segunda-feira, 1 de março de 2021

"Que presepada, minha irmã…"

Como Daiana Ferreira levou o balé clássico para um conglomerado de favelas cariocas

“Sabe como a gente reagiria se encontrasse a Daiana de novo?” Sentadas à beira de uma mesa simples, comprida e absolutamente vazia, as duas jovens sorriem quando percebem que fizeram a pergunta quase no mesmo instante. Uma tempestade de verão banha o Rio de Janeiro e ameniza o calor da sala muito espaçosa, onde não há ventilador nem ar-condicionado. “A gente apertaria bastante o pescoço dela!”, respondem as próprias moças, em uníssono. Depois, caem na gargalhada, mas a súbita explosão de alegria mal consegue esconder a tristeza que ainda as atormenta. “Pô, Daiana, desta vez tu exagerou…”, resmungam baixinho, assim que o ataque de riso vai embora. Não é incomum que soltem frases idênticas e simultâneas durante um bate-papo ou que uma complete o pensamento da outra. A dupla convive desde a infância. Formada em gestão de recursos humanos, Edna Idarrah dos Santos Corrêa agora está com 33 anos, e Carine Lopes, estudante de direito, com 31. Elas têm gestos, tons de voz e tipos físicos semelhantes. No entanto, Corrêa é negra retinta e Lopes, branca de olhos verdes.
“A Daiana sempre meteu a gente em situações complicadas. Ô menina para gostar de aprontar!”, relembram. “Nos tempos de colégio, questionava todo mundo e acabava arranjando briga. Imagine alguém espevitado. Era a Daiana! Acontece que a criatura não aguentava o tranco sozinha. Media o quê? Um metro e 60 ou menos. Depois de arrumar as tretas, precisava de ajuda. Adivinhe quem saía correndo para defender a tampinha. Nós, né?”
Há três meses, Daiana Ferreira dos Santos de Oliveira festejou 32 anos. “Minha irmã do meio… Eu nasci em 3 de dezembro de 1987. Ela, em 1º de dezembro de 1988. Ficávamos dois dias com a mesma idade. Por isso, vivíamos zombando: ‘Somos gêmulas! Praticamente gêmeas.’ A caçula da família, Ana Beatriz, só chegou em 1995”, diz Corrêa. As “gêmulas” e Lopes se conheceram antes da alfabetização, quando já moravam no Complexo de Manguinhos, um agrupamento de favelas cariocas. Desde então, nunca mais se largaram. Estudaram juntas, inventaram mil brincadeiras, compartilharam segredos amorosos, discutiram por bobagens e fizeram as pazes. Certa ocasião, uma delas cismou de batizar o trio. “Viramos ‘as monetes’”, prossegue Corrêa. A palavra denomina um tipo de penteado feminino que se parece com o coque. As garotas, porém, ignoravam a definição e julgavam ter criado o vocábulo.
Em 2012, Daiana tomou coragem e abriu uma escola de dança no complexo, a única da comunidade que oferece aulas de balé clássico. Ao longo dos primeiros anos, a iniciativa arregimentou centenas de alunos, despertou a atenção de patrocinadores e ganhou a anuência de Claudia Mota, principal bailarina do Theatro Municipal do Rio. Gratificada, mas surpresa com o avanço, a fundadora e presidente do projeto temeu não poder levá-lo adiante por conta própria e pediu socorro às demais “monetes”. “Foi, disparado, a melhor confusão em que a Daiana nos colocou”, avalia Lopes, que assumiu a vice-presidência da escola. Já Corrêa se tornou analista de planejamento institucional. Quando aceitaram as funções em 2019, as duas amigas nem sequer cogitavam que um novo – e intrincadíssimo – desafio se avizinhava. “Fala sério, Daiana! Custava aliviar um pouco a barra?”, reclamam outra vez, cientes de que a interlocutora jamais  responderá.

Mãe das “gêmulas”, a carioca Rosali Ferreira dos Santos só terminou o ensino fundamental. Mesmo assim, adora ler. Na juventude, devorava “romances de banca”, como Júlia e Sabrina. Os livros propagavam aventuras amorosas que transbordavam erotismo e se desenrolavam em lugares exóticos. “Meu segundo nome é Idarrah por causa de uma daquelas histórias”, explica Corrêa. Um índio e uma antropóloga se apaixonam nos confins da selva. Sob o luar, concebem um bebê muito gracioso, que resolvem chamar de Idarrah. “Significa ‘o nascer do sol’”, afirma a primogênita de Rosali dos Santos, sem estar totalmente certa da informação nem do enredo que acabou de narrar.
O nome de Daiana também dialoga com os contos de fada modernos. Ela o herdou de Lady Di, a princesa de Gales. “Foi nossa prima Agda, que tinha 6 anos, quem o sugeriu”, rememora Corrêa. À época, boa parte do mundo ainda desconhecia que as bodas reais de Diana Frances Spencer haviam se convertido num pesadelo.
A mãe das “gêmulas” e de Ana Beatriz manteve uma relação errática com o pai delas, um comerciante mineiro. O casal nunca morou junto. Tampouco dividia as responsabilidades e os gastos familiares. “Até porque meu pai gerou mais nove filhos, com outras três mulheres”, ressalta Corrêa. Para sustentar as meninas, Rosali dos Santos trabalhava como empregada doméstica e, esporadicamente, acompanhava os patrões em teatros ou galerias de arte. O apreço pela leitura se uniu, assim, à admiração por quadros, concertos, peças e óperas.
“Sempre que possível, minha mãe buscava nos ‘transmitir cultura’, como gostava de dizer. Ela levava a gente à biblioteca do Centro Cultural Banco do Brasil, onde passávamos o dia inteiro. Também economizava para nos comprar livros em sebos.” Com o incentivo da mãe, as crianças leram O Caso da Borboleta AtíriaO Menino do Dedo Verde e outros clássicos da literatura infantojuvenil que não integravam o currículo escolar. Uma vez, a mãe e as filhas visitaram o suntuoso edifício de 1909 que abriga o Municipal do Rio. Lá puderam ver, maravilhadas, O Lago dos Cisnes, balé dramático do compositor russo Piotr Tchaikovski. Daiana travou, então, o primeiro contato com a dança erudita.
Bem antes do passeio, a garota já demonstrava interesse por coreografias. Em casa, diante da tevê, imitava os remelexos frenéticos do grupo É o Tchan! e a sensualidade da adolescente Britney Spears. Não à toa, odiava a movimentação insossa do coral que se exibia na igreja batista frequentada pela família. “Meus antepassados curtiam os terreiros de umbanda ou de candomblé, não sei direito. Mas, quando uma de nossas tias migrou para o cristianismo, tratou de converter todos os parentes”, recorda Corrêa.
Apesar de ser profundamente religiosa, Daiana se permitia questionar alguns dogmas. “Por que os homens, e não as mulheres, escreveram a Bíblia?”, indagava para as irmãs logo após os cultos dominicais. “Porque queriam eternizar o poder masculino, claro!”, emendava, sem aguardar a opinião de ninguém.
Frustrada com o desempenho do coral, procurou o pastor. Tinha 13 anos, se tanto:
– Precisamos mudar aquilo!
– Aquilo o quê? – retrucou o pastor.
– O jeito como os participantes do coral se mexem. Cadê a atitude? A criatividade? Eles movem apenas os braços. Parecem uns robozinhos. E o resto do corpo?
– Você nem canta no coral! Para que se meter?
– Não canto, mas vejo as apresentações. Péssimas! Dançar é importante, pastor. Está no Velho Testamento. Lembra-se da Miriã?
A mocinha se referia à profetisa que, no livro do Êxodo, comemorou o momento em que os judeus atravessaram o Mar Vermelho, sob a liderança de Moisés. “Então Miriã […] pegou um tamborim, e todas as mulheres a seguiram, […] dançando”, relata o trecho bíblico. A travessia inaugurou uma nova fase para o povo hebreu, que enfim se livrou dos perseguidores egípcios. Soterrado pela insistência da jovem, o pastor cedeu e autorizou a intervenção no coral. “Só não abuse da minha confiança, hein? Faça alterações suaves”, advertiu.

À 
medida que se incumbia da tarefa, Daiana percebeu o óbvio: faltavam-lhe conhecimentos mais sólidos para aprimorar o gestual dos cantores. “Tenho que aprender balé”, concluiu. Mas onde? Escolas particulares custariam os olhos da cara. Depois de uma rápida pesquisa, a menina descobriu um projeto social que dava aulas gratuitas e o abraçou sem hesitar. Permaneceu lá por três anos. “Eu também me inscrevi”, diz Corrêa. “Nós duas saíamos do colégio e andávamos até o projeto, que ficava longe de nossa casa. O percurso de ida e volta somava uns 4 km, pelo menos.”
Praticar balé clássico não apenas possibilitou que Daiana repaginasse o coral da igreja como lhe forneceu a base para se aventurar em outras danças, das populares (especialmente, o jongo e o samba) à contemporânea. “Ela nunca deixou de se aperfeiçoar”, enfatiza Lopes. “Fez uma porção de workshops e batia ponto nos espetáculos das grandes companhias brasileiras. Amava a da Deborah Colker, por exemplo.”
Com 16 anos, Daiana arrumou o primeiro emprego. Tornou-se monitora do Museu da Vida, que pertence à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Mais tarde, assim que finalizou o ensino médio, conseguiu uma bolsa do governo federal para estudar educação física no Centro Universitário Celso Lisboa. Enquanto cursava a faculdade, não parou de trabalhar. Foi atendente de telemarketing e recreadora de festas.
Em 2010, um colégio municipal a contratou como professora de jongo. Dois anos depois, a moça resolveu empreender. “Vou criar uma escola infantil de balé em Manguinhos”, anunciou para os familiares. O plano soava absurdo. Quem teria condições de bancar as aulas numa comunidade tão pobre? “Não se preocupem. Vou cobrar barato”, argumentou Daiana. Espalhado pela Zona Norte do Rio, o Complexo de Manguinhos reúne sete favelas, de acordo com a prefeitura, mas os moradores afirmam que são catorze. Cerca de 42 mil pessoas habitam o conglomerado, ainda segundo a população local, que está sob o controle da facção criminosa Comando Vermelho.
A escola recém-aberta funcionava numa sala alugada e logo atraiu oitenta crianças. Ocorre que, de fato, a inadimplência dos alunos se mostrou um problema, e o empreendimento naufragou em menos de seis meses. Como não dependia economicamente do negócio por continuar lecionando no colégio municipal, Daiana decidiu que ensinaria balé de graça. Perto da casa dela, existia uma igreja evangélica. A professora se muniu da ousadia costumeira e bateu à porta do templo. “Pastor, quero usar a igreja para minhas doideiras. O senhor empresta?” O religioso concordou de imediato, e a escola renasceu ali.
“A Daiana tinha um lema: ‘O não já é certo. Vou em busca do sim.’ Por um lado, tamanha persistência a favorecia. Por outro, a transformava numa figura muito centralizadora, que não media esforços para atingir os objetivos”, analisa Corrêa. “Era uma mulher teimosa! Cabeça-dura mesmo! Se encasquetava com uma ideia… Sai debaixo!”, resume Lopes.
Em 2013, o ponta-direita Jairzinho, craque da Copa de 70, soube da escola. Ele ministrava aulas de futebol para a garotada de Manguinhos e dos arredores. A Petrobras financiava a ação. “O cara se impressionou tanto com as maluquices da Daiana que propôs ajudá-la. Separou uma parcela do dinheiro que ganhava da Petrobras e pagou um salário para a minha irmã.” O auxílio garantiu que a professora deixasse o colégio municipal e se dedicasse somente à escola de dança.
Quando o jogador interrompeu o aporte por falta de recursos, Daiana ficou um período sem patrocínio até conquistar o apoio da Asfoc-SN, o sindicato dos trabalhadores da Fiocruz. A essa altura, a iniciativa já contava com outros professores e não ocupava mais a igreja. Mudara-se para a Biblioteca Parque de Manguinhos, espaço mantido pelo governo fluminense. Entusiastas do projeto, as atrizes Priscila Fantin e Samara Felippo o divulgavam na mídia enquanto Claudia Mota – a bailarina do Municipal – virava madrinha da escola. Para tourear os novos obstáculos que a improvável jornada lhe trazia, Daiana frequentava cursos de produção cultural e empreendedorismo social.

No finzinho de 2016, a Secretaria de Estado de Cultura fechou a Biblioteca Parque para conter despesas. “Como assim?”, indignou-se Daiana. “Onde vou botar minhas crianças?” Ela tentou negociar com as autoridades, mas não teve sucesso. Optou, então, pela alternativa mais radical: juntou as mães de alguns alunos e invadiu o espaço na marra em janeiro de 2017. Durante um ano e cinco meses, o grupo se encarregou de gerir a área para que as aulas de balé prosseguissem. A estratégia funcionou. O governo reabriu a biblioteca e lhe deu o nome de Marielle Franco, a vereadora negra do Psol assassinada havia pouco tempo.
A batalha de Daiana mereceu uma reportagem no New York Times em julho de 2018. O artigo do jornalista Ernesto Londoño acabou chegando à fundação norte-americana The Secular Society. Localizada na Virgínia, a TSS investe em ações educacionais, artísticas, esportivas ou ambientais de diversos países: Argentina, Itália, Nepal, Quênia, Iraque, Madagascar e Paquistão.
Embora não falasse inglês, Daiana compreendeu perfeitamente quando a organização manifestou o propósito de patrocinar a escola. A oferta parecia um sonho. Entre novembro de 2018 e agosto de 2021, a TSS substituiria a Asfoc-SN e arcaria não só com a verba necessária para sustentar o projeto, mas também para ampliá-lo e lhe comprar uma sede definitiva. A injeção monetária, no entanto, não seria renovável.
Hoje, o Ballet Manguinhos – como a escola se chama desde 2014 – possui onze funcionários remunerados e 250 alunos com idades entre 6 e 29 anos. Escolhidos por sorteio, os estudantes podem fazer tanto aulas de dança quanto de circo. A maioria deles é do sexo feminino e se declara branca. Quinhentos jovens e crianças estão na fila à espera de uma vaga.
Mensalmente, a TSS destina uma média de 35 mil reais para o projeto. Em dezembro de 2020, a escola adquiriu o prédio de quatro andares e 600 m2 que lhe serve de base. O imóvel, situado na entrada de Manguinhos, custou 800 mil reais.

