu uma residência espaçosa, bem maior que a de Ibiá. “A vila parecia um clube. Tinha bosque, quadras esportivas, piscina e salão de festas. Às vezes, um aroma de leite Ninho se espalhava pelo ar”, rememora a autora.
Em Porto Ferreira, ainda na infância, a romancista iniciou o aprendizado de inglês. Destacou-se tanto que virou professora do idioma com 12 anos. Dava aulas para crianças na rede Fisk. Pouco depois, assumiu turmas de adultos que, não raro, incluíam conhecidos de Ivan. Em paralelo, jogava como levantadora num time de vôlei local. Treinava diariamente e participava de campeonatos regionais. Muito rígido e protetor, Ivan não a deixava viajar com as outras atletas. Preferia levá-la de carro. Ele seguia o ônibus da equipe pelas estradas e matava a adolescente de raiva.
Para cursar o ensino médio, a escritora se matriculou numa escola particular e católica de Pirassununga, cidade a 20 km de Porto Ferreira. Até então, estudara somente em colégios municipais. Às vésperas do vestibular, decidiu abraçar a profissão da moda: publicidade. Entrou na Faap – uma instituição privada de São Paulo – e trocou o interior pela capital. “Que fase puxada! Eu tocava a faculdade de manhã e fazia estágio à tarde, além de lecionar português para estrangeiros e inglês para brasileiros.”
Em setembro de 1994, já formada, Gonçalves fundou a agência Mercado de Ideias com a colega Adriana Cubo. As sócias se estabeleceram no Alto da Lapa, bairro da Zona Oeste paulistana. “A gente trabalhava muito, muito, muito. Nem gosto de lembrar… Se houvesse necessidade – e normalmente havia –, ralávamos inclusive nos sábados e domingos”, relata Cubo. “A Ana exercia a função de redatora e atendia os clientes. Eu respondia mais pela criação de arte. Fomos excelentes parceiras, uma complementava a outra em termos publicitários, mas derrapávamos no terreno administrativo, o nosso ponto fraco.”
Por um tempo, a romancista bancou a mulher de negócios com satisfação. Tornou-se adepta dos tailleurs e saltos agulhas, introjetou o linguajar corporativo e cumpriu os prazos apertados sem reclamar. Certa manhã, porém, notou que se cansara daquilo: “Quando voltava de um cliente em Guarulhos, enfrentei um engarrafamento tenebroso na Marginal Tietê. O Sol torrava o asfalto, e o ar-condicionado do meu carro não funcionava. De repente, no meio do inferno, me caiu a ficha: por que, afinal, vivo de maneira tão insana? Vale realmente a pena? Semanas depois, visitei mais um cliente. Na sala de espera, folheei uma revista e vi uma reportagem inquietante. A matéria tratava de uma executiva bem-sucedida que abandonou o emprego com 40 anos, comprou um barco e saiu navegando pelo mundo. Ela abdicou da carreira assim que redigiu o próprio obituário e percebeu que não realizara nada de incrível. Eu acabava de completar 29 anos. Mal retornei para casa, imitei a executiva e fiz o meu obituário. Também me frustrei diante do resultado. ‘É…’, refleti. ‘Preciso mesmo alterar o rumo das coisas.’”
Àquela altura, o apagar da década de 1990, a autora possuía um apartamento de dois quartos, estava casada com um securitário e ascendia na publicidade. Queria chutar o balde, mas não dispunha de um plano B. O desejo de escrever ficção apenas se insinuava. Não configurava ainda um projeto.
Em 2001, os ventos finalmente mudaram. A amiga e diretora Fernanda Elmôr convidou Gonçalves para ajudá-la no roteiro do curta documental Conexão Caribe. O filme retratava um bar de São Paulo em que imigrantes da América Latina se reuniam com a intenção de dançar salsa, o arrebatador ritmo de Cuba. “Antes de começar o roteiro, resolvi pesquisar sobre o povo caribenho na livraria Fnac, hoje desativada”, recorda a escritora. “Enquanto fuçava uma das prateleiras, avistei Bahia de Todos-os-Santos: guia de ruas e mistérios.” Publicado em 1945, o livro de Jorge Amado traça um perfil afetivo de Salvador. A romancista abriu o guia despretensiosamente e logo se impressionou com o prefácio: “Quando a viola gemer nas mãos do seresteiro […], não tenhas, moça, um minuto de indecisão. Atende ao chamado e vem. A Bahia te espera para sua festa cotidiana.” Mais adiante, a autora esbarrou num trecho em que Amado descrevia a Revolta dos Malês, exaltava o líder Pacífico Licutan e sugeria: o conflito poderia render “um grande romance”.
As palavras do baiano incendiaram Gonçalves, que as enxergou como uma provocação. Ela agora sentia um anseio irrefreável de explorar Salvador, onde nunca pisara, e se inteirar melhor do levante muçulmano. Em Um defeito de cor, a escritora aborda o episódio da livraria no prólogo e afirma que o considera uma autêntica serendipidade. Ou seja: um fato casual que só ganha importância se quem o vivencia estiver preparado para notá-lo e valorizá-lo.
A romancista perseguiu o rastro de Licutan e dos demais rebeldes em sebos, bibliotecas e alguns sites. No decorrer de quase um ano, com perseverança, juntou um material significativo acerca de um motim que desconhecia completamente. Em janeiro de 2002, tirou quinze dias de férias e voou para Salvador. Depois de zanzar pela cidade, pegou uma balsa e saltou na Ilha de Itaparica. Lá se encantou por uma casa desocupada, que exibia lindos jardins, varandas amplas, portas de vidro e um mangueiral. “Eis meu novo endereço”, pensou.
Tão logo desembarcou em São Paulo, tomou uma série de providências radicais. Terminou o casamento, que andava balançando, desmanchou a sociedade na agência e vendeu o apartamento com toda a mobília. Em março de 2002, acomodou o que restou dentro do carro e partiu rumo à Bahia. No trajeto, passou por Três Corações para se despedir dos pais. Iria alugar a casa avarandada de Itaparica, se manter com o dinheiro do imóvel vendido e tentar parir um romance sobre a Revolta dos Malês. “Achei o guia do Jorge Amado numa data especial: 13 de janeiro de 2001”, conta a autora. “Treze é meu número da sorte. Um número auspicioso, que abre caminhos e traz renovação.” O motivo da crença? “Nasci em novembro de 1970, numa sexta-feira, 13.”
A sócia compreendeu o gesto corajoso de Gonçalves. “Me assustei um pouco, claro, mas encarei a situação numa boa e segui em frente. A Ana já manifestava algum incômodo com as obrigações da agência. Nada mais justo que procurasse alternativas. Infelizmente, nós perdemos contato. Nem assim deixei de estimá-la. Não há ressentimento nenhum de minha parte. Ela continua uma querida.” A publicitária diz não acompanhar o mercado literário. “Sério que a Ana lançou um romance? Não sabia! O livro está fazendo sucesso? Que espetacular! Então a minha velha parceira conseguiu… Qual o título da obra? Tenho que ler!”
Os familiares da escritora também aceitaram a audaciosa resolução. “Fiquei inseguro? Fiquei! Não vou mentir”, admite Ivan. “E se a menina desse com os burros n’água? Largar a agência… Vender o apartamento… Morar sozinha na Bahia… Qualquer pai se preocuparia. Acontece que sempre confiei na Ana. Ela é responsável. Não mete os pés pelas mãos. Por isso, a confiança rapidamente superou os meus receios.”
Cinco meses depois de encontrar o guia de Salvador, a romancista inaugurou um blog pessoal, o Udigrudi. No princípio do século XXI, os diários virtuais seduziam uma quantidade cada vez maior de internautas. Vários ficcionistas jovens – como Joca Reiners Terron, Daniel Galera, Clara Averbuck e João Paulo Cuenca – se convertiam em blogueiros para aprofundar os laços com os leitores. De início, Ana Maria Gonçalves tinha um blog meramente profissional. “Eu buscava estratégias inovadoras de comunicação que pudessem gerar lucros à minha agência.” Em meados de 2000, porém, a autora descobriu uma comunidade digital que debatia copyright livre, software de código aberto, mídias sociais e outros temas disruptivos para a época. “Nos papos com o grupo, concluí que a revolução tecnológica daquele momento iria virar o planeta do avesso. Participar dela simplesmente por razões comerciais não me agradava.”
Foi assim que, em 20 de junho de 2001, a romancista criou o Udigrudi: “Bem, cá estou com um blog nas mãos e mil ideias na cabeça.” A afirmação parafraseava o famoso lema do Cinema Novo (“uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”), atribuído à verve do baiano Glauber Rocha, embora o diretor carioca Paulo César Saraceni se proclamasse o verdadeiro inventor da máxima. O nome do diário eletrônico também espelhava a efervescência dos anos 1960. Glauber cunhou a expressão “udigrudi” para abrasileirar e esculhambar a palavra underground. O neologismo mordaz sintetizava o movimento contracultural dos cineastas Rogério Sganzerla, Julio Bressane, Neville d’Almeida, Ozualdo Candeias e Andrea Tonacci, que não se julgavam cinemanovistas.
No primeiro texto do blog, Gonçalves apregoava a intenção de utilizar a plataforma para expor “as coisas” que sentia e esmiuçar a “vida tupiniquim”, mas “tomando o extremo cuidado de não ser ufanista”. O diário virtual, que perdurou até 2 de outubro de 2003, acabou se revelando uma miscelânea. A autora compartilhava declarações de personalidades, anedotas, charadas, estudos científicos e manifestos estéticos. Reproduzia matérias de jornais ou trechos de romances e ensaios. Comentava o programa Big Brother Brasil, elaborava listas divertidas e palpitava sobre política. Disseminava curiosidades singelas ou maliciosas, do tipo “existem setenta sextilhões de estrelas no céu” e “aprenda como dizer pênis em 29 idiomas”. Propagava letras de canções, posts de blogs alheios e versos de poetas consagrados. Também difundia crônicas, poesias e contos próprios, sem jamais revisá-los, conforme alertava.
Se sobrasse tempo, a romancista que atualmente passa longe das redes sociais ainda produzia artigos para revistas online, caso da extinta NovaE. “Eu atraía um público reduzido na internet, cinquenta ou sessenta leitores por dia, só que ativos, inteligentes e fiéis. Muitos fãs se tornaram amigos.” Ela acredita que o apoio dos seguidores a encheu de coragem e segurança para conceber Um defeito de cor. “Por tabela, o compromisso de blogar com regularidade me disciplinou como escritora.”
Em janeiro de 2002, quando tirou férias e visitou Salvador, Gonçalves noticiou o passeio no Udigrudi, diretamente de um cibercafé baiano. “Gente, não sei dizer o que é isto aqui, mas é mágico… É lindo!!!”, comemorou. Na mesma postagem, um poema de nove estrofes confidenciava as expectativas da viajante em relação àquela terra:
Quero da Bahia não apenas a fala doce
O abraço cordial, o beijo roubado em festa no Pelô
Não quero apenas as cores e vozes do Mercado
No leva-traz do Elevador Lacerda
Não quero apenas sentir o desejo
Nos corpos de capoeiristas tomados pelo berimbau
Da Bahia […], quero a desesperança de depois da festa
As histórias ladeira abaixo
O dente que dói na boca do lixo.
Os três meses iniciais da autora em Itaparica privilegiaram o ócio. Ela pegava conchinhas nas praias da ilha, curtia banhos de mar ou de chuva, apreciava o crepúsculo e caminhava sem direção. Só interrompia a vagabundagem para blogar e ler. “Um sonho!”, recorda. “Pena que, do nada, apareceu uma dor absurda na batata da minha perna. Consultei um médico, que logo me diagnosticou: ‘Mudança de hábito… Você usava muito salto alto. Agora vive andando descalça. O organismo estranhou.’”
Após o breve período sabático, a romancista intensificou as apurações sobre a Revolta dos Malês e as expandiu para mais tópicos associados à negritude. Gradativamente, se apaixonou por Luiza Mahin. Resolveu, então, transformar a africana na protagonista do livro que escreveria. A rebelião dos muçulmanos deixaria de ser o assunto principal e viraria um dos inúmeros acontecimentos históricos que a narrativa pretendia resgatar. Como a biografia de Mahin está abarrotada de pontos cegos, Gonçalves julgou melhor preencher as lacunas não somente com a imaginação, mas também com a trajetória de outras negras que lhe chamaram a atenção durante a pesquisa. Kehinde nasceria, portanto, do amálgama entre a mãe de Luiz Gama e diversas escravizadas que habitaram o país no século XIX.
“A casa de Itaparica tinha uma parede imensa, que atravessava a sala e um corredor”, lembra a autora. “Certo dia, comprei cem folhas de sulfite e grafei um ano em cada uma delas: 1801, 1802, 1803… até 1900. Fixei os papéis na parede e montei uma espécie de mural. Dividi cada folha em três colunas.” A primeira coluna agregava dados sobre Luiza Mahin e as mulheres que iriam originar Kehinde. A segunda juntava elementos que serviriam para compor os demais personagens. Já a terceira elencava fatos que marcaram o Brasil e o resto do mundo no ano em questão. “O mural, inteiramente manuscrito, organizava e resumia toda a minha pesquisa, entende? Lógico que, com o tempo, precisei acrescentar uns anexos. Se a sulfite de 1834 ou 1847 lotasse de anotações, ganhava um puxadinho.”
A romancista pesquisava basicamente em português. “Fui rastreando os temas de modo intuitivo, sem nenhuma metodologia acadêmica. Eu nunca havia encarado nada parecido. Era bem inexperiente como pesquisadora.” No fim de Um defeito de cor, Gonçalves apresenta uma bibliografia com 52 livros. Entre os títulos, constam trabalhos do folclorista Luís da Câmara Cascudo, dos historiadores Alberto da Costa e Silva, Sérgio Buarque de Holanda, João José Reis e Kátia de Queirós Mattoso, dos sociólogos Roger Bastide, Florestan Fernandes, Gilberto Freyre e Reginaldo Prandi, da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha e do etnólogo Pierre Verger. Apenas cinco romances figuram na lista. Os que se destacam são Viva o povo brasileiro e A casa da água, lançado pelo mineiro Antonio Olinto em 1969. O volume abre uma trilogia sobre o percurso de ex-escravizados e seus herdeiros no continente africano. A série – que prossegue com O rei de Keto e Trono de vidro – mereceu elogios da crítica por olhar os negros sem os preconceitos do eurocentrismo e conferir importância às matriarcas.
“Para construir a saga da Kehinde, li as 52 obras da primeira até a última página e consultei mais uma centena, que não coloquei na bibliografia.” A autora também examinou jornais, revistas, dissertações de mestrado, teses de doutorado, cartas de alforria, relações de nomes jejes, iorubás, bantos e fons, mapas antigos, correspondências, testamentos e processos judiciais, além de anúncios que comunicavam a venda ou a fuga de cativos. Ela garimpava boa parte dos documentos na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e em outras instituições de Salvador, como o Arquivo Público do Estado e o Arquivo Histórico Municipal. “Eu saía da ilha uma vez por semana para pesquisar.”
Depois de sete meses em Itaparica, Gonçalves sofreu um assalto e ficou temerosa de permanecer ali sozinha. Instalou-se na capital baiana, onde morou até o começo de 2003, quando encerrou os levantamentos. “Parei à força porque, se dependesse do meu lado perfeccionista, estaria pesquisando ainda hoje.”
À medida que cavava as informações para a saga, a romancista tentava compreender o mercado livreiro. “Selecionei as dez editoras do país que mais admirava e procurei radiografá-las. Apurei como surgiram, em que nichos apostavam, quais priorizavam a ficção e quantas estimulavam autores iniciantes.” Apesar de novata, a escritora almejava dar tiros certeiros na hora de pleitear a publicação do livro.
Os parentes de Ana Maria Gonçalves exibem tonalidades de pele bastante heterogêneas. Uns são pretos retintos. Outros, morenos ou brancos. Nem por isso, nas conversas de família em Ibiá e Porto Ferreira, a questão racial emergia. “Lidávamos bem com nossa miscigenação e não costumávamos debatê-la. Às vezes, um primo da minha mãe – cantor e violonista, negro escuro, politizado – arriscava levantar a lebre do racismo, sem o menor sucesso. Nos colégios em que estudei, também não me recordo de discutirmos o assunto”, conta a romancista. Ela tampouco se lembra de enfrentar discriminações quando criança ou adolescente. “A minha certidão de nascimento me identifica como parda, o que não significava muita coisa para mim naquela fase.”