“Era magérrima, acredita? Um varapau, mas sempre teve seios imensos.” Corrêa descreve assim a irmã, toda vez que se lembra da adolescência de ambas. “A Daiana só ganhou peso depois do estupro.” O ataque se deu numa rua escura e deserta. A garota de 19 anos saía do trabalho quando um desconhecido a agarrou. “Ela não escondia de ninguém o que rolou”, conta Lopes. “A questão é que, no fundo, jamais superou o trauma e se refugiou na comida, entende? Comer a reconfortava.”
Por uma década, Daiana nutriu o desejo de emagrecer e reduzir as mamas, que lhe sobrecarregavam a coluna e dificultavam sua respiração. A moça, porém, nunca encontrava uma brecha para se submeter à cirurgia plástica. Com o advento da pandemia, o ritmo da escola diminuiu bastante, e a professora finalmente marcou a operação.
O procedimento ocorreu em setembro de 2020. Enquanto se recuperava, Daiana desenvolveu uma enfermidade raríssima, o pioderma gangrenoso. Trata-se de uma inflamação que provoca feridas recorrentes e bem dolorosas pelo corpo. Uma resposta imune exagerada pode desencadear o quadro. “Tudo indica que o organismo da Daiana encarou a cirurgia como uma agressão excessiva e reagiu de maneira anormal”, lamenta Corrêa.
No último dia 7 de janeiro, a professora sentiu os primeiros sintomas da Covid-19. Ela ainda exibia várias lesões cutâneas, principalmente na parte superior do tronco. O coronavírus se revelou impiedoso. Aproveitou a fragilidade da paciente e a levou para o CTI. No dia 18 de janeiro, às 10h30, a presidente do Ballet Manguinhos morreu. Deixou um filho de 3 anos.
“E agora? Como vamos continuar sem a líder das ‘monetes’?”, pergunta Lopes na sala abafada da escola. “Pois é… Que presepada, minha irmã…”, suspira Corrêa.
(revista piauí)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

E.T. de Ipanema

A história de um falso acaso

J
á virou hábito. Todos os dias, quando acordo, olho para a esquerda e verifico se a fotografia continua lá, presa à parede branca, entre molduras de metal e sob um vidro levemente fosco. Na verdade, não verifico coisa nenhuma. Sei que o quadro estará sempre ali, intacto e junto da ampla janela que ilumina o pequeno dormitório. Mesmo assim, repito com perseverança o ato de observá-lo pela manhã, como um vigia inútil ou um pastor que teima em zelar por ovelhas incapazes de fugir. Não se trata de mania nem superstição. É realmente um hábito, que adquiri quase sem notar.
Salvo engano, mandei emoldurar a imagem no começo de 2019, pouco depois de me mudar para o quarto e sala onde ainda moro sozinho. A foto certamente não se destaca pelo tamanho. Tem apenas 20 cm de comprimento por 13 cm de largura. Muitos dos que já me visitaram nem sequer a perceberam. Não se aproximaram dela para apreciar a cena idêntica à que ilustra esta reportagem ou perguntar quem, afinal, é aquela mulher de capacete espelhado. Caso me perguntassem, confesso que não conseguiria responder. Tampouco saberia informar em que praia a misteriosa personagem se deixara retratar. Tudo o que dissesse seria pura suposição e revelaria mais sobre mim do que sobre a foto.
A praia, por exemplo. Mal vi a imagem pela primeira vez, cismei que a mulher se encontrava em Ipanema. Falta de imaginação, sem dúvida, e talvez o sintoma de uma alma irremediavelmente provinciana. A mulher poderia estar na Indonésia, no Havaí ou na Sicília, mas escolhi situá-la justo no Rio de Janeiro, a alguns quarteirões de minha casa. A criatividade exígua acabou por me inspirar uma piadinha tola e ligeiramente machista. “Tom e Vinicius tinham a Garota de Ipanema. Eu tenho a E.T. de Ipanema”, gracejei certas manhãs, enquanto admirava a fotografia.
Sim, uma E.T. Logo de cara, a mulher enigmática me pareceu vir de outro mundo. Era divertido considerá-la de Marte, Júpiter ou Saturno. Uma alienígena morta de cansaço, que resolveu tirar férias em Ipanema. O faz de conta, porém, se mostrou bem menos prazeroso quando admiti o óbvio: a criatura em questão dispunha de um corpo demasiadamente humano, que me impedia de aderir por completo à divagação. Como acreditar numa extraterrestre com feições tão terrenas?
Quanto mais examinava o quadro, mais paradoxos me esforçava em lhe atribuir. Garimpar incoerências na imagem se tornou um entretenimento irresistível, sobretudo depois que a Covid-19 nos impeliu à clausura doméstica. Volta e meia, a figura feminina me evocava um orixá futurista – o que, em si, já é uma contradição. Orixás provêm de um passado remotíssimo, que se localiza quase fora do tempo. Pertencem à solidez da ancestralidade, não às incertezas do futuro. Em determinados instantes, a protagonista da cena também me lembrava as passistas do Sambódromo. Uma mulher branca, portanto, sintetizava duas marcas inequívocas da negritude no Brasil: as religiões de matriz africana e o Carnaval. Mais um contrassenso da foto.
O quadro me remetia, ainda, à situação exasperante em que a pandemia nos meteu. Por um lado, o capacete da personagem dialogava com as incômodas máscaras que todos precisamos usar desde março do ano passado. Por outro, refletia em sua superfície um grupo de banhistas à moda antiga: aglomerados e sem nenhuma proteção facial. A nova e a velha normalidades compunham um retrato que, agora, me soava profético. Quando emoldurei a imagem, não havia nem sinal do Sars-CoV-2, mas os dilemas e limites que o vírus iria nos impor já se apresentavam na cena. Aliás, em que circunstâncias a mulher sem rosto teria sido fotografada? Durante a realização de um clipe, um filme, um comercial? Ou justamente na concentração de um bloco carnavalesco?
Quatro meses e meio atrás, enquanto me distraía com tantas especulações, recebi uma notificação incomum pelo celular. Uma desconhecida solicitava autorização para me seguir no Instagram. Hoje em dia, já não sou frequentador das redes sociais. Se dependesse de minha influência digital, estaria na rua da amargura. Por isso, me surpreendi quando a mensagem chegou. Eu tinha, à época, somente 257 seguidores e conhecia todos – uns de perto, outros só pela internet. Até aquele 17 de setembro de 2020, ninguém que não fizesse parte, direta ou indiretamente, do meu círculo íntimo manifestara o desejo de acompanhar minhas escassas publicações. Cismado com a estranha, tratei de xeretar o perfil dela. Das 1 735 pessoas ou instituições que a seguiam, nenhuma também me seguia.
Um vídeo de 86 segundos figurava entre os posts mais recentes da desconhecida. Tão logo o abri, levei um susto. Era a E.T. de Ipanema! A protagonista enigmática da foto agora surgia de corpo inteiro, diante de um ponto turístico muito disputado no Rio, o Museu do Amanhã. Trajava o mesmo figurino exótico do retrato e posava para as câmeras dos curiosos que a rodeavam. De vez em quando, dava alguns passos. A trilha sonora do vídeo, instrumental, se assemelhava à das ficções científicas hollywoodianas.
Explorando um pouco mais o perfil, descobri outras paisagens que a alienígena desbravara. Ora pude avistá-la na capital da Islândia, ora num deserto dos Estados Unidos ou numa ilha da Bahia. Não demorei para concluir que a extraterrestre de capacete espelhado e a dona do perfil, uma mulher sorridente, de cabelos bem longos, eram a mesma pessoa. Por incrível que pareça, a criatura sem identidade que zelava o meu sono e amenizava a minha quarentena de repente ganhou nome, sobrenome e uma face. Mera casualidade ou artimanhas de um destino em que nem ao menos me permito crer?

“Vou participar da Tijuana no sábado e no domingo. Quer ir?” A Tijuana é uma feira descolada onde artistas expõem e comercializam toda sorte de impressos: gravuras, pôsteres, cartões-postais, quadrinhos, livros e adesivos. Idealizado pela Galeria Vermelho, de São Paulo, o evento nasceu há doze anos. De início, se restringia à capital paulista, mas depois avançou para o Rio, Buenos Aires e Lima. O Parque Lage, na Zona Sul carioca, abrigou a 19ª edição da mostra em agosto de 2018. Foi quando uma amiga, Maíra Marques, me fez o convite: “Passa lá. Vou tentar vender alguns dos meus livrinhos artesanais.” Ela trabalha com publicidade e se diz comunicóloga. No entanto, prefiro defini-la como uma “artista tímida”. Minha amiga pensa o tempo todo em arte, adora conversar sobre o tema, nunca deixa de estudá-lo, frequenta exposições e usa as horas vagas para desenvolver projetos artísticos. Cria desde intervenções urbanas e performances até cartazes, vídeos e obras sonoras. Só que, apesar das evidências, raramente se proclama artista. “Nem sempre consigo… Em que momento alguém vira artista? Em que momento pode assumir socialmente a condição de artista? Ainda não sei a resposta.”
Entre os livros artesanais que Marques levou para a Tijuana, um me interessou de imediato: Psilocibina. Tinha oito ou dez páginas, já não lembro direito, e reunia somente fotografias. O título da publicação coincidia com o nome da substância alucinógena que está presente em vários tipos de cogumelos e que minha amiga provara recentemente. “Tomei uma microdose, um tiquinho de nada, mas o bastante para sentir vontade de abordar a experiência num livro”, contou. Psilocibina juntava, assim, uma série de imagens que aludiam às visões trazidas pela droga, incluindo o retrato da E.T.
– Quem é? – perguntei, enquanto folheava o livro.
– A mulher de capacete? Não faço a mínima ideia – retrucou Marques. – Eu a vi na praia e fotografei.
Não me ocorreu questionar em que praia exatamente a cena se desenrolara.
– Gostei! Topa vender?
– Só a foto?
– Sim.
– E o resto do livro?
– Pois é… Pensei em comprar apenas a imagem original, sem as modificações. Muita folga?
No livro de 150 reais, o retrato da alienígena exibia duas interferências. O céu originalmente azulado se tornara cor-de-rosa. “Arranjei uma canetinha com tinta cintilante e o pintei”, esclareceu minha amiga. Ela também escreveu uma frase um tanto hermética embaixo da foto: “Capacete invisível para pensamentos perigosos é mais importante do que colágeno.”
Com 37 anos recém-festejados, Marques andava refletindo sobre o envelhecimento. “Claro que ainda sou jovem. Mesmo assim, noto que minha pele já mudou. A maciez, o viço e a firmeza de antes se perderam. É por causa do colágeno, né? Está diminuindo… Ninguém curte lidar com o declínio do próprio corpo, mas existe coisa pior do que a decadência física. São as ideias tortas, retrógradas, pessimistas, que nos envenenam e fazem a gente murchar rapidinho. Imagine se houvesse um capacete invisível que bloqueasse os pensamentos nocivos, que os impedisse de circular dentro e fora de nós. A gente envelheceria sem envelhecer.”
Naquele domingo, minha amiga não me vendeu a foto. Recusou gentilmente a oferta, mas não cerrou todas as portas: “Vou avaliar…” Mal saí da feira, me penitenciei pela proposta deselegante. Onde estava com a cabeça? O que um escritor me responderia se lhe dissesse: “Cara, adorei o teu romance! Só que vou comprar apenas o capítulo 12, o.k.?”
Passaram-se uns meses e, para minha surpresa, Marques aceitou fechar o negócio. Ela cobrou pela imagem da extraterrestre o preço do livro: 150 reais.

“Você se repete? Você se arrepende? Procuro pessoas que, mesmo depois de arrependidas, continuam repetindo seus atos.” Eu acabara de deixar a estação Carioca do metrô, no Centro do Rio, quando deparei com o cartaz que estampava o curioso apelo. Não me recordo de onde se encontrava. Num poste? Ou na fachada imunda de algum boteco? A convocação trazia um endereço digital: arrepetimento@gmail.com. O neologismo me despertou ainda mais atenção do que o apelo. Arrepetimento! Que palavra engenhosa! Resolvi entrar na brincadeira (seria uma brincadeira?) e escrevi para o endereço. Foi assim que, em setembro de 2017, conheci Maíra Marques.
Ela colara três daqueles cartazes pela cidade sem um propósito muito definido. “Já reparou que todos nós repetimos certos comportamentos ruins? Às vezes, sabemos por experiência própria que vamos nos ferrar se agirmos novamente de determinada maneira. Mas não adianta: a gente insiste no erro. Por quê? Na esperança de compreender minimamente a questão, decidi estudá-la”, relatou a artista em resposta à minha mensagem. Estudá-la significava ler um pouco sobre carma, reencarnação, compulsões e a milenar teoria do eterno retorno, que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche reinterpretou no século XIX. Também significava debater o assunto com quaisquer estranhos que se mostrassem interessados. Daí os cartazes espalhados pelo Rio. “Para mim, a pesquisa que estou fazendo já é o trabalho artístico”, explicou. “Se vai resultar em algo mais palpável, não arrisco dizer.”
No decorrer de dez meses, acompanhei o processo de longe, com muito entusiasmo, ainda que sem participar do experimento. Periodicamente, Marques me enviava sinais de fumaça por e-mail. “Recebi arrepetimentos de todos os cantos”, escreveu numa ocasião. “Gente que se arrepende de beber, de roubar, de mentir ou de não se esforçar o suficiente em termos profissionais. Mas a maioria dos que me procuram se arrepende mesmo é de comportamentos equivocados no terreno afetivo, amoroso, sexual.”
Em julho de 2018, nós finalmente marcamos o primeiro bate-papo offline. Num café de Ipanema, minha nova amiga anunciou, empolgada, que terminara a investigação. Cerca de trinta pessoas haviam aderido à iniciativa, que teve, sim, desdobramentos mais concretos. A artista não só realizou um ensaio fotográfico com alguns dos participantes como produziu uma espécie de colagem sonora.
“Imprimi todos os testemunhos que me mandaram por e-mail e grifei as palavras-chaves de cada um deles”, contou. Depois, elaborou uma lista em que tais vocábulos apareciam tantas vezes quantas surgiram nos depoimentos, formando sequências do tipo: “vazio vazio vazios encontro encontros Tinder Tinder Tinder transo transamos transar transava transaríamos tesão sauna sauna sauna.” A lista totalizava 190 palavras, repetidas ou não. “Assim que finalizei o inventário, pedi para os participantes gravarem áudios no WhatsApp em que liam a relação inteira.” Marques, então, misturou as gravações e teceu a instigante colagem sonora de 3 minutos e 44 segundos.
Foi só quando a extraterrestre praiana baixou no meu Instagram que descobri onde minha amiga a retratara. “Ipanema? Errado, mano!”, me corrigiu a artista em setembro de 2020, tão logo lhe falei da inusitada aparição. “Eu passava férias na Ilha de Boipeba. Sul da Bahia, conhece? Ali tem um lugarejo paradisíaco, Moreré, que abriga uma vila de pescadores e um monte de piscinas naturais. No primeiro dia de 2017, enquanto pegava sol por aquelas bandas, avistei a tal figura. Era de manhã. A praia estava calma, quase vazia. A mulher se movimentava devagarzinho e calada. Parecia dançar, com uns gestos bem fluidos, bem suaves. Fiquei deslumbrada, mas tive receio de fazer perguntas, mesmo porque não sabia se o capacete a deixava ouvir direito. Apenas cheguei perto e tirei a foto (costumo levar minha câmera para todo lado). Em seguida, saí fora com a sensação de ter presenciado um instante mágico. Tão mágico quanto o fato de a mulher pintar agora no teu Instagram. Que maluquice…”
“Nem de Moreré, nem de Ipanema. A E.T. é da minha terra, Minas Gerais!”, me garantiu outra amiga, Georgia Barcellos, sem atinar para o absurdo que dizia: como uma extraterrestre poderia ser da terra de um terráqueo? A criatura espacial havia publicado no Instagram um comentário sobre si própria e a quarentena que acabou se tornando revelador: “Saudade de fazer teatro, né, minha filha? Nó…” Mal tomou conhecimento da aparição que me inquietava, Barcellos correu para vasculhar a rede social da E.T. e logo pescou o termo “nó”. “Mineira, com certeza!”, exultou, julgando-se uma Sherlock Holmes do Cerrado (“Xerloquirromis”).
Em mineirês castiço, “nó” é uma interjeição de pena ou espanto, talvez derivada de “Nossa Senhora!”. Importante não a confundir com “nu!”, que expressa os mesmos sentimentos, mas num grau bem mais elevado. “Rapaz! Desconfio que você encontrou a E.T. de Varginha…”, concluiu a detetive brejeira.