A autora se enxergou negra somente mais tarde, em São Paulo: “Na Faap, uma faculdade de gente com dinheiro, existiam pouquíssimos alunos da minha cor. A branquitude imperava, mas ninguém me torcia o nariz. Eu, pelo menos, não notava qualquer tipo de animosidade. Percebia, apenas, estar um tanto fora de lugar. Era uma impressão que não rolava no interior. Em Ibiá, todo mundo se conhecia. Os laços comunitários diluíam as tensões e nos davam uma sensação de acolhimento.”
Enquanto trabalhava na capital paulista, a escritora travou contato com pretos conscientes da própria condição, que lhe abriram a cabeça. “Perto dos 25 anos, já me afirmava uma mulher negra. Usava o cabelo solto e não o alisava. Só que meu letramento racial ainda engatinhava. Frequentemente, na esperança de me elogiar, os brancos comentavam: ‘Por que você teima em se declarar negra? Não precisa… Sua pele é clarinha.’ Eu ficava embaraçada. Não sabia rebatê-los direito. Me faltavam argumentos.”
As pesquisas para o romance acabaram se mostrando um divisor de águas. “Investigar a diáspora africana, o Brasil colonial e a escravidão me fez entender com mais profundidade os meus ancestrais e me afeiçoar deles. A negritude se fortaleceu em mim. Saquei realmente de onde vim e para onde desejava ir.”
Também durante as pesquisas, no esforço de destrinchar as religiões afro-brasileiras, Gonçalves entrevistou alguns sacerdotes que cultuavam orixás ou voduns. Pôde, assim, se aproximar de Mãe Lindaura, dirigente de um terreiro em Salvador. “Eu a procurei com a finalidade de tirar dúvidas sobre o candomblé da nação ketu-angola. O papo fluiu tão bem que agendei mais um.”
No segundo encontro, a ialorixá jogou os búzios para a romancista. “Vejo que você é filha de Oxum”, cravou a sacerdotisa. A revelação causou espanto. Meses antes, por coincidência (ou não), a autora já havia decidido que Kehinde seria filha de… Oxum! “Daí em diante, estreitei os vínculos com Mãe Lindaura e hoje me considero adepta do candomblé.” Na entrada do apartamento onde vive, a escritora montou um altarzinho que abriga três representações de Oxum. Ela mantém uma quarta escultura em cima da mesa de trabalho. “Não me pergunte como, mas desenvolvi a capacidade de sentir aromas inusitados. Talvez o olfato me faça acessar dimensões mágicas ou algo que o valha. São cheiros agradáveis, nunca ruins. De repente, pesco no ar um odor floral ou terroso, mesmo se não tiver flores nem terra ali.” Caso note um perfume de jasmim, Gonçalves se alegra por acreditar que Oxum o exalou.
O altarzinho reúne, ainda, um Exu Menino, um Oxóssi, uma Iemanjá, um Xangô e uma Maria Padilha, a dama da madrugada. “Exu… O facilitador das comunicações, o mensageiro que possibilita o diálogo entre as divindades e os humanos. Gosto tanto dele…” Sempre que vai ministrar uma palestra, a romancista invoca a proteção de Exu e Nanã, a mais idosa dos orixás, “aquela que nos traz paciência e discernimento”. Por se educar no cristianismo, a autora cresceu com medo dos rituais de matriz africana. “Brinco que pertencia à Igreja Católica Apostólica Romana Mineira. Na infância, vestia roupa de anjinho em procissões, frequentava missas e associava caboclos ou pombagiras às artimanhas do demônio. Queria distância de charuto, atabaque, macumba.”
A escritora – que, no candomblé, ocupa o cargo de ekedi, a zeladora dos terreiros – se desligou do catolicismo durante a pré-adolescência. “Por volta dos 13 anos, li com atenção diversas partes da Bíblia, e nada colou. As histórias me pareceram muito sem graça. Para complicar, o Deus do Velho Testamento se comporta de um jeito extremamente punitivo. Tô fora! Na ocasião, me tornei agnóstica.” Hélia e Ivan, apesar de cristãos ferrenhos, não se opuseram. “Eles respeitam demais a autonomia dos filhos.”
Em vez de falar que se converteu às crenças afro, a autora diz que as reencontrou. “Estavam todas no meu DNA.” Restaram, porém, uns vestígios católicos. No altarzinho do apartamento, os orixás e a Maria Padilha convivem em harmonia com um São Jorge, uma imagem do Espírito Santo esculpida por Ivan e uma Nossa Senhora Aparecida, a santa predileta de Hélia. Se viaja de carro ou ônibus junto dos familiares, a romancista – que não dirige mais – pede o amparo de São Cristóvão, padroeiro dos motoristas. Ela adquiriu o hábito depois de sofrer um acidente com os pais e os irmãos. Em 30 de dezembro de 1990, um domingo chuvoso, os Gonçalves pegaram a BR-262 pela manhã. Pretendiam celebrar o Réveillon no Oeste de Minas. A Parati que Ivan guiava derrapou perto de Campos Altos e capotou. Ninguém se feriu gravemente, à exceção de Hélia, que cortou o rosto, furou o pulmão e perdeu o baço.
Quando decidiu redigir Um defeito de cor, a escritora supôs que liquidaria a fatura rapidinho. “Imaginei que, em seis meses, concluiria o levantamento de informações e colocaria ponto final na saga. Olha o tamanho da ingenuidade…” Mal percebeu o erro de cálculo, tratou de agir como o pianista erudito que toca em pequenos recitais com o objetivo de treinar para o concerto de gala. Ela iria fazer um livro menor enquanto arquitetava o maior.
Ao lado e à margem do que sentes por mim surgiu na Bahia, em 2002. Confessional, a trama oscila entre a autobiografia e a ficção. Não à toa, há quem a classifique de quase romance. A protagonista, que conta a história em primeira pessoa, se confunde com a Ana Maria Gonçalves da época – e não só porque ambas estavam na faixa dos 30 anos, compartilhavam o mesmo prenome e haviam abdicado da publicidade. “Emprestei outras características, bem mais íntimas, à personagem”, explica a romancista. No relato, a Ana mezzo real, mezzo inventada se muda para Itaparica depois de rupturas afetivas. Lá, rememora antigas relações amorosas, projeta uma nova e fica amiga do misterioso Zé. “O livro agrupa uma porção de questionamentos que me afligiam na juventude – sobre o passado, o futuro, as paixões, as escolhas e as imposições sociais.” Ao lado… se assemelha pouco à saga de Kehinde. Um dos escassos pontos em comum é a descrição de tradições e festas populares, como a Coroação de Nossa Senhora, no interior de Minas.
A escritora concebeu a narrativa de 310 páginas durante cinco meses, simultaneamente às pesquisas para Um defeito de cor. Ela mesma bancou a impressão. Encomendou mil cópias no formato de bolso e as vendeu sobretudo pela internet. “A capa exibia uma margarida de papel, em alto relevo. Cada volume trazia uma versão personalizada da flor, que confeccionei e colei sem o auxílio de ninguém.” A tiragem esgotou em noventa dias. “Na verdade, sobraram quarenta ou cinquenta exemplares, mas só guardei dois. Nem sei cadê o resto.” A autora preferiu não reimprimir o romance. “Eu explodia de inquietação. Não via a hora de estrear na literatura. Precisava ter alguma coisa palpável, finalizada, que legitimasse a maluquice de me livrar da agência, do apartamento e de São Paulo. Optei pela edição artesanal exatamente por ser um caminho menos burocrático. Também raciocinei o seguinte: se bater às portas das editoras apenas com Um defeito de cor nas mãos, qual a probabilidade de prestarem atenção em mim e analisarem os originais? Minúscula, né? Agora, caso o mercado constate que não sou tão principiante, minhas chances podem aumentar.”
Movida pela conjectura, Gonçalves criou outro blog, o Entrelivros, somente para divulgar Ao lado… O primeiro post saiu em novembro de 2002, e o último, em janeiro de 2003. O diário eletrônico apresentava depoimentos da publicação recém-lançada. Sim, o romance – e não propriamente a romancista – é que trocava ideias com os leitores: “Hoje […] a Ana passou quase o dia inteiro fora de casa. Foi à praia. Senti uma saudade enorme do tempo em que me carregava, inacabado e na fase das correções, para a beira do mar. Ficávamos os dois num banco de pedra, onde tinha uma vista maravilhosa da baía […]. Eu não me cansava nem quando a Ana escrevia várias vezes a mesma frase ou o mesmo parágrafo, até que fossem aprovados.”
Em 2006, a autora disponibilizou os treze capítulos da trama num terceiro blog, o 100 meias confissões de Aninha. Ela ainda rejeita a possibilidade de reimprimir a obra. “Melhor deixá-la quietinha. Não me envergonho do livro, mas também não me orgulho. É uma prosa imatura, apressada, que carece de ajustes. O texto ganharia consideravelmente, em termos estilísticos, se sofresse um processo de reescrita. Já a personagem principal… Boba demais! Reescrita nenhuma a salvaria.” Blogueiros ativos na ocasião do lançamento pensavam diferente. “Terminei o livro ontem com uma pontada de perda. Saboreei palavras fragmentadas e frases inteiras como quem degusta um doce muito bom depois de uma dieta rigorosa”, derramou-se Claudia Letti, do Afrodite sem Olimpo. “Vai escrever bem assim lá longe! Que musicalidade! Musicalidade de artista feita!”, reforçou Augusto Vieira, do blog que levava o nome dele.
O geólogo e jornalista Luiz Gravatá é outro que admira o romance. “Um relato excelente, rapaz! Do cacete! Poético, reflexivo, sedutor. Não compreendo as restrições da Aninha…” Morador do Rio desde a adolescência, o baiano de Itabuna tem 82 anos e sempre se referiu à escritora pelo diminutivo afetuoso. Por dominar computadores, assinou uma coluna semanal de informática no jornal O Globo, entre 1996 e 2008. “Eu cobria a área minuciosamente, das especificidades comerciais e técnicas à blogosfera. O Udigrudi, da Aninha, me fisgou assim que apareceu. Era inevitável, portanto, dar notas esporádicas sobre o blog.”
Gravatá logo comprou um exemplar de Ao lado… e, em 16 de junho de 2003, dedicou toda a coluna do Globo à autora. Numa entrevista de meia página, Gonçalves falou do livro e do Udigrudi, além de anunciar que preparava Um defeito de cor – até então, ainda sem título. Uma simpática foto da escritora ilustrava a conversa. Naquele período, o geólogo cultivava fecunda amizade com o humorista, dramaturgo, desenhista e tradutor carioca Millôr Fernandes, falecido em março de 2012.
Depois de ler Ao lado…, Gravatá o indicou para o amigo. “Tome o meu exemplar. Você não vai se arrepender.” O humorista, de fato, não se arrependeu. Por insistência do geólogo, procurou a blogueira em Itaparica. “Ele me ligou do nada, num fim de semana. Claro que, de início, não botei fé. Só podia ser trote”, lembra a romancista. “De repente, um dos intelectuais mais prestigiados do Brasil estava na linha com uma novata e a cobria de elogios por causa de um livrinho independente. Quem iria acreditar?” Millôr criticou um único aspecto da obra – o título. “É invendável!”, sentenciou.
O humorista aproveitou o telefonema e indagou sobre outros planos da jovem. “Contei das pesquisas para Um defeito de cor. Ele se empolgou com o projeto e criou a rotina de me ligar quase todo domingo à tarde.” Foi assim durante uns três anos. “Millôr me estimulava, dava conselhos e tirava dúvidas. Jamais pediu uma migalha em troca. Queria somente acompanhar o desenvolvimento do romance e me ajudar.” À época, o humorista traduzia A Celestina, tragicomédia do espanhol Fernando de Rojas, cuja primeira edição data de 1499. “A tarefa exigia bastante do Millôr, que lia para mim umas partes da tradução em andamento.”
Um pouco sem jeito, a escritora revela as qualidades que o humorista lhe atribuía: “Ele dizia que uma galera extremamente soberba circulava pelo meio literário. ‘Um bando de convencidos. Muitos nunca bolaram um parágrafo que preste e já se julgam o máximo’, reclamava. ‘Você me parece mais low-profile. Resolveu se meter num desafio homérico, arregaçou as mangas e está tocando o barco com seriedade, sem nenhuma afetação. É bonito de observar.’”
Os dois se conheceram pessoalmente apenas quando a romancista visitou Millôr no Rio, meses depois de estabelecerem o laço telefônico. “Enquanto nos relacionamos, tivemos quatro ou cinco encontros. Eu adorava nossas reuniões. Millôr se comportava de modo tão descontraído que não me intimidava. Era carinhoso e engraçado, mas um tanto pavão. Amava se gabar da memória prodigiosa. Certa vez, no estúdio dele, sugeriu: ‘Vá àquela estante, pegue o livro tal e abra em qualquer página. Me informe o número.’ Eu segui as instruções, e o cara reproduziu de cabeça a página escolhida, sem errar uma vírgula.”
Para escrever Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves saiu da Bahia e se refugiou na casa dos pais, em Três Corações. “O convite partiu de minha mãe: ‘Venha! Assim você poupa o dinheiro do aluguel e das refeições.’” A autora ocupou o maior dos quatro dormitórios que se distribuem pela confortável residência – um imóvel térreo, com quintal arborizado e uma piscininha. “Adotei um horário de trabalho inusitado. Às dez da noite, me trancava no quarto, sentava diante do teclado e varava a madrugada. Raramente folgava. Passei muitos sábados e domingos brigando com as palavras.” No computador, a escritora não usava o Word, popular software de texto comercializado pela Microsoft. Preferia o OpenOffice, um programa gratuito e de código aberto.
Às seis da manhã, quando terminava o expediente, imprimia o que acabara de produzir e acomodava os papéis no chão, fora do dormitório, mas junto da porta, que mantinha fechada enquanto dormia. Hélia apanhava as folhas tão logo pulava da cama e as devorava entre goles de café. Depois, entregava a papelada para Andressa, a filha caçula. A mãe e a irmã da romancista se tornaram, então, as primeiras leitoras da trama. As duas acompanhavam o desenrolar da saga em tempo real, como se vissem uma telenovela.
Naquela etapa do processo, Gonçalves pretendia apenas trazer o enredo à tona. Buscava, por isso, redigir sem amarras. Não se preocupava tanto com o estilo ou a correção gramatical. “Eu permitia que o fluxo da narrativa e a intuição me guiassem.” Caso travasse, apelava para um método curioso na esperança de recuperar o fio da meada: copiava trechos aleatórios de livros, respondia às correspondências atrasadas ou listava afazeres cotidianos. Por razões enigmáticas, o exercício banal da escrita restituía a fluência da imaginação.
A autora diz que escutava todas as observações da mãe e da irmã com atenção, especialmente as de Hélia. “Ela é minha leitora ideal. No fundo, escrevo para agradá-la.” Entretanto, nem sempre acatava o que a dupla propunha. Ambas se indignaram, por exemplo, com a morte de Banjokô, o primogênito de Kehinde. “Matar uma criança de 9 anos?! Que insensibilidade!”, protestou Andressa. “Uma gracinha de menino… Tocava até piano… Jamais pensei que você pudesse ser tão má, Ana Maria!”, reiterou Hélia, antes de avisar: “Corrija o estrago! Vou parar de ler os prints se você não ressuscitar o garoto.” A escritora fincou o pé, e a ex-costureira cumpriu a ameaça. “Fiquei brava de verdade”, garante Hélia, com um tom de voz levemente pesaroso. “Mas, devagarinho, entendi que a morte do Banjokô se justificava. A Kehinde precisava enfrentar aquela perda para adquirir resiliência. Minha zanga abrandou e retomei a leitura.”
A romancista ainda conserva o hábito de trabalhar entre as dez da noite e as seis da manhã. Só que já não fuma nem necessita de silêncio absoluto, como na casa dos pais. Ela superou as três décadas de tabagismo em 2020 e hoje, durante as jornadas tardias, costuma ouvir gravações de dois ruídos que considera apaziguadores. Um é o da chuva. O outro é o das máquinas de costura, que a faz se lembrar da mãe.
Gonçalves acabou a primeira versão do romance no finzinho de 2003. Levou praticamente um ano para concluí-la. Impresso em sulfite, na fonte Times New Roman 12, o texto somava 1,4 mil páginas. Kehinde não narrava a saga. Uma voz onisciente conduzia o enredo na terceira pessoa. O relato tampouco estava dividido em capítulos. Estendia-se pela imensidão de folhas sem qualquer interrupção.
Com o intuito de descansar, a escritora viajou para o Rio de Janeiro. Encadernou os originais do épico antes do voo e, mal desembarcou do avião, deixou o calhamaço no estúdio de Millôr Fernandes. Eram quatro volumes. Ele leu todos. De quebra, corrigiu o português, apontou os erros de lógica e sublinhou os vícios de linguagem com uma canetinha vermelha.