Como a Xerloquirromis deduzira, Andressa Furletti – eis o nome da esfinge – nasceu realmente em Minas. Filha de uma comerciante e um administrador de empresas, tem origem italiana, portuguesa, negra e indígena. “Uma mistureba das mais brasileiras”, resumiu por telefone, em nossa primeira conversa. A ascendência multirracial lhe confere traços francamente híbridos, de tal modo que a pele muito alva contrasta com os olhos bem pretos. Já os cabelos castanhos, que beiram a cintura, hesitam entre o liso e o cacheado. Magra, “mas não magricela”, a belo-horizontina de 42 anos gosta de ressaltar que mede 1,58 metro “e meio”. “Ai de você se me tirar o meio centímetro!”, zombou. Em 2002, trocou BH pelo Rio, onde morou até 2007. Logo depois, se mudou para Nova York e vive lá ainda hoje. Compartilha um apartamento no distrito do Brooklyn com o marido, biólogo especializado em imunologia, e a cadela Shanti Lee, uma border collie simpaticíssima.
Quando a alienígena invadiu meu Instagram, pedindo para me seguir, não aceitei de cara a solicitação. Antes, relatei o “causo” às minhas duas amigas, e ambas sugeriram o mesmo: “Entre em contato com a E.T. a-go-ra!” Foi o que fiz. Às 12h19 do dia 18 de setembro de 2020, lhe enviei uma breve mensagem, em que narrava o acontecido. Às 17h52, Furletti me retornou: “Gente! Que história! Fico feliz que minha imagem esteja te acompanhando!” Sem rodeios, perguntei: “Como você me descobriu? E por que pediu para me seguir?” A resposta: “Juro que não sei! Provavelmente, você publicou alguma coisa que apareceu no meu feed e me agradou. O quê? Não vou lembrar de jeito nenhum! Vejo zilhões de postagens nas redes…”
Desde então, tivemos duas longas conversas telefônicas e várias interações pelo WhatsApp. Em todas as circunstâncias, minha interlocutora passou a impressão de ser um tanto reservada e tímida. Ela escapulia de questões que considerava invasivas e, às vezes, se tornava monossilábica, como uma criança vacilante, de quem o gato comeu a língua. Em compensação, também se revelava muito pragmática e obstinada. “Sou taurina: se não materializo os meus planos, me irrito profundamente. Uns chamam isso de persistência. Outros, de teimosia…”

Na infância, Andressa Furletti adorava reunir as amigas para encenar séries fictícias de tevê em que cavalinhos de plástico representavam os personagens. “Há garotas que brincam com a Barbie. Eu brincava com cavalinhos.” A diversão recorrente evidenciava duas particularidades que acabaram por nortear o futuro da menina: a predileção pelos bichos e pela arte.
Gostar de animais contribuiu para que Furletti praticasse equitação durante a adolescência e estudasse biologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde se formou em 2001. “Enquanto me graduava, trabalhei num laboratório de ornitologia. Depois, me dediquei à genética do câncer e, um pouco mais tarde, aos transgênicos.”
Já o apreço por toda espécie de manifestação artística fez com que Furletti adquirisse noções de balé e flauta, além de empurrá-la progressivamente para o ofício de atriz. Em Belo Horizonte e no Rio, ela frequentou inúmeros cursos de atuação, que lhe possibilitaram arriscar os primeiros passos teatrais.
“Tentei me equilibrar entre a biologia e as artes cênicas”, relembrou. “Mas, com o tempo, percebi que não conseguiria e abandonei a carreira científica.” No afã de se estabelecer como atriz, encarou de tudo: longas e curtas-metragens, comerciais, peças, esquetes e figurações em programas de humor. À medida que se aventurava diante dos holofotes, tratou de concluir outra faculdade, a de cinema, e virou também editora de imagens.
Deixou o país quando o marido recebeu uma proposta para cursar o pós-doutorado em Manhattan. “Pretendíamos ficar apenas um ano e já estamos há treze…” Assim que chegou a Nova York, a atriz ingressou no Stella Adler Studio of Acting, escola de interpretação que surgiu em 1949 e teve alunos tão talentosos quanto Marlon Brando, Robert de Niro, Warren Beatty e Candice Bergen.
O prestigioso conservatório abriu algumas portas para Furletti na cidade, o que lhe permitiu construir um reduzido, mas sólido, círculo profissional. Desde 2011, a mineira dirige a Group .BR, companhia que fundou com o carioca Thiago Felix e a curitibana Debora Balardini. A trupe se encarrega de disseminar a cultura brasileira por meio de espetáculos que misturam não somente o português e o inglês como também as artes visuais, o teatro de vanguarda, a música e a dança. Entre as montagens do grupo, destacam-se A Serpente, de Nelson Rodrigues, Infinite While It Lasts, sobre Vinicius de Moraes, e Inside the Wild Heart, baseada na trajetória de Clarice Lispector.

Em junho de 2014, um colega da atriz a convidou para participar do Northside Festival. O evento costuma ocorrer durante o verão no Brooklyn. Com o intuito de celebrar “a inovação e a arte”, agrega músicos, DJs, performers, jornalistas, designers, publicitários e donos de startups, que protagonizam shows, intervenções, palestras ou workshops. “Você não tem nenhum projeto dando sopa, Andressa?”, interpelou o colega, que planejava recitar uma série de poemas na mostra. Um deles sempre chamou a atenção de Furletti e dizia algo como “quando te olho, me vejo”. “Tenho, sim”, respondeu a artista, lembrando-se de uma ideia que acalentava havia tempos e que, de certa maneira, dialogava com aquele verso. Era a performance #TakeASelfieOnMe (Faça uma selfie em mim).
“Desde que os celulares adquiriram câmeras de fácil manuseio, todo mundo se rendeu à mania do autorretrato. Fulano visita o Louvre, por exemplo, e só dispõe de quinze segundos para observar a Mona Lisa. Em vez de admirar o quadro, o sujeito gasta os quinze segundos tirando uma foto diante da pintura. Não é esquisito? Como a febre das selfies me intriga demais, cogitei desenvolver um trabalho que abordasse o fenômeno de um jeito bem lúdico”, me explicou a atriz por telefone. Ela já havia esboçado parte do projeto, mas nunca arranjava uma brecha para concretizá-lo. A proposta do colega lhe deu o empurrão que faltava.
Na performance, Furletti usaria um traje exuberante que, quando fotografado, refletiria quem o estivesse fotografando. O fotógrafo experimentaria, assim, o prazer simultâneo de retratar o outro e se retratar, como se o egocentrismo da selfie pudesse redundar em altruísmo.
A própria artista desenhou e produziu cada peça da roupa. Uma saia de paetê, tão longa que quase varre o chão. Um par de luvas muito compridas, que se avizinham dos ombros. Um bustiê confeccionado com três semiesferas de plástico, ocas e rígidas – as maiores cobrem os seios enquanto a terceira, menor, repousa sobre o abdome. Um capacete também constituído de duas semiesferas plásticas, que se unem por parafusos. O figurino inteiro alterna diversos tons de prateado. As luvas e as cinco semiesferas  têm as superfícies espelhadas.
“Não pensei em orixás, extraterrestres ou passistas quando criei o traje”, prosseguiu a atriz. “Eu desejava apenas me transformar num espelho itinerante e pouco óbvio.” Furletti comprou toda a matéria-prima da roupa em lojas baratas de Nova York. “No total, gastei uns 100 dólares, ou até menos.”
A performance dura, em média, duas horas. “Procuro me movimentar lentamente e de modo improvisado. Mantenho os braços sempre abertos, o que é um tanto doloroso, e nunca paro de me mexer.” Às vezes, caminha. Outras vezes, deixa de andar, mas oscila o pescoço, as mãos ou o tronco. Jamais emite sons e conserva o silêncio mesmo se alguém puxa conversa. Sob o capacete, ouve tudo perfeitamente, ainda que só enxergue vultos.
Depois da estreia no Brooklyn, a artista já se apresentou em mais dez lugares: Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Ouro Preto, Moreré, Paris, Berlim, Reykjavík, Miami e o deserto de Black Rock, no estado norte-americano de Nevada, onde acontece o Burning Man, uma badalada celebração contracultural. “O figurino é bem fácil de transportar. Por isso, gosto de levá-lo em minhas viagens de trabalho e lazer. Não preciso de festivais ou algo do gênero para realizar a performance. Se me dá vontade, saio na rua e faço.” #TakeASelfieOnMe, aliás, não tem nenhuma relação com a trupe de Furletti.
Em geral, o público corresponde às expectativas da atriz e a fotografa avidamente. “É a mulher do futuro!”, presumem alguns. “Outros me comparam com uma E.T., lógico, ou com Iemanjá, principalmente se estou perto do mar.” Certa vez, nos Estados Unidos, um homem se aproximou da performer e indagou: “Lady Gaga, é você?! Não acredito! Que máximo!”

Embora não professe nenhuma religião, a artista diz ter “fé no mistério”. “Longe de mim bancar a cética absoluta! Creio no ‘pode ser’. Deus existe? Pode ser. Os mortos reencarnam? Pode ser.” Ela não ousa explicar de maneira assertiva por que a gente se cruzou – e justo num momento em que a quarentena nos impunha tantos desencontros. “Destino? Pura coincidência? Vai saber… Minha predisposição é atribuir nosso encontro às escolhas. Eu escolhi criar a performance e mostrá-la em Moreré. Sua amiga escolheu viajar para lá e me fotografar. Você escolheu ir à feira Tijuana e comprar a foto. Nós dois escolhemos baixar o Instagram etc. etc. etc. Rolou uma convergência de escolhas, percebe? No fundo, tudo aconteceu por causa das opções que fizemos ao longo do tempo. Agora, será que tomamos aquelas decisões livremente? Ou será que nossas escolhas já estavam predestinadas?”
Em vez de buscar respostas com os astros, decidi consultar Virgílio Augusto Fernandes Almeida, professor emérito do Departamento de Ciência da Computação na UFMG. Contei-lhe a história detalhadamente e questionei:
– Por que o Instagram indicou o meu perfil para a performer se nenhuma das 257 pessoas que me seguiam a acompanhava e se nenhum dos 1 735 seguidores dela me acompanhava?
– Boa pergunta… Vou estudar o caso – respondeu.
Semanas depois, o professor me telefonou. Ele analisara o episódio com a ajuda de um aluno, o doutorando Gabriel Magno. “É complicado desvendar exatamente o que se passou.”, admitiu. “A gente não conhece todos os códigos que regem o funcionamento do Instagram, né? Mesmo assim, dá para levantar umas hipóteses.”
A mais provável: “Você e Andressa não possuíam seguidores em comum, mas seguiam 46 contas idênticas. A do petista Fernando Haddad, por exemplo. Ou a do projeto Quebrando o Tabu. Suponha que, um dia, você tenha aprovado com o ícone do coraçãozinho alguma postagem do Haddad, e a Andressa também. Suponha ainda que, noutra ocasião, você e a Andressa aplaudiram virtualmente uma publicação específica do Quebrando o Tabu. Pronto, o aplicativo já ficou de orelha em pé: ‘Opa! Eles são parecidos! Interagem com os mesmos posts! Vale a pena sugerir o perfil do cara para a Andressa.’”
Trocando em miúdos: o Instagram, ardiloso, tramou toda a “coincidência”. “Pode-se dizer que sim”, concordou o professor. “Não há acaso nem destino quando as redes sociais entram na jogada.”
(revista piauí)

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Na pele do lobo

Um trumpista resiste a se despedir de Trump
Em setembro de 2018, pouco antes das eleições presidenciais no Brasil, Donald Trump ligou de Washington para Jair Bolsonaro. O então candidato do PSL convalescia de uma operação intestinal depois de levar a facada que quase o matou. “Olá, Trump! Que grande satisfação! I speak English porra nenhuma, but I will try my best aqui, tá o.k.?”, explicou o capitão reformado assim que atendeu o celular. Com um impecável terno azul-escuro, gravata vermelha e uma bandeirinha dos Estados Unidos cravada na lapela, o norte-americano logo cumprimentou o interlocutor pela pronta recuperação da cirurgia. “Você é um tough cookie”, elogiou, pretendendo dizer algo como “um osso duro de roer”. Embora falassem em línguas diferentes e sem tradutores, os dois se entendiam à perfeição. De cara, o político nova-iorquino sugeriu tratar o colega por um apelido “curto e doce”: JB. Esclareceu que aquelas iniciais combinavam bem com as dele próprio. “DT and JB”, enunciou, como se lançasse uma grife – “di ti” e “djei bi”. “Vamos ser parceiros na missão de fazer as Américas great again”, acrescentou.
O mandatário mais poderoso do mundo contou que destacara um agente da CIA para monitorar a situação em Outside Judge, ou Juiz de Fora, a cidade mineira onde Bolsonaro sofrera o atentado. Trump salientou, ainda, que confiava na vitória eleitoral de JB, apesar dos golpes baixos que o Datafolha, o Ibope, a “Globo Fake News” e até a Madonna desferiam contra o presidenciável. “Aproveite muito a posse em Buenos Aires”, recomendou, quando se despediu. Depois de agradecê-lo, o candidato de extrema direita arriscou um pedido: “Libera meu visto aí, porque marcar entrevista hoje em dia no consulado americano está mais difícil do que limpar a bunda com papel picado.”
O telefonema, of course, nunca aconteceu. Ou melhor: aconteceu, sim, mas no YouTube. O vídeo de onze minutos que exibe a tresloucada conversa já beira 1 milhão de visualizações. O carioca André Marinho, de 26 anos, o protagoniza. Ele não apenas criou o diálogo como se encarregou de interpretar DT e JB. Interpretar é pouco. O jovem praticamente se transformou na dupla. Não bastasse incorporar Bolsonaro com humor e precisão, mostrou-se ainda mais talentoso sob a pele de Trump. Conseguiu satirizar o fanfarrão republicano sem colocar peruca loira nem pintar o rosto de laranja e só se expressando no idioma do personagem.
Quando o vídeo chegou à internet, em outubro de 2018, o país já contava com bons imitadores do ex-capitão. No entanto, raríssimos humoristas brasileiros, ou talvez nenhum, arriscavam emular o big boss dos Estados Unidos. Até então desconhecido no universo da comédia, Marinho decidiu segurar a batata quente e logo se destacou. A façanha, primeiro, turbinou as redes sociais do novato, que atualmente totalizam 460 mil seguidores. Depois, lhe rendeu convites para dar entrevistas tanto online quanto no rádio e na televisão. Em todas, o rapaz esbanjou versatilidade. Revelou-se capaz de imitar desde figurões da política nacional – Ciro Gomes, João Doria, Henrique Meirelles, Sergio Moro, Marcelo Crivella – até o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, e atores gringos, como Leonardo DiCaprio. Há um ano e quatro meses, acabou se tornando integrante do Pânico, o longevo e escrachado programa da Jovem Pan FM. Em razão do emprego, abandonou a incipiente carreira de executivo e trocou o Rio de Janeiro por São Paulo, onde vive com uma irmã, a cantora Giulia Be.
Agora, às vésperas de o democrata Joe Biden assumir a Casa Branca, o artista volta e meia ouve perguntas do gênero: “Você estava torcendo para o Trump ganhar, certo? Não queria perder a imitação…” Errado. Marinho, de fato, torcia para Trump, só que por motivos puramente ideológicos. “Brinco que já nasci de terno. Sou um liberal conservador.”

De origem abastada, o moço não tem nenhum parentesco com os proprietários da Globo. Mesmo assim, costuma zombar que pertence à “parte mais rica da família deles”. É filho de Paulo Marinho, empresário que dirige o PSDB fluminense desde 2019 e que articulou a campanha de Bolsonaro à Presidência (depois das eleições, os dois romperam). Do pai, o rapaz diz que herdou o traquejo social. Da mãe, uma designer de interiores, pegou o gosto pelo inglês. Aprendeu o idioma com ela, ainda menino, e o aprimorou em colégios bilíngues. Entre 2014 e 2015, estudou ciências políticas na Universidade de Nova York. Hoje cursa o último semestre de direito, mas não planeja exercer a profissão. “Encaro o diploma como uma apólice de seguro. Vai que minha trajetória de comunicador não resulte tão exitosa quanto imagino…” Ele rejeita com veemência o mero rótulo de imitador ou humorista. “Me chame de comunicador, por gentileza. As imitações e o humor são apenas algumas das ferramentas que utilizo para me comunicar em larga escala.”
Apesar da pouca idade, fala de um jeito bem emplumado, que lembra o do senador Fernando Collor. Não à toa, vai registrando no iPhone palavras e expressões inusuais que garimpa em inglês ou português e que, um dia, cogita empregar. O glossário já soma 2 920 vocábulos. Para domar os fartos cabelos negros, usa gel “à maneira de Mitt Romney”, o republicano que Barack Obama derrotou na corrida presidencial de 2012. Quando se veste, segue “a galhardia” de Frank Sinatra, Paul Newman, Dean Martin e “todos aqueles machos alfa do passado”, o que lhe confere um visual indubitavelmente coxinha.
Por ironia, a primeira personalidade que Marinho imitou nunca rezou na cartilha dos liberais conservadores. Foi Luiz Inácio Lula da Silva. “Eu tinha somente 8 anos e vi um discurso dele na tevê.” Desde então, não deixou mais de se metamorfosear, a ponto de hoje dominar um repertório com quase cem imitações. Em paralelo, se converteu num aficionado pela retórica dos políticos, sobretudo a de Ronald Reagan, “um grande ídolo, referência máxima”. “Há pessoas que recorrem à internet para buscar videoclipes, trechos de filmes ou cenas de surf. Eu procuro comícios.” Ele jura que escutou (e analisou) 90% dos pronunciamentos de Trump enquanto tentava macaqueá-lo. Durante o processo de aprendizado, também assistiu às caricaturas geniais que os atores Darrell Hammond e John Di Domenico fazem do presidente. “Não creio que nenhum de nós vá parar de imitá-lo, não. Mesmo com a derrocada nas urnas, o Trump continuará relevante. O cara é um tipo inescapável. Gerou animosidades, mas governou como um republicano de fibra. Cortou impostos, desregulamentou a economia, criou empregos e defendeu valores patrióticos. Muita gente jamais se esquecerá disso.”
(revista piauí)

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Joia rara

Otto Lara Resende agora brilha como cantor

A dengue hemorrágica chegou sorrateiramente e, em poucos dias, levou o garoto de olhos amendoados à uti. Ele mal completara 5 anos quando a doença o castigou com diarreias incessantes, vômitos caudalosos e um febrão obstinado. Duas transfusões de sangue não bastaram para reanimá-lo. À beira da cama em que o filho agonizava, o dramaturgo Bruno Lara Resende lhe acariciou as mãos e se desmanchou numa declaração de amor. A criança o escutou por uns segundos, mas logo se aborreceu. “Mahler, papai, Mahler!”, suplicou baixinho. O pai entendeu de imediato o pedido. O menino desejava ouvir a Sinfonia Nº 1, de Gustav Mahler. “Era como se me dissesse: ‘Deixe de choramingo, cara! Eu quero energia!” Sem hesitar, o pai entoou um trecho da composição enquanto imitava os gestos exaltados de um maestro.
O moribundo felizmente sobreviveu e hoje não só continua fissurado por peças eruditas como se delicia com um vasto repertório popular. Neto mais jovem do escritor mineiro Otto Lara Resende, de quem herdou nome e sobrenome, o garoto festejou 13 anos em maio e, há seis meses, vem colecionando admiradores no Instagram justamente por causa do apreço pela música. Toda semana, a rede social abriga um novo vídeo do rapazinho. São produções caseiras, sem cortes ou efeitos especiais, em que o pré-adolescente canta sambas, baiões, serestas, choros e sucessos da mpb, sempre a cappella.
Ele costuma gravar as cenas no jardim do sobrado onde mora com os pais e dois gatos vira-latas. Trajando roupas informais, se acomoda sobre um banco de madeira e, diante de uma câmera que nunca se move, solta a voz. Quase não gesticula durante as apresentações. Às vezes, batuca nas pernas para marcar o ritmo ou espicha os braços para enfatizar um verso. Enuncia as letras das canções com extrema clareza e frequentemente alonga os erres das palavras: rrresta, brilharrr, melhorrr, forrrnalha. Quando termina o solo, assume um tom professoral e dá algumas explicações: “A música que acabei de cantarrr, Juízo Final, é de Nelson Cavaquinho. Eu amo a interrrpretação da guerrrreira Clara Nunes. Salve, Nelson Cavaquinho! Salve, Clara Nunes! E viva o samba brasileiro!” Carioca, torcedor do Botafogo e portelense, o cantor tem síndrome de Down.

Otto Iantas de Lara Resende demorou muito para caminhar e falar. Em compensação, antes dos 2 anos, já se revelava capaz de identificar composições eruditas. “Ele adorava uns dvds infantis com músicas clássicas que ganhou logo depois de nascer. Assistia à coleção sem parar, absolutamente hipnotizado. Um dia, ouviu Für Elise, do Beethoven, num aplicativo do iPad. Para minha surpresa, largou o tablet, engatinhou até a pilha de dvds e examinou um por um. De repente, sem nenhuma ajuda, localizou o que trazia Für Elise e o separou”, recorda a atriz Raquel Iantas, mãe do menino.
Um pouco mais tarde, o garoto descobriu os regentes. Gostava de vídeos em que Leonard Bernstein, Herbert von Karajan, Claudio Abbado ou Gustavo Dudamel comandavam as principais orquestras do mundo. A criança observava os maestros com tanta atenção que aprendeu a distinguir um do outro. “Suponha que a gente botasse para tocar a Nona Sinfonia de Beethoven, sob a regência do Bernstein”, prossegue a atriz. “Otto arranjava um jeito de nos avisar que preferia ouvir a mesma sinfonia conduzida pelo Karajan.”
Quando se alfabetizou, com 7 anos, o menino compreendeu a engrenagem das canções populares. Perceber que a música poderia se associar às letras para criar um universo tão reluzente quanto o erudito lhe soou como uma iluminação. De início, se encantou por Adriana Partimpim e pelo grupo Palavra Cantada. Em seguida, vieram os Beatles, Frank Sinatra, Elvis Presley, Noel Rosa, Cartola, Paulinho da Viola, Luiz Gonzaga, Tom Jobim, Chico Buarque… Ora os pais mostravam os artistas, ora o próprio garoto os caçava na internet. O pesquisador mirim desenvolveu, então, a habilidade de memorizar não apenas as canções como os nomes de seus intérpretes, autores e instrumentistas.
Em 2015, ele andava enfeitiçado por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Na ocasião, os baianos comemoravam cinco décadas de carreira com uma turnê que passaria pelo Rio de Janeiro, onde o menino vive. A família resolveu levá-lo, mas só atentou que a casa de espetáculos vetava a entrada de crianças depois de comprar os ingressos.
Às vésperas do show, Bruno Lara Resende – que já exerceu a advocacia – redigiu uma carta questionando a proibição. Argumentou não existir nada na lei brasileira que justificasse impedir qualquer menor de ver uma exibição como aquela em companhia dos pais. O assunto chegou à imprensa, e um juiz autorizou o comparecimento do menino. Foi assim que o pequeno fã acabou visitando os camarins dos ídolos. Desde então, Caetano o convida para os concertos que faz na cidade.

No finzinho de março, o garoto se sentia desanimado, uma vez que a pandemia do novo coronavírus o privava de frequentar a escola, as aulas particulares de canto e percussão, as rodas de samba ou chorinho e a temporada carioca de shows. Para estimular o filho, Raquel Iantas lhe sugeriu cantarolar algo. Com um boné de adulto e sem camisa, o pré-adolescente – que só tem uma irmã, bem mais velha – atacou de Carinhoso enquanto tomava sol.
A atriz registrou a brincadeira doméstica, publicou a cena no Instagram dela mesma e recebeu 411 comentários elogiosos. Uma semana depois, o garoto protagonizou outro vídeo, agora interpretando Desde que o Samba É Samba, de Caetano. O compositor se emocionou com a homenagem e a compartilhou. A partir daí, as gravações do menino pelo celular da mãe se tornaram rotineiras e a fama dele cresceu. Hoje, o perfil da atriz ultrapassa os 7,9 mil seguidores. Em março, somava 2,8 mil.
Odara, claro!”, respondeu o rapazinho quando lhe perguntei qual a canção de que mais gosta. Não precisei indagar o motivo. Assim que o jovem cantor deu uma palinha da música, concluí que a própria letra de Caetano se encarregava de esclarecer: Deixa eu cantar/Que é pro mundo ficar odara/Pra ficar tudo joia rara/ Qualquer coisa que se sonhara/Canto e danço que dará.
(revista piauí)

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Muita coisa!

A pandemia e a saúde mental nas favelas

E
la se chama Preta. Tem os cabelos bem crespos, olhos arregalados e lábios tão vermelhos que parecem sangrar. Usa bermuda com desenhos psicodélicos, camisa de mangas curtas e uma gravata-borboleta azul, que lhe confere um ar mais burlesco do que solene. É uma boneca de pano e a principal companhia de Diene Carvalho Silva desde que o novo coronavírus pôs o Brasil em distanciamento social. Na segunda quinzena de março, a fotógrafa e produtora cultural de 32 anos decidiu atender os conselhos das autoridades sanitárias e se isolou. Por sofrer de asma e de “tudo com ite” (“sinusite, rinite…”), temia não resistir caso pegasse a Covid-19. Como acabara de entregar o imóvel onde morava de aluguel, pediu guarida para um conhecido.
Ao longo de um mês e pouco, a jovem e o anfitrião dividiram uma quitinete sem janelas na Favela do Guarda, em Del Castilho, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Depois, a moça se mudou para os fundos de uma ONG, a Mulheres de Peito e Cor, que auxilia pacientes com câncer de mama, sobretudo negras. Jacqueline Faria, coordenadora da instituição e uma amiga recente, lhe permitiu ficar ali, de graça. Localizada no Engenho Novo, outro bairro da Zona Norte carioca, a Mulheres de Peito e Cor parou de funcionar na fase mais rigorosa da quarentena. Assim, a hóspede pôde ocupar sozinha a edícula da ONG. Com sala, dois quartos, cozinha e banheiro, a casa não dispunha de televisão, e o wi-fi que a servia oscilava bastante.
Entre o fim de abril e o princípio de julho, a fotógrafa só deixava o modesto refúgio para compras básicas. Passava as horas lendo, ouvindo música, praticando ioga, cuidando das refeições e interagindo nas mídias sociais, quando o sinal da internet colaborava. Não raro, conversava com Preta. A jovem ganhara a bonequinha negra no começo de março e logo resolveu tratá-la pelo apelido que ela própria carrega desde a infância. “Sempre me reconheci mais como Preta do que como Diene”, contou numa das dezenas de ocasiões em que falou com a piauí por celular ou WhatsApp. “Tu, inclusive, pode me chamar de Preta. Vou gostar.”
Toda vez que se preparava para dormir, Preta, a fotógrafa, aconchegava Preta, a boneca, no leito. As duas compartilhavam o travesseiro e o cobertor. Frequentemente, de madrugada, Preta acordava e verificava se Preta continuava por perto. Vai que a boneca tivesse despencado da cama… Preta também criou o hábito de desabafar com a parceira e de lhe relatar tudo o que fizera durante o dia. “Soa um tanto bobo, mas a presença dela me tranquilizava. Eu não queria sobrecarregar os outros quando a barra pesava, entende? Melhor choramingar com a Preta do que perturbar alguém pelo telefone.” De certa maneira, a boneca desempenhou para a moça o mesmo papel que a bola de vôlei teve para o personagem de Tom Hanks no filme Náufrago.
Enquanto vivenciava o isolamento, a fotógrafa amargou períodos de agonia, desânimo e hesitação, mas nada que não conseguisse tourear. Em geral, dormia bem, acordava disposta e conservava o otimismo. Mesmo a falta de dinheiro não a desesperava. “Fiquei praticamente sem trabalho e quase não tinha poupança. Em compensação, gastava pouquíssimo. O mínimo me bastava e confortava.” Foi tudo muito diferente de outra quarentena, bem mais penosa, que se deu há quatro anos e acabou semeando na jovem o desejo de organizar agora uma rede digital de assistência psicológica, o Cada Trauma Importa.

Naquela aterradora noite de 2016, Preta caminhava pela Presidente Vargas, célebre avenida que liga a Zona Norte à região central do Rio. “Não me recordo do mês exato. Julho? Talvez agosto? Desculpe… Esqueci boa parte do que rolou na época. De vez em quando, ainda me esforço para lembrar os detalhes, mas…” Ela passara a tarde na farmácia de Copacabana onde gerenciava o setor de entregas. Mal terminou o expediente, pegou o ônibus e se dirigiu para a faculdade em que cursava engenharia de petróleo. Estava no último dos dez semestres.
“O campus fica em frente à avenida. Depois que saltei da condução, andei até a faixa de pedestres e, enquanto cruzava a Presidente Vargas, travei. Sem qualquer motivo aparente, não conseguia mais me mexer, e caí num choro incontrolável. Meu coração disparou, minha cabeça entrou em parafuso, e um medo imenso de morrer tomou conta de mim. Uma colega que me acompanhava percebeu a situação e me tirou dali antes que o sinal abrisse.”
Nenhum pensamento sombrio ou episódio desagradável importunara Preta naquele dia até o congelamento repentino. Ela tampouco se considerava uma pessoa especialmente melancólica, angustiada ou medrosa. Pelo contrário: volta e meia, pontuava as frases com um gargalhar tão simpático que diversos amigos a chamavam de Sorriso. A risada solta, aliás, a caracteriza ainda hoje, assim como os penteados afro e a expressão “muita coisa”, que emprega quando deseja manifestar apreço por algo. Preta, curtiu o filme? “Sim, muita coisa!”
O costumeiro equilíbrio psíquico da estudante se harmonizava com o corpo vigoroso de quem lutava jiu-jítsu e muay thai, o boxe tailandês. Para manter o peso de 55 kg, bem distribuído em 1,63 metro de altura, a moça também adotava uma dieta balanceada e, embora comesse de tudo, dificilmente se excedia no garfo.
Nascida em Cururupu, cidadezinha do litoral maranhense, Preta é filha de um pequeno comerciante com uma assistente social. Cresceu ali mesmo, rodeada de zelo e na companhia de três irmãos, todos homens. “Meus pais não nadavam em dinheiro, mas nunca nos deixaram passar necessidade. Diziam: ‘Vejam à vontade os desenhos animados de vocês, nem que a gente tenha de pagar 200 contos de energia elétrica.’ Bastante protetores, não permitiam que fôssemos sozinhos até a esquina ou que brincássemos diante de casa sem a presença deles. Valorizavam demais os nossos estudos.”
Preta, que só frequentava colégios públicos, acabou virando aluna exemplar. “Eu gostava principalmente das disciplinas de exatas.” Ao completar 17 anos, partiu de Cururupu para concluir o ensino médio em São Luís, onde morou com um tio. Depois, pensou em ingressar no Corpo de Bombeiros e começou a formação de oficial. Logo desistiu da ideia. Voltou à terra natal e prestou vestibular para licenciatura em física, curso oferecido pela Universidade Estadual do Maranhão na própria cidadezinha. Conquistou a vaga, fez quatro semestres e, novamente, mudou de planos. “Eu me sentia confusa. Era bem garota e não sabia direito que profissão seguir. Quando me decepcionei com a física, descobri a engenharia de petróleo e pirei: ‘Muita coisa! Vou arriscar.’” A opção lhe exigiria sair outra vez de Cururupu. “Resolvi me graduar por uma faculdade particular do Rio, que se destacava na área.” Arranjou um financiamento estudantil e, em 2011, chegou à capital fluminense. Tinha 22 anos.
De início, rachou apartamento com uma conterrânea em Laranjeiras, na abastada Zona Sul. Mais tarde, conheceu um atendente de livraria, se casou e migrou para o Irajá, bairro tradicional da Zona Norte. Na esperança de engordar o salário que a farmácia de Copacabana lhe pagava, montou uma loja virtual e passou a revender roupas femininas, que comprava dos fornecedores com desconto.
Tudo, portanto, parecia correr às mil maravilhas quando Preta estagnou em plena Avenida Presidente Vargas. “Não sei como consegui voltar para casa naquela noite, mas voltei. De manhã, continuava péssima. Um cansaço… Uma aflição… Um desejo permanente de chorar… Onde estava a Preta de sempre? Eu não tinha forças nem para erguer uma colher e levar comida à boca. Só queria me deitar em silêncio, de preferência no escuro. Perdi totalmente a noção do tempo. Meu marido, alarmado, perguntava: ‘Amor, o que te deixou assim?’ Ele repetia a pergunta sem parar e não ouvia resposta nenhuma.”