No tradicional restaurante La Fiorentina, o humorista deu a sentença à pupila: “Você é talentosa e inventou uma história incrível, mas por ora não tem um livro. Volte para Minas e recomece.” No jantar, Millôr tomou o cuidado de se expressar com tato e gentileza. Mesmo assim, a romancista acusou o golpe. “Morri de raiva! Cogitei desistir de tudo e regressar à publicidade.” Também aventou soltar os cachorros em cima do humorista. “Por sorte, o bom senso reinou e me recolhi à minha insignificância.”
Depois de digerir o veredito, a autora respirou fundo, encarou novamente a saga e a reescreveu dezoito vezes no intervalo de dois anos. Da sexta versão em diante, Kehinde assumiu o papel de narradora. O romance ganhou capítulos e perdeu mais de quatrocentas páginas. “Suei para eliminá-las. Com dor no coração, tirei as intrigas paralelas que me encantavam, mas que realmente atrapalhavam a fluidez da trama.”
Vira e mexe, Millôr recomendava à jovem que rejeitasse o beletrismo e valorizasse o linguajar simples, direto, sem firulas – de tal maneira que o enredo imperasse e ocultasse a carpintaria textual. “Quando você sentir que um trecho está muito bem escrito, trate de deletá-lo”, preconizava o humorista. “Geralmente, as frases lapidares afagam a nossa vaidade e destroem o livro. Cubra o ego, Ana Maria! Evite deixá-lo de fora.”
Foi também por sugestão do mestre que a escritora decidiu contar a saga na ordem cronológica e arejá-la com subtítulos. “Facilite a vida dos leitores”, clamava Millôr. “O romance já contém uma porção de episódios históricos, conceitos religiosos, descrições e reviravoltas. Se você fugir da linearidade e não botar uns respiros nos capítulos, vai complicar excessivamente a coisa.”
Outra caraterística fundamental da narrativa é a ausência de diálogos. “Eu não conseguia redigi-los. Tentei um bocado e naufraguei. Só a Kehinde conquistou uma dicção própria. Os demais personagens ficavam todos com a mesma voz. Um horror!”, afirma a romancista.
Na saga, Gonçalves nunca emprega as palavras “escravizado” ou “escravizada” para se referir àqueles que amargavam o cativeiro. As regras contemporâneas do politicamente correto avalizam os dois termos e recusam “escravo” ou “escrava”, muito comuns no livro. “A Kehinde vivia em pleno século XIX. Não podia se curvar às contingências linguísticas de agora”, pondera a autora. Por motivo idêntico, a protagonista diz “crioulo”, “crioula”, “mulato” e “mulata”, designações igualmente condenadas na atualidade. Durante o século XIX, aliás, “crioulo” não soava tão pejorativo. O vocábulo definia os descendentes de africanos nascidos no Brasil. Quanto às expressões “negro”, “negra”, “negrinho” e “negrinha”, Kehinde as utiliza apenas cinco vezes com o sentido racial. Ela prioriza os substantivos “preto”, “preta”, “pretinho” e “pretinha”.
Para driblar os anacronismos, a escritora também conferiu a origem de cada palavra-chave do épico. “Recordo que suprimi ‘maquiagem’ depois de constatar que a dicionarizaram somente no século XX.” Uma infinidade de termos afro – extraídos do iorubá, eve-fon, hauçá e quicongo – se espalham pela obra. A romancista traduz a maioria deles em notas de rodapé.
No final de 2005, Gonçalves chegou à versão derradeira do livro. “Percebi que a narrativa iria piorar caso houvesse novas reescritas. Gosto de reescrever, mas é necessário saber a hora de parar.” Ela não guardou nenhuma das versões anteriores. Num primeiro momento, a saga se chamava Defeito de cor. O artigo indefinido só despontou mais tarde. “Que tal Um defeito de cor?”, palpitou Millôr. “Não parece melhor?”
Quando arrematou a trama, a autora mergulhou num profundo vazio. As centenas de personagens que a rodearam por uma eternidade saíram do palco e se calaram. “Me defrontei com um luto pesado. Todo aquele povo que tagarelava na minha cabeça se recolheu. Achei que não suportaria o silêncio.” A escritora idealizou um número tão vasto de personagens porque almejava exprimir a diversidade dos pretos que circulavam pelo Brasil e pela África no século XIX. “A escravidão anulava os indivíduos. O senso comum enxergava os cativos como uma grande massa homogênea, uma multidão sem rosto, cultura, passado, anseios ou sentimentos. No romance, quis percorrer o caminho oposto. Cada negro do livro é absolutamente particular.”
À medida que escrevia, a romancista procurava imaginar as feições dos personagens. “Até hoje, associo a fisionomia da Kehinde à de uma das meninas retratadas pelo artista paulistano Vik Muniz na série Crianças de açúcar.” O ensaio visual de 1996 exibe filhos de trabalhadores rurais caribenhos. A protagonista da saga cresceu, acumulou fortuna, gerou herdeiros e se aproximou dos 90 anos, mas a autora ainda a vê como uma garotinha.
“Não vou ler nada. Confio em você”, anunciou Millôr Fernandes quando Ana Maria Gonçalves lhe apresentou a última versão do romance. Ele já ouvira pelo telefone vários trechos que a pupila reescrevera. “Leia uns pedaços da história para mim”, pedia à jovem nas conversas de domingo. “Se você engasgar em alguma palavra, corte sem dó. É sinal de que está sobrando.”
A escritora levou os originais pessoalmente até o estúdio de Millôr. Logo após se recusar à leitura, o humorista fez uma ligação: “Querida Luciana, tudo em cima? Vou te encaminhar a moça que acabou de terminar aquele livro esplêndido. Cuide bem dela. Do contrário, nunca mais trabalho com você.” Mal desligou, sacou 100 reais do bolso, os entregou à romancista e ordenou: “Pegue um táxi agora!” A neófita conheceu, assim, uma das principais executivas do mercado livreiro, a carioca Luciana Villas Boas. “O Millôr publicava pela Record. Por isso, costumávamos nos encontrar”, conta a diretora editorial do conglomerado à época. Num dos encontros, o humorista mencionou “a saga de quase mil páginas” que uma principiante mineira teimava em redigir: “Você precisa ler. É um assombro!” A diretora não se animou: “Mil páginas? De uma estreante? Ficou louco, Millôr? Onde arranjarei tempo para enfrentar o catatau?”
Semanas depois do encontro, o telefonema abrupto do humorista desarmou Villas Boas – pelo menos, parcialmente. A executiva não só recebeu a autora como resolveu espiar o calhamaço. “Pensei: vou olhar umas cinquenta páginas apenas para não deixar o Millôr sem um parecer mais abalizado. Eu pretendia me esquivar com bons argumentos: ‘De fato, meu amigo, não posso bancar o livro por causa disso, disso e disso.’ Ele dificilmente me recomendava alguém. Se estava insistindo naquela novata, merecia uma atenção especial.”
Para surpresa de Villas Boas, o relato a enfeitiçou: “O Millôr tinha razão. É um projeto ambiciosíssimo. A prosa límpida e fluente, a trama engenhosa, os personagens complexos e magnéticos, o pano de fundo histórico, a percepção aguçada de como os escravizados e os escravocratas se relacionavam com o mundo, tudo sensibiliza o leitor e o impede de abandonar o romance. A Ana Maria não despejou as fichas numa empreitada qualquer. Ela realmente se esforçou para construir um épico negro inigualável. Não há nada similar na literatura brasileira.”
Quando soube que a diretora planejava publicar a narrativa, Sergio Machado – presidente da Record – se opôs. O grupo lançava ficções de 250 a 300 páginas, em média. Seria arriscado apostar num produto três ou quatro vezes maior. A impressão sairia uma fortuna. “Péssimo negócio”, decretou Machado, que morreu em julho de 2016.
Perante a insistência da executiva, o presidente cedeu, mas alertou: a empresa não investiria um centavo além do habitual no marketing do livro. Já bastavam os gastos astronômicos com papel e gráfica. “Perguntei à Ana Maria se existia a possibilidade de cortar mais algumas partes. Ela avaliou que não. Suspirei um tanto apreensiva e respondi: ‘Pois bem… Seja o que Deus quiser…’”, rememora Villas Boas. Em maio de 2006, a Record colocou Um defeito de cor nas livrarias. Cada exemplar custava 79,90 reais. Hoje, sai por 109,90 reais, sem os eventuais descontos.