A misteriosa tempestade que fustigou Preta demorou um ano e meio para desaparecer por completo. Em certos momentos, amainava um pouco, mas logo recrudescia de novo. Enquanto enfrentava o vendaval, a moça peregrinou por consultórios psiquiátricos e psicológicos, recebeu o diagnóstico de síndrome do pânico e depressão, tomou remédios, emagreceu 15 kg, largou a faculdade, abdicou da loja virtual e do emprego, rompeu o casamento e tentou o suicídio quatro vezes. Não bastasse, afastou-se de quase todo o convívio social durante sete meses. “Me fechei dentro de casa, absolutamente solitária, e mergulhei em mim. Precisava me investigar para ver se achava uma resposta à pergunta do meu ex-marido: O que, afinal, havia me deixado tão frágil?”
Depois de sair do confinamento, Preta ainda necessitou de um tempo para se aprumar. Quando sentiu que a tormenta se dissipava, teve vontade de dividir com outros jovens os aprendizados da crise. “Pensei, sobretudo, no pessoal sem grana. Quantos estariam passando pelo que passei? Quantos saberiam pedir socorro? Quantos encontrariam alguém que os escutasse?” Ela criou, então, o Maktüb Experience. O projeto voluntário, que surgiu em 2018, leva oficinas de grafite, apresentações de rap e batalhas de MCs à garotada de quatro favelas da Zona Norte: Acari, Para-Pedro, Muquiço e Complexo do Chapadão. São atividades esporádicas e gratuitas, com poucos participantes, que terminam invariavelmente num bate-papo – ou melhor: numa terapia de grupo muito informal. Sentados em roda, os presentes relatam vivências dolorosas e trocam ideias sobre os próprios sentimentos. Preta não só conduz a conversa como relembra, de modo espirituoso, sem dramas, o seu calvário e as lições que extraiu dele.
Por causa do Maktüb, a moça tomou gosto pela arte e descobriu aptidões suficientes para desbravar outros campos de trabalho. Primeiro, tornou-se produtora cultural e começou a organizar eventos de hip-hop. Há um ano, se matriculou num curso de fotografia, o que lhe abriu a possibilidade de realizar ensaios visuais remunerados para ONGs.
Mal a pandemia alcançou o Rio, Preta interrompeu as ações do Maktüb e tentou encontrar um jeito de agir a distância. Foi assim que inaugurou um novo braço do projeto, justamente o Cada Trauma Importa. Com ajuda das redes sociais, buscou terapeutas que topassem atender de graça quem estivesse sofrendo na quarentena. Adolescentes, jovens adultos, cinquentões ou idosos, todos poderiam receber assistência. As sessões, sempre individuais, aconteceriam pelo Zoom, o aplicativo de videoconferências, entre uma e três vezes por semana. Iriam durar, no mínimo, quarenta minutos e, no máximo, noventa. Onze profissionais de diferentes linhas aceitaram o desafio.
A fotógrafa saiu, em seguida, à caça dos pacientes. “Cada Trauma Importa. Juntos somos mais fortes”, escreveu na abertura da mensagem que disparou em abril, pelo Facebook e WhatsApp, para moradores das quatro favelas onde o Maktüb atua e de algumas outras. Com uma linguagem simples, o anúncio explicava a iniciativa. Um mês depois, a moça contabilizou 170 interessados e encerrou as inscrições.

A FILHA DE OXUM
Por que resolvi procurar o Cada Trauma Importa? Porque meu marido estava me deixando tão maluca que precisei expulsá-lo de casa. Tomar uma atitude dessas nunca é fácil. Desestabiliza qualquer um. Se você tiver paciência, posso contar em detalhes o que aconteceu. Me chamo Ana Lúcia da Silva Macharethe e, apesar do sobrenome italiano, não sou católica, não. Sou dos terreiros, umbandista com a graça de Deus e dos orixás. Acredito demais em Oxum, que me protege desde criança. Mesmo assim, costumo acender velas para as almas na Igreja de Nossa Senhora das Dores. Vou toda segunda-feira, faça chuva ou faça sol. Quando a pandemia estourou, a igreja e o terreiro fecharam de repente. Me assustei. Se até os lugares sagrados paravam de funcionar, significava que a chapa estava realmente esquentando. Logo depois, perdi o emprego. Não me restou outra saída além de ficar quietinha no meu canto, em isolamento.
Eu trabalhava como faxineira para um homem que conserta joias. Ganhava 1,4 mil por mês. Era pouco, mas quebrava o galho. Agora não ganho nada. O patrão explicou que as joalherias já não mandavam nem um anel para o conserto. ‘Deu ruim, Ana. Não consigo mais te pagar’, me disse, na lata. Adiantava eu discutir?
Nasci perto do Rio, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e me mudei para o Morro do Turano ainda mocinha. É uma favela carioca da Zona Norte, onde vivo até hoje com uma filha e uma irmã. As duas têm problemas congênitos. Taiane, minha filha, sofre de miopatia nemalínica, uma doença neuromuscular que rouba as forças do corpo. Ela não se sustenta em pé e, por isso, usa cadeira de rodas. Minha irmã, Cristiane, também sofre de alguma coisa grave. Não sabe ler nem escrever, não anda direito e se atrapalha com as tarefas mais simples. Nunca descobrimos o motivo de tantas dificuldades. Por causa das duas, presto muita atenção para o coronavírus não entrar em casa. Que Oxum nos livre de uma delas enfrentar a Covid! Tremo só de imaginar. Quando vou à vendinha ou à farmácia, boto a máscara e tento não esbarrar em ninguém. Depois, tiro cada peça de roupa e corro para o banho. Lavo até os cabelos.
Enquanto morava com a gente, meu marido não tomava os mesmos cuidados. Ele se levantava cedo e passava álcool em gel nas mãos, no controle remoto da tevê, no celular, nas maçanetas. Tudo certinho. Às dez, saía para trabalhar na portaria de um clube e só voltava de noite. A questão é que dificilmente voltava sóbrio. O irresponsável se metia em algum desses bares que desrespeitavam a quarentena e bebia umas cervejas, umas pingas. Eu caía de pau: “Ô, Luís, quer encher a cara? Compra a porcaria do latão e bebe dentro de casa. Não dá para você se enfiar em boteco. É perigoso. Tem risco de contaminação. Não se ligou que até os terreiros e as igrejas fecharam?” Ele resmungava sei lá o quê e, no dia seguinte, fazia igual.
Uma noite, apareceu trocando as pernas, com uns pacotes embaixo do braço. Guardou as compras no armário da cozinha, sem limpar. Eu estava vendo o RJ2, aquele jornal da Globo, e reclamei: “Olha o corona, Luís! Precisa desinfetar.” O cara se enfureceu: “Chega de assistir à Globo, Ana! Você vai acabar no hospício. Os jornalistas da Globo exageram sobre a doença. Só pensam em derrubar o presidente.” Mal escutei aquilo, tive certeza de um negócio: o Luís votou no Jair Bolsonaro. Apertou o 17! Eu já desconfiava, mas o infeliz teimava em negar. Ele sabe que votar no Bolsonaro é o mesmo que me trair. “Votou ou não votou, Luís?”, perguntei, ainda em frente da televisão. Lembro que, no segundo turno das eleições, pus um vestido branco e colei o 13 bem perto do coração. O número do Fernando Haddad, né? Fui toda bonita para o clube onde voto e, no caminho, passou um carro com dois sujeitos, que berraram: “É Bolsonaro, tia!” Pra quê? Eu me virei rapidinho e lasquei: “Vai tomar no cu!” Sou cabeça aberta. Odeio o Bolsonaro. Homofóbico, racista, bajulador da ditadura… “Responde de uma vez, Luís!” Ele finalmente confessou: “Votei, sim. E daí?” Meu Pai do Céu! “Nós somos negros, Luís. Somos da favela. Como você pôde votar naquele doido?”
Sem titubear, apanhei um par de malas e levei para o traidor. “Terminou! Arruma tuas tralhas, coloca nas malas e chispa daqui. A gente não se identifica mais. Eu me cuido, você não se cuida. Eu tenho o pensamento avançado, você raciocina como o homem das cavernas.” Nós vivíamos juntos desde 2017, se não me engano. Foi o meu terceiro casamento e provavelmente o último. Três está de bom tamanho para quem já fez 51 anos. Taiane e Tamara, a minha caçula, que não mora comigo, nasceram de outras relações. Dois namoros que não vingaram, sabe como é?
Agora percebo o óbvio: as bebedeiras do Luís também provocaram a nossa separação. Ele gostava de álcool quando nos casamos, mas não tanto. Pelo menos, assim me parecia. Talvez eu não quisesse enxergar… A situação mudou a partir do momento em que o Luís desabou na sala e bateu a cabeça. Era tarde da noite. Logo pensei em infarto. Dei uns tapinhas no rosto dele, senti o hálito e me toquei: infarto nada! Bebida! Daí em diante, tudo só piorou. Ele não aceitava a ideia de se tratar.
Tive uma infância horrível justamente porque meu pai bebia demais. Éramos oito irmãos e, muitas vezes, nos faltava comida. Também faltava roupa, faltava sapato, faltava lápis para a escola. Você deve achar que meu pai vadiava, mas não: o coitado ralava de segunda a sexta. Pintava carros e ganhava bem. Só que torrava a maior parte do dinheiro com cachaça. Precisávamos arrastá-lo do bar à força. Ele resistia, se irritava e batia na minha mãe, nos filhos, em todo mundo. Uma ocasião, nós pegamos sarampo. Eu e duas irmãs. Minha mãe resolveu preparar uma canja para a gente e comprou a galinha. Meu pai cismou com o bicho: “Está podre! Ninguém aqui sabe comprar galinha.” Catou o frango e agrediu a minha mãe. Ela tomou uma surra de galinha… Sempre que me recordo daquele tempo, choro à beça. Imaginava que fosse passado, mas me enganei. Como pude crescer e, já madura, me casar com um alcoólatra? Como pude repetir a história da minha mãe? Não bastava o que pelejei quando menina?
Separação, mais o medo de alguém querido se infectar e morrer na fila do hospital, mais o desemprego, mais a grana curta. Vai somando… Eu tenho ou não tenho razões para procurar ajuda psicológica? Infelizmente, não consegui o auxílio emergencial do Bolsonaro. Então sobrevivemos apenas com o benefício de 1 045 reais que a Taiane recebe do governo por ser cadeirante. Gastávamos 900 de aluguel, mas a dona do imóvel topou baixar para 700. Continuamos pagando a internet normalmente. Já a tevê a cabo está de graça. Os garotos do tráfico, que distribuem o sinal na comunidade, decidiram não cobrar dos moradores sem trabalho e sem o auxílio do presidente.
Faço uma sessão de terapia por semana. É maravilhoso desabafar com a terapeuta. Ela me ensinou uns exercícios de relaxamento muito bons. Eu deito na cama ou no sofá, fecho os olhos, respiro devagarzinho e levo o meu pensamento lá para o mar, lá para a mata. Um prazer, viu? Por uma hora, me esqueço do Luís, do Bolsonaro, do coronavírus e dos hospitais sem vaga.

“Aqui não tem pau para urubu sentar.” A frase enigmática martelava na cabeça de Preta durante o período em que a jovem lutou contra a depressão e a síndrome do pânico. De onde vinha? A própria jovem afirmara aquilo ou escutara de alguém? Em quais circunstâncias? E o que a expressão significava de fato? Certo dia, a moça se lembrou: um parente de Cururupu costumava dizer a sentença. “Um parente bem próximo e de pele clara”, ressalta a fotógrafa, que faz parte de uma família multirracial. O ramo paterno descende de negros. O materno, de brancos. “Eu, ainda criança, perguntava à minha mãe por que o tal parente sempre batia naquela tecla. Ela se calava ou respondia com evasivas.” Sozinha, a menina acabou desvendando o mistério. “Urubus são negros, correto? Meu pai é negro. Portanto…” Tratava-se de uma declaração racista, talvez derivada do anedotário popular. “Com a frase, o parente branco pretendia avisar que não aceitava receber visitas de meu pai, o ‘urubu’, o negro.”
Ocorre que Preta se assemelha muito à família do lado paterno. “Sou tão negra quanto meu pai. Se o parente branco não gostava de ‘urubus’, então me rejeitava também.” Quando chegou à conclusão, a garota se revoltou, mas guardou o sentimento para si. “Nós não merecíamos tamanho desprezo. Ninguém merece…”, lamenta agora. “Meu pai é um batalhador. Na infância, perdeu a mãe e sofreu um acidente que o deixou manco. Como não pôde frequentar a escola, nunca se alfabetizou. Em compensação, aprendeu os cálculos básicos e se tornou um negociante de primeira. Superou tantos obstáculos para, depois de casado, aturar discriminação dos próprios familiares?”
Fora do círculo doméstico, e ainda no lugarejo natal, Preta se defrontou com manifestações mais abertamente racistas. Em geral, não reagia. “Você tem o nariz que o boi pisou”, zombavam uns. “Lá vai a menina do cabelo duro, a menina do cabelo seco, a menina com palha de aço no lugar do cabelo”, atiçavam outros. Havia também os que indagavam: “Você é mesmo filha de uma branca? Certeza de que não te encontraram na lixeira?”
Com os anos, inconscientemente, Preta criou uma estratégia para se desviar das humilhações ou suportá-las. Esmerou-se em distribuir simpatia, apagar da memória as experiências mais traumáticas e reprimir as dores do preconceito. Virou, assim, o protótipo da mulher alegre, inabalável e equilibrada. “Acreditei tanto naquela personagem que nem cogitava pedir colo quando algo me incomodava. Receava que, se pedisse, todo mundo desconfiaria: ‘Tu, a nossa fortaleza, querendo ajuda?’” Preta simplesmente passava por cima das contrariedades, sem digeri-las, e seguia adiante. Julgava esquecer o que, no fundo, jamais esquecia. Às vezes, até dava bandeira de que as coisas não corriam muito bem. Evitava ir de biquíni às praias do Rio ou se olhar no espelho, por exemplo. Considerava-se feia e sentia vergonha do corpo, apesar de não o admitir. Escondia-se de si mesma quase sem perceber.
O Rio, aliás, a amedrontava. Ela nunca havia conhecido uma cidade tão grande antes de desembarcar no Aeroporto Santos Dumont. Vivera em São Luís e passeara por Belém, mas nenhuma das duas capitais se comparava com a fluminense. “Os edifícios gigantes de Copacabana, as lojas chiques de Ipanema, os congestionamentos, a infinidade de favelas, o Cristo Redentor, os turistas estrangeiros, os bares lotados, tudo me assustava. O prédio mais alto de Cururupu tinha só três andares. Imagine…” Assim que pisou na metrópole, a jovem flagrou uma violenta discussão de trânsito. “Peguei um ônibus perto do Santos Dumont e, enquanto percorria o Centro, vi pela janela uma cena espantosa. Um fulano desceu do carro e, não sei por quê, socou o motorista de uma perua. Gelei: ‘Ave, Maria! Onde vim parar?’”
Hoje Preta supõe que o acúmulo de mágoas, raivas, tensões e complexos mal trabalhados desencadeou a paralisia na Avenida Presidente Vargas e a via-crúcis que a sucedeu. “Precisei implodir para finalmente encarar os meus fantasmas e me libertar.”

A fotógrafa morre de rir quando se lembra da primeira vez que enfrentou uma sessão de terapia. “Agora parece engraçado, mas me senti péssima na época. Ou melhor: me senti ridícula.” Logo depois de estancar na avenida, Preta consultou um psiquiatra, que a medicou e lhe recomendou tratamento psicológico. A moça aceitou o conselho e acabou diante de uma terapeuta que quase não abria a boca. “Ela perguntou o meu nome. Respondi. Ela sorriu e ficou quieta. Aguardei a pergunta seguinte. Ela continuou muda. Eu não tinha ideia de como funcionava uma sessão. Por isso, entrei na onda e me calei também. Às tantas, a mulher quebrou o gelo: ‘Você está legal?’ Eu não estava, claro, mas respondi no piloto automático: ‘Estou. E tu?’ Ela sorriu de novo, sem dizer uma palavra. Depois de uns quarenta minutos em silêncio, me pediu para voltar dentro de uma semana. Voltei, e rolou o mesmíssimo esquema. ‘Gente, terapia é sempre assim?’, pensei. ‘Vou passar um ano aqui e não vai acontecer nada?’”
Em vez de ir à terceira consulta, Preta resolveu buscar outro psicólogo. “Felizmente, descobri uma profissional bem diferente da anterior – luminosa, acolhedora e… negra!” Foi a partir daí que a fotógrafa conseguiu desvelar as aflições encobertas do passado e cuidar das feridas provocadas pelo racismo. “Uma terapeuta negra fez todo o sentido para mim. Muita coisa! Ela demonstrou absoluta empatia pelo meu sofrimento. Afinal, sabia por experiência própria qual o peso da negritude num país como o Brasil. Não estou afirmando que os psicólogos brancos sejam menos empáticos. Só acho que veem a questão sob uma ótica excessivamente abstrata. Nenhum deles vivenciou na carne a injustiça da discriminação racial.”
Enquanto procurava se reerguer, Preta contou ainda com a escuta generosa e surpreendente do “Seu Roberto”. Recém-separada do marido, a jovem morava na parte superior de um sobrado em Honório Gurgel, bairro da Zona Norte. Seu Roberto, o proprietário do imóvel, habitava a inferior. Era um aposentado de 60 e tantos anos, branco, que se compadeceu da inquilina deprimida. Todas as tardes, mesmo naqueles sete meses em que se isolou dentro de casa, a moça descia para conversar com o senhorio. “Falávamos sobre nossas vidas por uma ou duas horas. Ele ouvia as minhas queixas sem pressa e opinava delicadamente. Vira e mexe, recordava os perrengues que já teve. ‘Comi o pão que o Capeta amassou e sobrevivi. Tu vai superar a fase ruim também’, me encorajava. Jamais imaginei que o Seu Roberto, um cara hipersimples, pudesse ser tão sábio e afetuoso. Nossos papos me enchiam de esperança. Às vezes, o conforto está onde a gente menos espera, né?”
Como o turbilhão emocional impedia Preta de trabalhar, o senhorio a dispensou temporariamente do aluguel. Ela só retomou os pagamentos quando obteve o auxílio-doença concedido pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que lhe garantia um salário mínimo por mês.
Numa das vezes em que a jovem tentou o suicídio, Seu Roberto fez o papel de anjo da guarda. Encontrou a inquilina desacordada e a socorreu. “Não sei exatamente quem me salvou nas outras ocasiões.” Em três das quatro tentativas, a moça tomou doses cavalares de sonífero. Na última, ingeriu chumbinho, um raticida clandestino, mas bastante popular. “Sempre que reflito sobre a primeira tentativa, concluo que não desejava realmente morrer. Queria chamar a atenção, pedir ajuda, gritar para o mundo que a Mulher-Maravilha estava sofrendo.” Nas demais ocorrências, porém, Preta ansiava, sim, pela morte. Enxergava-se como “um barco sem âncora”, “um mar revolto” ou “uma carga de mil toneladas” que precisava se aliviar de si mesma.

A MÃE DO MICHAEL
Mães odeiam se separar dos filhos pequenos. Eu, pelo menos, detesto – principalmente em situações dramáticas. Calcule, então, o grau do meu tormento quando a pandemia chegou e me vi longe do Michael. No dia 13 de março, sexta-feira, mandei o garoto para a minha tia em Maricá, cidade bem próxima do Rio. Ele passaria o fim de semana por lá e logo retornaria. Só que, no dia 16, segunda, começou o zum-zum-zum sobre a Covid e achei mais seguro deixar o moleque onde estava. Dizem que a maioria das crianças infectadas fica assintomática, não é? O Michael tem 11 anos. Se pegasse o coronavírus enquanto voltava para casa, provavelmente não sentiria nada, mas poderia transmitir a doença.
Nós dois dividimos um quarto e sala no Salgueiro, o morro da Zona Norte carioca que ganhou fama por causa da escola de samba. Ocupamos o primeiro andar de uma construção com três pavimentos. Meu avô materno vive no segundo e minha mãe no último. Preferi não correr o risco de o Michael contaminar a família e paguei um preço alto: quase enlouqueci de saudade. A gente só se reencontrou em maio. Tomei coragem, segui todas as precauções e finalmente resgatei o menino. Não aguentava mais tanta distância.
Muitos me conhecem por Lil, mas meu nome é Lidiane Cristine dos Santos. Completei 30 anos em janeiro. Uma idade marcante… Quando engravidei do Michael, estava com 18. Eu namorava o pai dele e me descuidei. Namoro entre colegas de escola, sabe? Nada sério. O relacionamento terminou um pouco depois que descobri a gravidez. Por sorte, meu ex é um cara responsável e assumiu o filho. Eles convivem de boa.
O Michael, graças a Deus, nasceu com bastante saúde. A gente decidiu batizá-lo assim para homenagear o Michael Jackson e o Michael Jordan, aquele jogador de basquete. Admiro os dois há um tempão. Talvez inspirado pelo nome, o Michael – o meu Michael – se revelou uma criança incrível. Ele me estimula demais, me faz sonhar com tudo que ainda posso conquistar para orgulhá-lo. Uma vez me perguntaram: “Você seria pior sem teu garoto?” Respondi: “Não sei se pior, mas sei que não seria tão melhor.”
Em maio, logo que o Michael retornou para casa, aconteceu a tragédia com o João Pedro – o adolescente negro de 14 anos que levou um tiro de fuzil pelas costas enquanto brincava, lembra? Foi durante uma operação policial numa favela que também se chama Salgueiro. Fica pertinho do Rio, em São Gonçalo. Pensei muito na mãe do rapaz, uma professora. É sensacional gerar um filho preto, mas a gente nunca relaxa. Vai dormir preocupada e acorda ainda mais preocupada. Meninos negros estão sempre na mira. De repente, alguém cisma e acusa os moleques de erros que não cometeram. Às vezes, nem rola acusação. Atiram neles e pronto. Infelizmente, já tive de explicar a real para o Michael: “Você é preto, filho, e começou a andar sozinho na rua. Não pode vacilar. Escolhe direito tuas companhias. Não sai desarrumado e sem documento. Evita olhar fixo para os estranhos. Se entrar nas Lojas Americanas, não toca em nada. Se resolver comprar alguma besteira, pede a notinha e guarda.”
Quando o Michael festejou 10 anos, em novembro de 2018, acusei o golpe. De uma hora para outra, tomei consciência das perdas que a gravidez precoce me trouxe. Eu gostaria de estudar publicidade, por exemplo, mas até agora não deu pé. Só concluí o ensino médio à beira dos 25 anos, acredita? Me falta tempo para os livros porque preciso sustentar o garoto. Meu ex ganha pouco e contribui com apenas 150 reais por mês. Ele faz hambúrguer em casa, embala de um jeito maneiro e entrega os pedidos de bike.
Já fui atendente do McDonald’s e vendedora de roupas no Shopping Tijuca. Não curtia nenhum dos empregos. Mesmo assim, respirava fundo e metia as caras. Em 2014, consegui mudar de rumo e me tornei produtora artística. Trabalho com o pessoal do samba e do hip-hop. Não reclamo, não, mas por mim estaria morando em São Paulo. Lá as oportunidades na área musical tendem a ser maiores. Nem vale a pena comparar com o Rio. Eu também gostaria de descolar um teto melhor e, quem sabe, um companheiro bacana. Desde o nascimento do Michael, praticamente não cuidei da vida amorosa. A correria é tanta que, quando arranjo uma folga, só quero descansar.
Parece que todas as fichas caíram de uma vez no instante em que o moleque soprou as dez velas do bolo. “Caramba!”, me assustei. “O tempo voou e continuo igualzinha. Sem faculdade, sem casa bonita e sem deslanchar na carreira.” Bateu uma angústia, uma sensação de urgência, uma autocobrança terrível: “Se liga, mulher! Está esperando o quê para progredir?” Tamanha pressão acabou por me derrubar. Primeiro, tive umas pontadas no peito. Depois, uma febre esquisita, que aparecia quase diariamente. Fiz um punhado de exames e não deu nada. Era tudo emocional. A tristeza, então, desabou sobre mim. Mergulhei numa apatia imensa e perdi até a vontade de me levantar da cama. Um negócio bem absurdo, que não combinava comigo, porque sempre esbanjei disposição. “Bora, galera! Ninguém vai morrer!”, costumava gritar para os colegas toda vez que pintava uma dificuldade no trampo. Olha só a ironia… Eu, a mais ativa das ativas, agora desejava apenas uma coisa: morrer.
A depressão durou uns dez meses. Ficou tão grave que passei trinta dias à base de água, sem comer nem mesmo um biscoito. Meu apetite simplesmente desapareceu. Com esforço, depois de muita terapia e alguns remédios, saí do buraco. O tratamento inteiro rolou na rede pública. Nunca faturei o suficiente para usar o sistema privado. No finzinho de 2019, me senti plena de novo, e comecei 2020 imaginando que seria o ano da virada. Quanta ilusão…
O isolamento social, além de me afastar do Michael, detonou o ramo da música. De onde uma produtora artística vai tirar dinheiro se as rodas de samba e os shows de hip-hop sumiram? Quando iniciei a quarentena, estava com 1 mil reais na conta. Precisei apertar o cinto à beça até sacar, em junho, o auxílio emergencial do governo. Cancelei meu plano de internet e pedi para usar o wi-fi do vizinho. Transformei o celular pós-pago em pré-pago e reduzi as compras de supermercado. Um desespero! A grana miúda, as incertezas profissionais e a decepção com 2020 me roubavam o sono. Atravessei várias madrugadas em claro, explodindo de ansiedade. Se pregava os olhos, tinha pesadelos. Amigos ou parentes me telefonavam em sonho para contar: “Lil, peguei o corona.”
Nas primeiras semanas do confinamento, me entupi de notícias sobre o vírus. Recebia tantas informações ruins durante o dia que, uma hora, decidi pular fora daquele inferno e só ver o telejornal da noite. Também abandonei as mídias sociais por um tempo. Bye, bye, Facebook! Tchau, Instagram! Eu toda enrolada, e os meus conhecidos postando receitinhas de doce ou fotos de ginástica na laje?! Aquilo me irritava horrores. Bando de mentirosos… Jura que a pandemia ferrou somente a trouxa da Lil?
Para complicar, depois que voltou, o Michael não conseguia baixar o aplicativo da Prefeitura, que permite acessar as tais aulas online. O motivo? Vai saber… Talvez o wi-fi do vizinho não ajudasse. Eu tentava compensar lendo mangás ou livros infantis com o menino antes de dormir. Era pouco, mas melhor do que deixar o garoto à toa.
No meio da bagunça, percebi que poderia ter uma recaída e caminhar novamente para o abismo da depressão. Vamos combinar que ninguém merece afundar duas vezes. Acendi o sinal de alerta e procurei socorro. Foi quando uma amiga me enviou pelo WhatsApp o contato do Cada Trauma Importa. Que alívio! As duas sessões semanais de terapia me fazem muito bem. Aprendi umas técnicas de respiração que diminuíram bastante o meu estresse. Mas o principal é o que a terapeuta me diz. Ela raciocina de um jeito simples e certeiro:“Não se cobre tanto, Lil. O mundo todo levou um susto e está em crise. Por que você não estaria?”

No início de 2018, já recuperada dos transtornos psicológicos, Preta descobriu o Couchsurfing enquanto navegava displicentemente pela internet. O serviço conecta moradores de diversos países com viajantes à procura de hospedagem gratuita. Embora só domine o português, a jovem logo vislumbrou a possibilidade de receber estrangeiros no sobrado de Honório Gurgel. “Compreensível, né? Eu estava louca para conhecer gente nova depois de um ano e meio na pior.” Em fevereiro, juntou-se à comunidade virtual e abrigou o primeiro turista, um chileno. Gostou tanto da experiência que, até dezembro de 2019, acolheu hóspedes de pelo menos vinte nacionalidades. “Uruguaios, argentinos, peruanos, franceses, italianos, espanhóis, britânicos, croatas, turcos, japoneses… Minha casa virou uma Babel”, recorda, às gargalhadas. “Muita coisa!”
Especialmente com os latino-americanos, Preta mantinha demoradas conversas, que acabavam ganhando um tom mais íntimo. “O pessoal abria o coração. Falava de problemas familiares, decepções amorosas e dilemas profissionais. Eu retribuía narrando a minha história.” Os diálogos lembravam um pouco aqueles que a moça tinha com Seu Roberto. “O curioso é que não havia grande diferença entre os meus sofrimentos e os dos gringos. Percebi que os humanos padecem de um jeito semelhante em qualquer lugar do planeta.”
O vaivém no endereço de Preta despertou o interesse da vizinhança. Honório Gurgel, afinal, está longe de ser uma das regiões mais atrativas do Rio. O bairro de classe média baixa carece de peculiaridades marcantes, tirando o fato de que a cantora Anitta cresceu ali. “Como dificilmente vemos estrangeiros nas ruas de Honório, uma pá de moradores quis se aproximar dos meus hóspedes.” Nasceram, assim, as reuniões que serviram de inspiração para o projeto Maktüb Experience, germe do Cada Trauma Importa.
A jovem promovia encontros dos turistas com a população local, sobretudo os adolescentes. Não raro, sugeria que os forasteiros passassem à garotada noções dos próprios idiomas ou de atividades prazerosas em que se destacavam: música, desenho, pintura. “No final, formávamos uma roda e batíamos um papo.” A prosa frequentemente se transformava em desabafo coletivo.
Satisfeita com as reuniões e desejosa de partilhar ainda mais os ensinamentos trazidos pela depressão, Preta resolveu adaptar a iniciativa até chegar à configuração que o Maktüb exibe agora. As quatro favelas onde o projeto se desenrola ficam justamente nas imediações de Honório Gurgel.
Desde menina, a fotógrafa demonstra aptidão para liderar e servir. “Quando tinha 12 anos, organizei uma turma de crochê e bordado em Cururupu. Eu mesma dava as aulas, sem cobrar um centavo.” Hoje, no Cada Trauma Importa, é Preta quem estabelece o primeiro contato com os inscritos. Faz questão de escutar atenciosamente as lamúrias deles e de reconfortá-los. Só então os encaminha para o terapeuta mais adequado. A moça também administra o cronograma das sessões e, todas as manhãs, busca ter notícias dos pacientes. “Bom dia, flor do dia! Como estamos?”, lhes escreve pelo WhatsApp.
A expressão “cada trauma importa” remete à frase “vidas negras importam”, tradução de Black lives matter, lema dos militantes antirracistas norte-americanos. Já maktüb é a transliteração de um vocábulo árabe que significa “precisava acontecer” e que o romancista Paulo Coelho popularizou a partir da década de 1990. A jovem, porém, não garimpou a palavra nos textos do Mago. Ela a ouviu em Vida Longa, Mundo Pequeno. O rap do grupo Oriente explica que maktüb sintetiza “o fatalismo muçulmano”. Se proferido em momentos de agonia, o termo não soará como “um brado de revolta contra o destino”, mas como “a reafirmação do espírito plenamente resignado diante dos desígnios” que a existência nos apresenta. “Eu não poderia evitar o tsunami emocional que me atingiu, sacou? Maktüb! Era a minha sina”, diz a fotógrafa, que não tem religião, apesar de crer “em deuses”. “O universo encontrou um caminho bem tortuoso para me revelar o que devo fazer enquanto estiver viva: ‘Tu, Preta, há de zelar por teu equilíbrio mental e pelo dos outros.’”

A Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou, no dia 13 de maio, um relatório sobre o risco de a pandemia do novo coronavírus afetar gravemente a saúde psíquica da população em geral, e não só de médicos e paramédicos. O documento recomendava que governantes implantassem tanto medidas contra o avanço do patógeno quanto estratégias para prevenir ou amenizar os efeitos psicológicos da crise sanitária.
O Brasil, já se sabe, naufragou no combate à propagação da doença e, até agora, desconhece o estrago que a tragédia vem provocando na cabeça dos brasileiros. O governo federal não se preocupou em criar um programa extensivo para cuidar do assunto. Existem, no entanto, levantamentos pontuais que fornecem algumas pistas.
Um exemplo: o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma) constatou que, entre janeiro e julho, as 80 mil drogarias do país compraram dos fabricantes 97 milhões de caixas de ansiolíticos, estabilizadores de humor e antidepressivos. É uma quantidade muito superior à dos anos anteriores. Nos primeiros sete meses de 2018 e 2019, as farmácias adquiriram 74 milhões e 82 milhões de caixas, respectivamente. Considerando apenas a fase de distanciamento social (março a julho de 2020), o total chegou a 74 milhões, bem mais que os 59 milhões do mesmo período de 2019.
Outro exemplo: entre 25 de abril e 5 de maio, o Ministério da Saúde telefonou para 2 007 adultos de todo o país. Quando a entrevista abordou a sanidade mental, 42% dos consultados relataram alterações no sono durante a quarentena (ou padeciam de insônia, ou dormiam mais que o corriqueiro), 39% acusaram falta de apetite ou vontade excessiva de comer, 35% se declararam pouco interessados em realizar tarefas cotidianas, 33% alegaram se sentir para baixo e 31% manifestaram perda de energia.
Numa pesquisa conduzida pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), 1 460 participantes de 23 cidades brasileiras responderam um questionário online em duas ocasiões: fim de março e meados de abril. O Yale New Haven Hospital e a Universidade Columbia, ambos dos Estados Unidos, também coordenam o trabalho, que pretende detectar se os entrevistados apresentaram indícios de transtornos psíquicos enquanto se isolavam e quais os fatores que contribuíram para o eventual adoecimento deles. Eis as principais conclusões:
* No fim de março, quando a quarentena engatinhava, 4,2% dos consultados exibiram sinais de depressão, 6,9% de estresse e 8,7% de ansiedade. Em meados de abril, os índices subiram para 8% (depressão), 9,7% (estresse) e 14,9% (ansiedade).
* As mulheres se mostraram mais suscetíveis às psicopatologias do que os homens.
* A mesma suscetibilidade se verificou entre os participantes que precisavam quebrar o confinamento para trabalhar em relação àqueles que faziam home office.
* Quem morava com idosos, obesos, hipertensos, diabéticos ou cardiopatas se revelou mais propenso às doenças emocionais.
* Os que tinham criança em casa desenvolveram menos sintomas.
* Quanto maior a escolaridade dos entrevistados, menor a incidência dos distúrbios.
* Quanto mais regular a prática de exercícios físicos ou quanto mais equilibrada a dieta, menor a ocorrência de problemas mentais.
“O aumento dos indicadores de depressão, estresse e ansiedade não nos surpreendeu. Era esperado”, afirma o carioca Alberto Filgueiras, professor do Instituto de Psicologia da Uerj e um dos idealizadores da pesquisa. “Outros países que decretaram o isolamento para debelar epidemias de síndromes respiratórias agudas no século XXI, como o Canadá, a Austrália e a China, também registraram alta daquelas taxas.”
Filgueiras e seu parceiro de estudo, o norte-americano Matthew Stults-Kolehmainen, continuam analisando os dados com o intuito de compreender melhor os aspectos capazes de proteger emocionalmente as populações em confinamento. O objetivo da dupla é fornecer elementos para a futura implementação de políticas públicas sobre o tema.
Os pesquisadores repetiram o questionário em julho, mas ainda não computaram os resultados. Também planejam aplicá-lo tão logo o distanciamento acabe no Brasil e um ano depois. “A literatura científica demonstra que várias pessoas desenvolvem transtorno de estresse pós-traumático quando saem de uma quarentena”, diz Filgueiras. “Queremos verificar se o mesmo vai acontecer por aqui.” O mal caracteriza-se pela recorrência de pensamentos ou pesadelos que revivem determinado trauma e podem gerar taquicardia, sudorese demasiada, tensão muscular, irritabilidade ou tonturas.

Evandro, Evandro, Evandro. Durante nossas conversas, Preta confundiu meu nome inúmeras vezes. Tratava-me por Evandro sem perceber. Embora intrigado, evitei corrigi-la. Uma hora, porém, decidi matar a curiosidade: “Reparou que você sempre me chama de Evandro? Por quê?” A jovem finalmente se deu conta do lapso: “Jura? Perdão… Teu nome parece o do meu terapeuta e mentor.”
Formado em ciência política, o niteroiense Evandro Vieira Ouriques leciona na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele virou professor da Escola de Comunicação quatro décadas atrás, quando ainda trabalhava como jornalista e diagramador na imprensa fluminense. Hoje se divide entre a licenciatura e a clínica, já que mantém um consultório onde exerce as funções de terapeuta filosófico. Em linhas gerais, lança mão da filosofia para refletir sobre as angústias dos pacientes e ressignificá-las.
Duas características logo despertam a atenção de quem o encontra pela primeira vez: a paixão com que se expressa e o visual despojado, quase hippie. Barbudo e calvo, o professor de 70 anos deixa os cabelos brancos remanescentes crescerem até os ombros. “Conheci Preta em janeiro de 2020, numa exposição de fotografia”, relembra. “Ela levou poetas e rappers para se apresentarem ali.” À época, Ouriques preparava um curso de extensão que ocorreria na UFRJ e no Observatório de Favelas, uma organização sem fins lucrativos. As quinze aulas discutiriam as possibilidades de se construírem espaços de convivência em territórios cujos moradores estão sob risco permanente de extermínio. “Mal troquei algumas palavras com Preta, tive vontade de convidá-la para dar uns depoimentos no curso.” Uma “forte intuição” lhe sugeria valer a pena se aproximar da moça. “Não me enganei. Preta é uma líder nata, que não usa o próprio trauma para traumatizar o outro. Ela reconheceu com muita dor que, numa etapa da vida, ocupou a posição de subjugada, mas resolveu não subjugar ninguém em represália. Abdicou da vingança. Em vez de cultivar o rancor, escolheu celebrar e disseminar as oportunidades de libertação.”
Devido à quarentena, o curso ainda não se realizou. Enquanto aguarda a reabertura da universidade, o docente supervisiona o Cada Trauma Importa e atende não só a jovem como alguns dos que buscaram a rede de assistência psicológica.
A carioca Estelita Oliveira de Amorim Ouriques também figura entre os voluntários da ação. Casada com o professor, é iogaterapeuta e costuma atuar no Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro, que pertence à Secretaria de Estado de Saúde. “Em minhas sessões, tento reequilibrar os pacientes por meio dos elementos que compõem a tradição iogue: as técnicas respiratórias, as posturas corporais, o relaxamento, a meditação e, claro, a escuta amorosa”, resume a profissional de 56 anos, que se dedica à prática milenar hindu desde os 22.

O RAPPER
Na real, não tenho medo de que o coronavírus me mate. Tenho é pena. Odiaria morrer sem deixar um legado para a minha comunidade, os meus familiares e principalmente a minha filha. Não estou falando apenas de coisas materiais – uma casa mais confortável, dinheiro no banco, talvez um carro. Falo também de consciência. Sabe aquele papo de semear um mundo melhor? Eu gostaria… Sonho em convencer quem me rodeia de que a leitura e o respeito pelas diferenças podem salvar as próximas gerações. Até o momento, não consegui. Então, ainda preciso continuar na área.
Escrevo letras de rap justamente por isso: para abrir a cabeça dos que só pensam em futilidades. Vou espalhando minhas sementes com as palavras, tá ligado? Solto o verbo aqui mesmo, na Vila Kennedy, a favela da Zona Oeste carioca em que nasci e sempre morei. Quando participo das rodas culturais ou batalhas de rima, sou o MC Mano Chim. Fora delas, me chamo Wendel Luiz Correia dos Santos de Jesus. O nome imenso diz muito sobre meus pais. Eles não se entenderam na hora de me registrar. Brigaram pelo Correia, pelo Santos e pelo Jesus. Nenhum dos dois quis abdicar de nada. Percebe como a mente pequena atrapalha tudo? Fiquei com o sobrenome de ambos, que nunca pararam de tretar.
Curto ler desde a infância. Na quarta série, a professora Janete mostrou para a classe o livro da Vaca Vitória. Esqueci o título… Um livro de poesias curtas, sinistro! Lembrei: Era uma Vez a Vaca Vitória, que Caiu no Buraco e Acabou a História. Daí em diante, peguei gosto pela brincadeiraPrimeiro, devorei romances de vampiro, como os do Darren Shan. Depois, parti para as biografias. Agora priorizo autores mais filosóficos, tipo Augusto Cury e Leandro Karnal. No fim da adolescência, até cogitei estudar filosofia. Acho maneiro dar aulas. Mas os meus pais não concordaram: “O quê?! Vai perder o maior tempo em faculdade para se formar e ganhar merreca?” Na fantasia de ter uma profissão menos sucateada, fiz cursos técnicos de automação industrial e enfermagem. Por absoluta falta de aptidão, não terminei nem um, nem outro. Fui seguir os conselhos da família e me estrepei. A mente pequena deles atrapalhou tudo de novo.
Hoje, com 28 anos, trabalho como aguadeiro. Distribuo água filtrada para o povão. O calor do Rio é de rachar, certo? A galera vai às festas de rua ou se amontoa em filas de emprego, e, muitas vezes, não tem um puto no bolso. Água mineral custa caro. Para que ninguém morra de sede embaixo do sol, a companhia estadual de saneamento contrata a gente. Metemos um galão no ombro, como aqueles que os vendedores de mate carregam, e damos água potável à vontade, em copinhos de 200 ml. Recebo 60 reais por evento. Antes do vírus, faturava uns 400 ou 500 todo mês. Com a pandemia, o negócio gorou. Dizem que vão nos recontratar quando o isolamento acabar de vez. Tomara…
Meu pai é pedreiro e eletricista, mas também está sem trampo. Minha mãe, por enquanto, segura as pontas. Ela cuidava de uma idosa num apartamento de Copacabana. Passava a semana lá. Só voltava para a Vila Kennedy no sábado. Em abril, a velhinha pegou a Covid e morreu. Coitada… Mesmo assim, o filho dela não despediu minha mãe. “Você precisa arejar o apartamento”, explicou. A idosa vivia de frente para a praia. Se não ventilar o imóvel, a maresia faz um estrago. Lógico que a doença da velhinha nos assustou. Havia o risco de a gente se contaminar, mas parece que escapamos.
Em casa, moro com cinco pessoas, além de meus pais: duas irmãs desempregadas e três sobrinhos. Tem ainda a Princesa, uma mini poodle. Minha filha de 10 anos fica com a mãe. Imagine a situação: um monte de adultos e crianças, mais uma cadelinha, dividindo um espaço apertado o tempo inteiro. Qual a chance de funcionar? Ontem mesmo notei que mexeram nos meus livros e rabiscaram um dos melhores. Senti uma dor… Livro não se rabisca, gente! O pessoal debochou tanto do meu protesto que deitei no chão do quarto e chorei como um bebê. Antes chorar do que explodir de ódio e arranjar mais briga.
Outro problema lá de casa é a religião. Minha mãe professa o catolicismo desde menina e, de uns tempos para cá, se fanatizou. Rejeita as crenças do meu pai, que gosta do candomblé. Ela o acusa de paganismo. Não bastasse, ainda critica a minha tia, que se converteu à Igreja Batista. Olha a mente pequena atacando mais uma vez… Jesus condenava os preconceituosos! Jesus pregava a paz! O que Ele acharia de tamanha implicância? Eu preferi me manter longe do Fla-Flu. Tenho espiritualidade, mas não tenho religião. Observo o azul do céu, o verde do mar, as curvas das montanhas e me conecto diretamente com o Criador.
Nunca acreditei em psicólogo, confesso. Pensava: se nem minha família me escuta, por que um estranho vai escutar? Acontece que o confinamento vinha me tirando do sério. O que fazer para baixar a bola? Só me restou arriscar e procurar o Cada Trauma Importa. Na primeira sessão, chorei de novo como um bebê. Despejei pelo Zoom todos os meus temores, raivas e frustrações. Para minha surpresa, o estranho não apenas me ouviu. Ele também me respeitou.

Em agosto, Preta já não se mantinha tão isolada. Retomava lentamente o trabalho de produtora cultural, planejava alguns ensaios fotográficos e entregava cestas básicas nas comunidades onde o Maktüb está presente. A moça comprou os alimentos com o dinheiro que comerciantes das redondezas lhe doaram. Àquela altura, não vivia mais no Engenho Novo. Trocara a edícula da Mulheres de Peito e Cor por uma casa dentro do Chapadão.
Dos onze terapeutas que abraçaram inicialmente o Cada Trauma Importa, sobravam quatro: o casal Ouriques, a sexóloga Daniela Mattos e o psicólogo Alexandre Ribeiro. Os demais não conseguiram permanecer na ativa sem remuneração. Quarenta dos 170 pacientes inscritos haviam recebido atendimento desde maio, quando as sessões começaram. Os outros aguardavam na fila. “Quanto tempo a rede ainda vai durar? Não faço a menor ideia”, admite Preta. “Por mim, levo a iniciativa adiante mesmo depois da quarentena, mas nem tudo está sob nosso controle, né? A pandemia que o diga…”
(revista piauí)

quarta-feira, 1 de julho de 2020

"Estou sonhando?"