A escritora ganhou um pequeno adiantamento de direitos autorais: “Nem me lembro da quantia. Só recordo que não dava para muita coisa.” Villas Boas confirma que se tratava de “um valor irrisório” – algo em torno de 2,5 mil reais. À época, contudo, Gonçalves festejou a remuneração. “[A editora vai] me enviar o cheque, que vou fotografar e mandar enquadrar, como um amuleto, a ‘moedinha número 1 do Tio Patinhas’”, relatou num bilhete para o geólogo Luiz Gravatá.
Depois de resistir um pouco, Millôr topou fazer a orelha do livro. “Ele temia me prejudicar se aceitasse o convite”, revela a autora. O humorista dizia colecionar detratores. “O meu aval público jogará contra você”, explicou. A romancista ignorou o prenúncio, e a orelha resultou tão elogiosa quanto divertida: “Um defeito de cor está entre os melhores que li em nossa bela língua eslava. [O épico] não tem hausto, parada pra respirar. Desmintam-me, por favor.” A página que Millôr assinava semanalmente na revista Veja reproduziu o texto em maio de 2006, com uns acréscimos ainda mais laudatórios: “Entre os cem melhores? Que exagero é esse, rapaz? Entre os dez. Te cuida, Saramago!”
O aplauso do humorista não jogou nada contra e acabou favorecendo Ana Maria Gonçalves. A primeira edição da saga, com 3 mil cópias, esgotou rapidamente graças à exaltação na Veja, acredita Luciana Villas Boas, que se afastou da Record há doze anos e agora é agente literária. Em termos comerciais, depois do boom inicial, o livro sempre se comportou de maneira estável. Raramente atraiu legiões de compradores numa só tacada, mas também nunca perdeu força. O best-seller Torto arado, de Itamar Vieira Junior, outro romance que se debruça sobre a negritude, vendeu 828 mil unidades desde que a Todavia o lançou, em 2019. Já as peripécias de Kehinde precisaram de dezoito anos para suplantar a marca dos 150 mil exemplares. “Um defeito de cor tem saída muito constante e superior à de uma parcela considerável das ficções nacionais. É um long-seller”, resume a editora executiva Livia Vianna, que hoje zela pelo título na Record.
Em 11 de maio de 2006, pouco antes de a Veja publicar a apologia de Millôr, Sérgio Rodrigues saudou o épico. O crítico e romancista nem sequer terminara de ler “o tijolaço” quando se pronunciou. “Quis dar em primeira mão a boa notícia de que a literatura brasileira ainda consegue provocar surpresas”, escreveu num site relevante da época, o NoMínimo. O Prosa & Verso – extinto caderno semanal de O Globo – também celebrou a novidade. No dia 24 de junho de 2006, o repórter André Luis Mansur entrevistou Gonçalves e resenhou o livro. Sem camuflar o entusiasmo, anunciou que o “romance histórico de grande qualidade” nascia clássico. Ele avalizou o estilo “dinâmico e envolvente” da narrativa, além de glorificar “a pesquisa profunda” que a sustentava. No entanto, fez duas previsões que não se realizaram: disse que o relato seria adaptado para outras mídias e traduzido em “muitos idiomas”.
Até o momento, a saga continua restrita à seara literária. Em 2013, a Globo adquiriu os direitos da obra e cogitou transformá-la numa série de cinquenta capítulos, que passaria às 23 horas. Uma equipe de oito profissionais, liderada pela roteirista Maria Camargo, esquadrinhou o livro por dois anos e meio. O historiador Nei Lopes e o escritor Paulo Lins, que se destacou com o romance Cidade de Deus, integravam o time. Durante a pandemia, quando a série estava na redação final, a emissora a suspendeu. “Era uma tarefa descomunal, talvez cara demais para as condições atuais do mercado. A produção demandaria um elenco gigantesco, locações na África e uma reconstituição detalhada do século XIX”, afirma Camargo. “De qualquer modo, espero que, cedo ou tarde, Um defeito de cor ganhe uma adaptação à altura. A Kehinde merece.” Em novembro de 2023, os direitos comprados pela Globo expiraram, e a empresa não os renovou.
A monumentalidade também dificulta que a saga ultrapasse as fronteiras do país. Traduzi-la exige um esforço e um gasto de dinheiro que as editoras não parecem interessadas em despender. Por enquanto, somente Cuba encarou o desafio. A versão caribenha é de 2008 e decorre do Prêmio Casa de las Américas, conquistado pela autora na categoria que contempla apenas ficcionistas, poetas ou ensaístas do Brasil. Lêdo Ivo, Alberto Mussa, Nélida Piñon e Luiz Ruffato figuram entre os que já receberam a láurea.
Em 2007, por causa do épico, a Universidade Tulane, de Nova Orleans, convidou Ana Maria Gonçalves para se tornar escritora residente no Departamento de Espanhol e Português. Ela participava como palestrante de um curso que discutia as relações da literatura brasileira com a diáspora africana e a escravidão. Alunos da graduação e da pós assistiam às aulas.
Quando a residência semestral terminou, a romancista decidiu permanecer na cidade americana, já que se casara com um professor de Tulane. “Foi uma fase muito rica, em que aprofundei meus estudos a respeito da negritude”, relembra. A autora lia boa parte do tempo. Não raro, dava conferências ou workshops sobre Um defeito de cor em outras universidades dos Estados Unidos, como Stanford e as do Texas, de Michigan, do Kentucky e de Iowa. Também visitava locais que o movimento negro julga simbólicos. Esteve, por exemplo, em Montgomery e Selma, municípios do Alabama que presenciaram aguerridas manifestações pelos direitos civis durante as décadas de 1950 e 1960.
Um episódio que a marcou imensamente ocorreu num festival de jazz. A cantora Irma Thomas interpretava o repertório de Mahalia Jackson diante de uma plateia lotada, em Nova Orleans. “Eu avistei um lugarzinho entre duas senhoras pretas, que abriram espaço e me chamaram para sentar. Mal agradeci, ambas disseram: ‘You are welcome, sista!’” A palavra sista – corruptela de sister (irmã) – emocionou a escritora. “Senti que as mulheres me consideravam uma igual. As negras de lá não usam a expressão sista para se referir às brancas. Naquela tarde de 2007, minha identidade em construção se estruturou de vez. Rejeitei definitivamente as qualificações de mestiça, parda ou morena – eufemismos que ainda empregava – e me reconheci negra com N maiúsculo.”
Em novembro de 2014, depois de romper o casamento, Gonçalves trocou Nova Orleans por Salvador. A segunda temporada na capital da Bahia durou até 2017. A partir daí, a romancista se estabeleceu em São Paulo. O longo período no exterior lhe trouxe mais embasamento teórico e mais confiança para levantar a bandeira da luta contra o racismo. Desde 2010, com maior ou menor frequência, trata do assunto em artigos incisivos que o Portal Geledés, a Revista Fórum, o Intercept e outros veículos eletrônicos costumam publicar. “Elegi as questões raciais como o tema principal da minha literatura e do meu ativismo político”, afirma. Não por acaso, a autora gosta de repetir uma frase que a filósofa e militante Sueli Carneiro proferiu em fevereiro de 2000: “Entre esquerda e direita, continuo sendo preta.”
O meio acadêmico do Brasil também se interessou pelas aventuras de Kehinde. Eduardo de Assis Duarte, professor aposentado de letras na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), assinou o primeiro ensaio importante sobre Um defeito de cor. O educador de 73 anos dedicou parte expressiva do magistério à investigação de ficcionistas, poetas, dramaturgos e pensadores brasileiros que descendem de africanos. Para divulgá-los, ajudou a fundar o Literafro há duas décadas. O portal reúne textos e biografias de autores negros que se espalham por todo o país. O trabalho acerca do livro de Ana Maria Gonçalves saiu em 2009, no volume 1 da coletânea Leituras da resistência: corpo, violência e poder.
Depois do artigo, o romance serviu de mote para uma infinidade de pesquisas. Dissertações de mestrado, teses de doutorado e papers enfocam a trama pelos mais diversos ângulos: os do feminismo, da maternidade, da filosofia, da literatura comparada, da memorialística, da psicologia, da religiosidade, das discussões raciais… Em paralelo, no YouTube, canais como o da jornalista Isabella Lubrano e o do escritor Humberto Conzo Junior já organizaram leituras comentadas do épico. Desde janeiro de 2023, a ex-deputada federal Manuela d’Ávila e o professor de história Júlio César Vellozo oferecem um curso online sobre a saga.
A análise de dez estudos, incluindo o ensaio pioneiro de Assis Duarte, permite elencar, no mínimo, seis aspectos que fizeram Um defeito de cor despertar a atenção da academia:
* O fato de a narradora ser uma preta do Daomé torna o livro muito peculiar. Kehinde não apenas descreve a escravidão pela ótica de quem a vivencia. Ela também observa os eventos políticos, a ordenação econômica e as particularidades culturais do Brasil sob a perspectiva não eurocêntrica dos que estão na camada mais baixa da pirâmide social. A protagonista expõe, ainda, a própria subjetividade. Fala com desenvoltura dos temores, alegrias, tristezas, anseios, reminiscências e paixões que a atravessam. Até 1879, a legislação nacional impedia os negros sem alforria de frequentar a escola. Daí o analfabetismo entre os não libertos atingir a assombrosa taxa de quase 100% na segunda metade do século XIX. Consequentemente, são raríssimos os manuscritos que registram o testemunho de um escravizado. Refletindo o que se passou na realidade, a literatura brasileira não cultiva o hábito de dar voz para cativos. Em meio às poucas exceções, sobressai Úrsula. Trata-se do primeiro romance lançado por uma mulher no país. A negra maranhense Maria Firmina dos Reis o publicou em 1859. Num trecho do livro, uma personagem secundária – a escravizada Susana – assume a função de narradora e denuncia as agruras da servidão. Enfatiza, principalmente, os horrores de cruzar o Atlântico dentro de um tumbeiro superlotado. Nenhuma ficção em língua portuguesa adotara recurso similar até então. Mais de um século depois, Kehinde ampliou significativamente o relato que Susana principiara.
* Um defeito de cor subverte as regras clássicas da narrativa épica. “Geralmente, os épicos celebram as façanhas de um herói que simboliza as qualidades de um povo. Na Odisseia, de Homero, Ulisses – o rei de Ítaca – espelha a bravura dos gregos. Na Eneida, de Virgílio, o semideus Eneias se revela o maior dos guerreiros troianos”, explica Assis Duarte. “Já em Um defeito de cor, o herói imaculado cede espaço para uma heroína tão falível quanto qualquer indivíduo. Kehinde tem gestos admiráveis, mas se contradiz, destila preconceitos, manifesta soberba e consolida alianças moralmente duvidosas. A escritora faculta à protagonista o direito de errar. Transforma a personagem numa heroína anti-heroica.” Se a mentalidade racista desumaniza os negros, Gonçalves segue a trilha inversa e humaniza Kehinde até o último fio de cabelo.
* Por destacar a exuberância sociocultural da África, o livro refuta o pensamento ocidental que tira do continente o status de civilização. Em contrapartida, o romance foge do maniqueísmo e não edulcora aquele pedaço do mundo. Sem meias palavras, evidencia os sangrentos jogos de poder na região, a perversidade de certos reis, a escravização dos africanos pelos próprios conterrâneos, a opressão masculina sobre as mulheres e os conchavos da elite local com estrangeiros cobiçosos.
* A saga evita demonizar os brancos. Mesmo os piores escravocratas são capazes de atitudes generosas no decorrer da trama. Um defeito de cor tampouco idealiza os escravizados. Por um lado, os retrata como solidários, engenhosos, intrépidos, resilientes e empreendedores. Por outro, desnuda suas traições e mesquinharias, além das rivalidades entre os pretos naturais do Brasil e os nascidos na África ou entre os muçulmanos e os adeptos das religiões afro.
* O épico não sensualiza em excesso nem animaliza os personagens negros. Rechaça, assim, um estereótipo muito comum. Kehinde exercita a sexualidade ora com hesitação, ora com júbilo e assertividade, mas nunca de maneira ostensiva ou vulgar. A protagonista recusa a “encarnação de um erotismo primitivo e desenfreado”, para usar uma frase da intelectual americana bell hooks.
* A literatura brasileira não costuma associar as afrodescendentes à condição de mães, em parte porque as objetifica demais. “Mata-se, no discurso literário, a prole das mulheres negras. […] Elas quase sempre surgem como infecundas e, portanto, perigosas”, salientou Conceição Evaristo em agosto de 2005, num artigo para a Revista Palmares. Um defeito de cor nada contra a corrente quando ressalta a maternidade de Kehinde. Enquanto suporta a perda de dois filhos – Banjokô, o que morreu, e Luiz, o que desapareceu –, a personagem reproduz a experiência de inúmeras mães negras em luto. “O racismo extermina crianças e jovens de ascendência africana desde a era colonial. Lidamos com um passado que se atualiza permanentemente e que assombra qualquer família de pretos ou mestiços no país. Qual seria a história do Brasil se alguma daquelas mães enlutadas a contasse? O romance nos apresenta uma das respostas possíveis”, avalia Fabiana Carneiro da Silva, a professora da UFPB cuja tese de doutorado resultou no livro Ominíbú: maternidade negra em Um defeito de cor.
As críticas negativas à saga normalmente tocam em questões formais. Uns a julgam muito extensa e passível de cortes. Outros acham que a romancista se apressou no desenvolvimento de cenas fundamentais e se alongou no de episódios dispensáveis. Há, ainda, quem sustente que a linguagem simples e pouco figurada empobrece a narrativa. Em 2018, na revista Aletria, periódico trimestral mantido pela Faculdade de Letras da UFMG, o professor Gabriel Estides Delgado desaprovou a “linearidade absoluta” do enredo. Também notou que, às vezes, o épico “descamba para o didatismo exacerbado, algo escolar”, e soa um tanto artificial quando tempera o fictício com situações e personalidades verdadeiras. “Não tiro a razão dos que enxergam problemas na trama”, diz Assis Duarte. “O romance ocupa mesmo a prateleira das obras-primas salpicadas de pequenas imperfeições.”
“Caríssima Ana Maria Kehinde, […] ninguém escreve impunemente Um defeito de cor. Acabo de chegar à última sentença […]. Zonzura é o termo, porque vertigem é branca demais.” O poeta e babalorixá Ruy Póvoas, então docente da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), na Bahia, começou assim o e-mail que endereçou à autora em 18 de fevereiro de 2009. A mensagem comparava o livro com um crochê “magistralmente tecido”, que joga o leitor “numa sala de espelhos”. Póvoas opinava não somente como professor de literatura e representante do terreiro baiano Ilê Axé Ijexá Orixá Olufon, em Itabuna. Posicionava-se, acima de tudo, como tataraneto da nigeriana Inês Mejigã, sacerdotisa de Oxum que enfrentou a escravidão num engenho de Ilhéus.
Em 2009, Gonçalves lutava contra o renitente bloqueio criativo. Os trinta romances que a escritora tentou conceber durante o período de seca exploravam uma gama sortida de temas. Alguns exemplos: as mazelas das mulheres estupradas por militares brasileiros que compunham a missão de paz no Haiti, entre 2004 e 2017; a construção da Estrada Real, que interliga o litoral do Rio à região de Diamantina (MG); a imigração de latino-americanos para os Estados Unidos; os dilemas de um homem trans.
Depois de receber o e-mail, a romancista sedimentou uma frutífera amizade com o babalorixá. Em 2014, quando voltou de Nova Orleans, passou uma semana no terreiro de Itabuna para acompanhar uma festa de Oxalá. Ao longo das celebrações, o pai de santo disse à amiga que Um defeito de cor abrira um portal: “Você o cruzou e usufruiu de todas as benesses que havia do outro lado. Só que o portal se fechou. Não adianta insistir em reabri-lo. Nada se repetirá. Daquela mina, não brotará mais água. No entanto, pela graça dos orixás, a fonte da criação literária nunca cessará de jorrar em você.”
O presságio reverberou, e a autora finalmente se tranquilizou. “As palavras do Ruy contribuíram para me destravar. Eu estava pensando de um jeito infantil. Esperar que as situações se repitam é mania de criança. Meninos e meninas gostam de ver sempre os mesmos filmes porque já sabem como terminam, o que lhes traz certo aconchego.” Pouco a pouco, a escritora compreendeu que poderia desbravar novos meios de expressão. “Saquei que não precisava contar uma história apenas pela via da literatura.” Partiu, assim, para o estudo de outras linguagens e acabou redigindo três peças. (Diversos), sobre relações de casais, e Tchau, querida!, com uma pegada mais política, tiveram somente leituras dramáticas – em 2015 e 2016, respectivamente. O ator Wagner Moura dirigiu a segunda. Por sua vez, o espetáculo Chão de pequenos, que narra a trajetória de jovens abandonados pelas famílias, estreou em março de 2017, no Festival de Curitiba. A Companhia Negra de Teatro se encarregou da montagem. Felipe Soares e Ramon Brant dividiram a concepção do texto com Gonçalves.
Entre novembro de 2019 e janeiro de 2020, o Sesc Pompeia, em São Paulo, acolheu uma quarta investida teatral da romancista, a ópera pop Pretoperitamar, que homenageia o cantor Itamar Assumpção. A dramaturga Grace Passô e Gonçalves assinam o libreto. A escritora ainda fez dois roteiros cinematográficos – um deles em parceria com o ator Humberto Carrão – e a sinopse de uma série, mas não os ofereceu para nenhum produtor.
Enquanto se aventurava por linguagens diferentes, a autora conseguiu arrematar uns contos e, logo antes da pandemia, findou a primeira versão de Quem é Josenildo?. O romance juvenil de 450 páginas, que se desenrola em 2064, retrata um garoto negro de 13 anos. O personagem frequenta um colégio de elite na capital paulista e desaparece subitamente, mas deixa um bilhete que motiva três linhas de investigação: ou o rapazinho se suicidou, ou fugiu de casa, ou sofreu um sequestro. A metrópole distópica onde o adolescente mora se desligou do Brasil e virou um país independente, governado por uma inteligência artificial. Se Um defeito de cor olha para o passado, Quem é Josenildo? navega pelos mares do afrofuturismo. “Como estou reescrevendo a trama inteira, não sei quando vou finalizá-la”, afirma a romancista.
Ela também elabora com a irmã seis livros infantis sobre duas gêmeas que adquirem poderes mágicos. Outro projeto em execução, um misto de relato pessoal e ficção, aborda as vicissitudes da menopausa. A escritora – que não tem filhos – se percebeu na nova fase em 2020. “Meu ciclo menstrual, sempre tão regular, mudou de repente. Em seguida, pintaram os calores, um fogo interior, uma queimação que me causa suores absurdos. A transpiração abundante e inoportuna encharca tudo: roupa, cabelo, lençol. Parece que o corpo está me traindo.” Depois que os sintomas despontaram, a autora resolveu andar constantemente com um leque e se abanar quando necessário, sem qualquer pudor, como na Portelinha. “Já reparei que usá-lo em público é quase um gesto político. Há muito preconceito contra a menopausa. Por isso, iniciei o livro. Quero botar o assunto na roda.”
A romancista diz que não sofre pressão da Record para lançar mais títulos. “A Ana é contemplativa e detalhista. Possui o ritmo de quem escreve épicos. Não cria nada sem pesquisar e refletir bastante. Eu respeito o tempo dela. Não vejo por que pressioná-la”, argumenta a editora executiva do grupo, Livia Vianna.
Recentemente, Gonçalves leu Um defeito de cor pela primeira vez desde que o terminou. “Me deu vontade de acrescentar umas coisinhas, acredita? E de alterar palavras, frases, pontuações…” A autora encarou a leitura com o intuito de decupar a saga, que vai se transformar em graphic novel. Paulo Lins cuidará do roteiro, e Íldima Lima, das ilustrações. “O romance praticamente não chega às escolas de ensino fundamental ou médio. Por ser enorme, fica complicado trabalhá-lo em sala de aula. Daí a ideia de adaptar a história para os quadrinhos, um formato que os estudantes adoram”, explica Vianna.
Em setembro de 2022, paralelamente à edição habitual do livro, a Record colocou no mercado uma versão “de luxo”. Com capa reformulada e 968 páginas, a publicação especial traz um conto inédito da escritora (Ancestars) e obras da artista visual Rosana Paulino. A ficcionista Cidinha da Silva responde pelo texto da orelha, que substitui o de Millôr Fernandes.
O triunfo do épico ainda não garantiu independência financeira à romancista. Ela recebe trimestralmente 10% de direitos autorais sobre as vendas. Também fatura com oficinas literárias e cursos. Para dar palestras ou falar em rodas de conversa, debates, seminários e feiras, cobra 3 mil reais, no mínimo. Excepcionalmente, pode se apresentar de graça. No ano passado, participou de pelo menos dezoito eventos, que aconteceram em seis estados: Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Sergipe. Compromissos internacionais dificilmente aparecem. “Eu gostaria de ir à África, mas por enquanto não calhou. Nunca estive lá.”
De acordo com os “cálculos precários” da autora, Um defeito de cor lhe rendeu o suficiente para comprar um apartamento de dois quartos, equivalente àquele de que se desfez quando decidiu enveredar pela literatura. “Investi tudo no romance e, até agora, empatei o dinheiro. Não tive lucro.” Em vez de tentar adquirir outro imóvel, a escritora gasta as ocasionais economias com livros. “Sou compulsiva… Caso esbarre numa obra que me interesse, sai de baixo.” Sua biblioteca já totaliza cerca de 5 mil volumes.
Às 23h30 do último dia 12 de fevereiro, uma segunda-feira, Ana Maria Gonçalves adentrou o Sambódromo do Rio no topo de um carro alegórico que também abrigava o professor Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania. Felicíssima, de cabelos soltos, a romancista trajava uma fantasia com mangas bufantes, dançava de braços erguidos e cantava o samba-enredo da Portela: Saravá, Kehinde!/Teu nome vive!/Teu povo é livre!/Teu filho venceu, mulher!/Em cada um de nós, derrame seu axé. O desfile da escola não só enalteceu como recriou Um defeito de cor. Se no épico a protagonista redige uma correspondência para Luiz, na avenida os papéis mudaram: o filho tomou as rédeas da narrativa e escreveu uma resposta à mãe. Foi a carta dele que os 2,8 mil integrantes da Portela, distribuídos em 24 alas, encenaram diante de uma plateia muito receptiva. Na missiva, cujo teor o samba explicitava, o remetente se dizia saudoso da progenitora e a exaltava: O teu exemplo me faz vencedor.
Os carnavalescos André Rodrigues e Antônio Gonzaga escolheram fundir abertamente Kehinde com Luiza Mahin e o filho desaparecido com Luiz Gama, associações que o livro estabelece de maneira mais sutil. No desfile, ainda subvertendo o romance, houve um momento em que a heroína e o abolicionista se reencontraram. O abraço dos dois sintetizou lindamente as diferenças entre a trama original e a do Sambódromo.
O ministro – um dos intérpretes de Luiz Gama na Marquês de Sapucaí – compartilhou a passarela com outras personalidades afrodescendentes: Lázaro Ramos, Conceição Evaristo, a jornalista Flávia Oliveira, a atriz Taís Araújo, o ator Antonio Pitanga, o ex-jogador de futebol Cafu e o humorista Paulo Vieira. Dezesseis mães negras que perderam filhos para a violência, incluindo a da vereadora Marielle Franco, cruzaram a avenida no último e tocante carro alegórico. Ora atônitos, ora deslumbrados, os pais e os irmãos da autora desfilaram junto de 46 parentes e amigos. Por enfrentar alguns problemas técnicos durante a exibição de 67 minutos, a Portela ficou em quinto lugar na classificação geral. Levou, contudo, o mais antigo prêmio extraoficial do Carnaval fluminense, o Estandarte de Ouro, como melhor escola e pelo melhor enredo.
Meses depois de lançar a saga, a escritora recebeu um aviso de Mãe Lindaura, sua conselheira espiritual: Xangô, o orixá da justiça, queria o romance. A autora não ousou indagar por quê. Simplesmente pegou um exemplar e anotou numa das páginas iniciais: “Este livro é para Xangô.” Embrulhou o volume com zelo e, tão logo quanto possível, o entregou à Mãe Lindaura em Salvador. Ela o depositou no assentamento da divindade, sem a presença da romancista. “Pedido de orixá a gente não questiona”, afirma Gonçalves. “Hoje enxergo Um defeito de cor como uma graça, um valioso presente que ganhei da minha ancestralidade. Por razões que desconheço, meus antepassados resolveram me brindar com a história da Kehinde, que é também a deles. Eu apenas fiz jus à dádiva, já que trabalhei intensamente para colocar a narrativa de pé.”
(revista piauí)