Uma sessão espírita dedicada às vítimas do coronavírus 
Num sobrado de Copacabana, quatro mulheres e dois homens se reuniam em silêncio, com os olhos fechados e as cabeças baixas. A sala ampla que ocupavam sobressaía pela austeridade. Quase não havia móveis, somente um par de armários, meia dúzia de cadeiras e duas mesas. As paredes claras exibiam um retrato solitário de Jesus. Do teto, irradiava uma luz amarela muito tênue, que deixava o recinto na penumbra.
As mesas, simples e de plástico, se assemelhavam às de um boteco. Como estavam justapostas, formavam um retângulo branco, sem toalhas. O grupo se sentava em torno dele. Um aparelho portátil de som, instalado num canto da sala, tocava uma música clássica bem suave. Em cima das mesas, espalhavam-se folhas de papel sulfite, canetas esferográficas, lápis de cor, pincéis, tintas guache, um pote com água e quatro livros – três de Allan Kardec e um de Chico Xavier, ambos figuras essenciais do espiritismo.
Passava um pouco das 18h30 quando Isabella Maltaroli, a dirigente daquela sessão mediúnica, ergueu a cabeça. Com uma lanterninha, iluminou um caderno em que se enfileirava uma série de nomes, ora de pacientes hospitalizados por causa da Covid-19, ora de pessoas que não resistiram à doença e morreram. A lista também incluía médicos e enfermeiros que combatiam o novo coronavírus dentro das UTIs fluminenses. Na ocasião, dia 3 de abril, sexta-feira, o Brasil registrava 359 óbitos decorrentes do patógeno, segundo o Ministério da Saúde. O Rio de Janeiro contabilizava 47. A enfermidade provocava apenas os primeiros estragos por aqui. Praticamente três meses depois, em 24 de junho, os números saltariam para 53 830 no país e 9 295 no Rio.
“Vamos lá?”, perguntou Maltaroli, sem esperar propriamente uma resposta. Ela se aprumou na cadeira e começou uma prece improvisada, em voz alta. Pediu que “os amigos desencarnados” comparecessem à reunião, harmonizassem “as energias” da sala e inspirassem cada um dos presentes. Rogou, ainda, que zelassem pelos brasileiros durante toda a pandemia. Tais amigos são os espíritos moralmente superiores que guiam aquele centro religioso – o Lar Paulo de Tarso – desde a fundação, em dezembro de 1983.
Depois da prece inicial, a dirigente enunciou um dos nomes que figuravam no caderno. Explicou de quem se tratava e lhe dedicou uma oração curta, novamente improvisada e em voz alta. Os demais participantes acompanharam a reza com atenção, mas sem falar nada. O ritual se repetia sempre que Maltaroli citava um nome da lista. Quando mencionava o de alguém que morrera, os devotos aguardavam alguns minutos após a oração – tempo necessário para que o espírito do morto se manifestasse, caso houvesse condições.
Entre os seis participantes, estavam dois médiuns. Seria por meio de um ou de outro que o morto se comunicaria. Em sessões do gênero, conforme a doutrina espírita, a alma dos médiuns mostra-se capaz de abandonar parcial ou totalmente o corpo, à maneira de uma sombra que se descola do organismo que a gerou. O afastamento ocorre numa fração de segundos e quase ninguém de carne e osso o enxerga. Mal o fenômeno acontece, um fio de energia prateado – e igualmente invisível – passa a ligar o corpo dos médiuns à sua alma, como um cordão umbilical.
Espíritos de mortos que desejam se pronunciar conseguem, assim, estabelecer uma triangulação com os vivos. Endereçam mensagens para a alma, que as leva até o corpo dos médiuns. Eles podem retransmiti-las instantaneamente e de diferentes modos: pela fala (psicofonia), por desenhos e pinturas (psicopictografia) ou pela escrita (psicografia). Daí os pincéis, lápis, canetas, tintas e sulfites que repousavam nas mesas do Lar Paulo de Tarso.
Ao longo do processo, os médiuns raramente perdem a consciência. O mais comum é que permaneçam tão lúcidos a ponto de censurar as mensagens que julgam inapropriadas e não passá-las adiante.
Naquela noite, os espíritos pareciam relutar em dizer qualquer coisa. Logo depois de uma oração, porém, um dos médiuns – grisalho, quarentão e gorducho – deu a impressão de que caíra no sono. Isabella Maltaroli se levantou e caminhou para perto dele. “Ei, querido, vamos acordar?”, propôs, carinhosamente, ao perceber que se tratava de um espírito que não sabia ter desencarnado. Ela queria avisá-lo. O médium, ainda de olhos cerrados, resistiu: “Me deixa! Está gostoso assim…” A dirigente não recuou: “Acorde, meu bem! Vamos conversar um minutinho. Bora lá!” Sem alterar a voz habitual, mas assumindo uns trejeitos inusuais, o médium resmungou: “Quem é você? Não me enche!” Maltaroli respondeu: “Sou uma amiga. Acho que vou pegar um balde d’água para jogar em você. Água gelada, que tal? Você vai acordar rapidinho.”
Mesmo contrariado, o médium – ou o espírito que se expressava pela sua boca – resolveu abrir os olhos. “Peraí! Estou sonhando?”, indagou. “Não, não é um sonho”, esclareceu a dirigente. “É o quê, então?! Não me diga que… Eu morri? O coronavírus me matou?” Maltaroli procurou tranquilizá-lo: “Você não morreu, querido. Continua vivo, vivíssimo, mas de outro jeito. Você apenas desencarnou.” O espírito refutou, enfaticamente: “Besteira! Não acredito em nada disso. Sou ateu!” A dirigente sorriu: “Olhe para si próprio. O que vê? O corpo de outra pessoa, não? O de um médium… Cadê o seu?” O espírito observou ligeiramente o homem que lhe servia de mensageiro e admitiu: “Não sei… Será que enlouqueci?” Maltaroli o acalmou de novo: “Não enlouqueceu! Juro! Você só retornou para o plano espiritual, de onde todos viemos.”
Codificado pelo francês Allan Kardec durante a segunda metade do século XIX, o espiritismo chegou ao Brasil em 1865. À época, o jornalista e professor Luiz Olympio Telles de Menezes fundou em Salvador uma comunidade que estudava a doutrina. De acordo com o Censo mais recente, a religião somava 3,8 milhões de adeptos no país há dez anos, algo como 2% da população geral. Os católicos eram 65%, e os evangélicos, 22%. Atualmente, 12 milhões de fiéis abraçam a crença. A estimativa, bastante otimista, é da Federação Espírita Brasileira.
Grosso modo, a denominação – monoteísta e cristã – preconiza a existência de um mundo que está em outra dimensão e abriga os espíritos. Quantos exatamen-te? Uma infinidade. Ou, como ensinam os devotos, “tantos quantos Deus quiser criar”. De início, os espíritos se revelam ignorantes. Nem bons, nem ruins, nascem muito simplórios e destinados à felicidade. Só que, para conseguir atingi-la plenamente, terão de evoluir. Precisarão encarar um longuíssimo aprendizado, que acontecerá na dimensão onde moram, mas também na Terra ou mesmo em outros planetas.
Eternos e com livre-arbítrio, os espíritos frequentemente podem decidir quando e sob quais condições irão se corporificar, embora necessitem que uma oportunidade se apresente. Não basta, portanto, almejar a encarnação. É imperativo que, simultaneamente, apareçam vagas entre os terráqueos. Uma vez corporificados, os espíritos tendem a esquecer a outra dimensão e se apegar à nova vida. O ciclo de encarnações e reencarnações só termina no momento em que os aprendizes se tornam imensamente puros, éticos e sábios. Até hoje, Cristo é o único que alcançou tal condição na Terra.
“Agora que estou morto, o que devo fazer?”, questionou o ateu desencarnado. “Nada. Simplesmente pense em alguma coisa bonita e descanse”, orientou Maltaroli. “Com o tempo e a ajuda de amigos, você refletirá sobre todas as lições que já aprendeu. Mas, por enquanto, não se preocupe. Apenas recupere-se da viagem.” Bem mais sossegado, o espírito suspirou, agradeceu a dirigente e partiu.
(revista piauí)

terça-feira, 2 de junho de 2020

"Eu não aguento mais chorar"

Fragmentos de revolta contra o assassinato de negros pela polícia explodem em manifestação no Rio

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e máscara branca sobre a boca e o nariz, Mônica Cunha – uma educadora negra de 54 anos – vociferava na frente do Palácio Guanabara, sede do governo fluminense: “O Estado não pode matar. O Estado não pode achar que somos descartáveis. Não somos! Somos humanos! O Estado não pode nos mastigar e jogar fora.” Em torno dela, umas vinte ou trinta pessoas incentivavam com aplausos e exclamações o discurso improvisado, que se tornava cada vez mais cortante. “Temos que sair às ruas! Não podemos ficar em casa como pedem a Organização Mundial da Saúde e o governador. Sabe por quê? Porque o Estado não para de nos assassinar, mesmo na pandemia do coronavírus. A vida dos meus filhos, a vida do meu povo importam! Eu não aguento mais chorar!”
Em 2003, a manifestante fundou o Movimento Moleque e o comanda desde então. O coletivo luta pelos direitos de jovens infratores. Domingo à tarde,  enquanto protestava, a ativista protegia o rosto com uma viseira translúcida e vestia uma camiseta larga que estampava a foto de um rapaz sorridente. Era Rafael, o segundo de seus três filhos. Ele tentou roubar um carro na adolescência e, por isso, cumpriu medidas socioeducativas durante quase nove meses. Mais tarde, se envolveu com o tráfico de drogas. Acabou morto pela Polícia Civil em dezembro de 2006, entre as favelas do Rato Molhado e do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Testemunhas contaram que o moço levou um tiro de fuzil perto do estômago quando já se encontrava rendido, de joelhos. Tinha 20 anos.
“Ou a gente dá um basta agora, ou amanhã você vai estar igual a mim”, prosseguiu a educadora, apontando para uma negra bem mais nova que a observava. “É inadmissível! O meu povo precisa continuar a viver. Povo negro vivo! Jovens negros vivos! Mulheres negras vivas!”, concluiu Mônica, que não usava megafone nem alto-falantes. Ela gritava com a voz nua, como todos os que se pronunciavam ali.
Sem carros de som ou palanques, a manifestação não dispunha propriamente de uma liderança. As centenas de pessoas – duzentas, trezentas, quatrocentas? – que decidiram quebrar o isolamento social e se juntaram às 15 horas diante do palácio, no bairro de Laranjeiras, dividiam-se em vários grupos. Cada um deles constituía um fragmento autônomo, onde alguém discursava ou lançava palavras de ordem, prontamente repetidas pelos que estavam ao redor. Entre o nascimento e a dispersão deste ou daquele grupo, passavam-se apenas poucos minutos.
Um aspecto nada desprezível garantia a unidade do protesto: a fúria dos manifestantes contra os excessos cometidos por policiais do Rio, que não raro culminam no assassinato de negros. Esse tipo de violência – que os ativistas chamavam de “genocídio” – é antiquíssima e já alimentou toda sorte de denúncias. Seis acontecimentos recentes, porém, serviram de estopim para a ação de domingo:
* Em 15 de maio, a Polícia Militar e a Civil enveredaram pelo Complexo do Alemão, na Zona Norte carioca, atrás de drogas, munições e armas. Moradores relatam que presenciaram ou escutaram intensos tiroteios. A operação resultou em doze mortes. Somente um policial se feriu, sem gravidade.
* Em 18 de maio, o adolescente negro João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, morreu após receber um tiro de fuzil pelas costas. Ele brincava com os primos na casa de um tio em São Gonçalo, município da Grande Rio, quando a Polícia Federal e a Civil invadiram o imóvel à caça de traficantes.
* Também no dia 18 de maio, familiares de Iago César dos Reis Gonzaga disseram que policiais militares torturaram e mataram o jovem negro de 21 anos durante uma incursão pela Favela de Acari (Zona Norte do Rio). A PM não comentou a denúncia.
* Em 20 de maio, uma troca de tiros entre criminosos e a Polícia Militar na Cidade de Deus (Zona Oeste) interrompeu a distribuição de duzentas cestas básicas por voluntários locais. A batalha provocou a morte de João Vitor Gomes da Rocha, negro de 18 anos. Segundo a PM, o rapaz fazia parte de uma quadrilha que pratica sequestros relâmpago. A mãe dele, empregada doméstica, nega a versão das autoridades.
* No dia 21 de maio, enquanto patrulhava o Morro da Providência (Centro), a Polícia Militar entrou em confronto com bandidos. O tiroteio – que atrapalhou outra doação de cestas básicas, desta vez promovida por alunos de um pré-vestibular comunitário – ocasionou a morte de Rodrigo Cerqueira da Conceição. Os policiais afirmam que o rapaz negro de 19 anos portava uma pistola e um carregador, além de entorpecentes. Testemunhas, entretanto, alegam que o jovem trabalhava numa barraquinha quando o conflito eclodiu.
* Em 30 de maio, Matheus Henrique da Silva Oliveira – um barbeiro negro de 23 anos – tomou dois tiros e morreu enquanto andava de moto perto do Morro do Borel (Zona Norte). Vizinhos do moço contam que PMs fizeram os disparos. O caso ainda está sob investigação.
Os seis episódios de maio se deram após um mês particularmente sangrento. Em abril, 177 óbitos no estado do Rio decorreram de intervenções policiais. O número, divulgado pelo próprio governo, é 43% maior que o de abril do ano passado.
Coletivos de favelas e militantes do movimento negro recorreram às redes sociais para convocar a manifestação. No sábado, o Instagram de Raull Santiago – ativista do Alemão – já disseminava mensagens em português, espanhol e inglês sobre o protesto. “Infelizmente”, lamentava uma delas, “a polícia insiste em assassinar nosso povo durante a pandemia. Se não morremos por causa do vírus, a violência policial nos mata.”
No domingo de manhã, a agência de notícias Alma Preta Jornalismo informava que a ação estava se organizando “de maneira espontânea” pela internet. Duas imagens ilustravam a nota: a do menino João Pedro e a de George Floyd, o negro desempregado que o policial branco Derek Chauvin assassinou por asfixia em Minnesota, há uma semana. O homicídio gerou uma onda de rebeliões populares nos Estados Unidos, que agora inspiravam os brasileiros.
À tarde, diante do Palácio Guanabara, Raull Santiago profetizou: “Este não é apenas um ato. Este não é o único ato. Este não é o último ato. Este é só o início!” Palmas e gritos de “arrasou” festejaram o presságio.
As mensagens digitais que anunciavam o encontro pediam para os manifestantes não abdicarem dos cuidados sanitários. “Ponham máscara.” “Levem álcool em gel numa mochila ou no bolso.” “Fiquem a dois metros das demais pessoas.” “Retornem para casa logo depois do protesto.”
Quase todos os presentes procuravam respeitar as regras. Muitos não apenas usavam máscaras como viseiras, óculos de segurança e luvas. Também limpavam as mãos regularmente. O problema era guardar distância. Com frequência, surgia uma aglomeração aqui ou ali. “Olha o espaçamento!”, berrava alguém. Os aglomerados, então, abriam os braços em cruz e buscavam se afastar uns dos outros. A estratégia, no entanto, só funcionava por alguns segundos.
Entre os ativistas, mal se avistavam bandeiras de partidos. Em compensação, proliferavam faixas e cartazes improvisados, geralmente escritos a mão: “A periferia grita!”; “Dor de mães de filhos assassinados não tem preço”; “Parem de nos matar”; “Vidas negras e faveladas importam”; “Meu grupo de risco é outro”.
Os brados e cantos seguiam na mesma linha: “Contra o genocídio do povo preto, nenhum passo atrás!”; “Fascistas! Racistas! Não passarão!”; “Chega de chacina, polícia assassina!”; “Povo preto unido é povo preto forte, que não teme a luta, que não teme a morte”; “Acorda, classe média!”; “Não acabou, tem que acabar! Eu quero o fim da Polícia Militar!” De vez em quando, ecoava um “Fora, Bolsonaro!” ou um “Bozo miliciano!” O governador Wilson Witzel mereceu igualmente alguns “afagos”: “Ei, Auschwitzel, vai tomar…”
Com muita verve, a advogada negra Valéria Lúcia dos Santos mencionava os filhos no meio de um discurso. “O meu mais velho tem 19 anos e o meu caçula fez 17. Eles só continuam vivos porque resolvi tirá-los do Brasil. Hoje os dois moram nos Estados Unidos, um país que também é extremamente racista e que se encontra em guerra. Os pretos de lá brigam, gente! Eles lutam! Os pretos dos Estados Unidos mandaram um recado para o mundo: ‘Nós não vamos mais suportar humilhações, não vamos mais aceitar isso. Basta!’”
Habitante de Mesquita, na Baixada Fluminense, Valéria dos Santos é ex-mulher de um norte-americano, “o pai dos meus garotos”. Ela não vê os filhos pessoalmente desde 2011. “Deixei que o pai os levasse para a Flórida. Lá os meninos estudam, vivem melhor do que aqui. Eles não teriam futuro em Mesquita. O pai agora os protege e já conversou seriamente com os dois: ‘Se a polícia abordar vocês, fiquem quietos, não digam nada, não façam movimentos bruscos.’ Essa é a sina do negro em qualquer lugar do mundo: nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra. Desgraçadamente…”
A advogada cível ganhou certa notoriedade em setembro de 2018, quando discutiu com uma juíza leiga de Duque de Caxias, outra cidade da Baixada, durante uma audiência. Por causa do entrevero, os policiais plantonistas do fórum algemaram Valéria. Três vídeos que registraram o ocorrido circularam pelas redes sociais e indignaram a Ordem dos Advogados do Brasil. “A juíza e os policiais cometeram flagrante ilegalidade contra a colega”, avaliou a OAB. Alvo de uma representação da Ordem, a juíza foi absolvida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
No fim do discurso de domingo, Valéria declarou: “Eu lamento pela mãe do João Pedro, porque sou mãe igual. É revoltante! Quando gritamos, parece que estamos loucas. Não! Nós estamos sentidas.”
O protesto reunia principalmente jovens na faixa dos 20 e 30 anos. Os negros, óbvio, imperavam, mas os brancos também compareceram, ainda que nenhum tenha ousado discursar. Às tantas, um casal que passeava pelas redondezas, ambos de pele bem clara, xingou os manifestantes. Parte deles saiu atrás dos ofensores. “Volta! Volta!”, berraram outros. “Não vamos aceitar provocação dos fascistas!” Embora se inspirassem nas rebeliões dos Estados Unidos, os ativistas de Laranjeiras apregoavam a paz. “Nada de violência, galera!” O casal entrou ileso num prédio das imediações e os ânimos serenaram.
A PM acompanhou todo o ato de perto, sem se alterar, mesmo quando as palavras de ordem a citavam. A partir das 15h40, a manifestação se dispersou. Pouco depois, um grupo de retardatários chegou à frente do palácio, e a confusão começou. A polícia afirma que alguns dos atrasados jogaram pedras contra a sede do governo e tentaram invadi-la. Para afugentá-los, a corporação utilizou “instrumentos de menor potencial ofensivo”, como costuma dizer: bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e tiros de borracha. Não houve registro de feridos.
(site da revista piauí)

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Isolamento à beira-mar

Como idosos lidam com a pandemia num prédio de Copacabana

Pela manhã, quando abri a porta de casa para apanhar o jornal, ouvi uma conversa nada corriqueira no andar logo acima do meu. “Que barbaridade, Seu Zé! O senhor tem certeza?”, indagava a moradora da cobertura. Ela vive ali com o marido e sem empregados ou animais de estimação. Nunca vi o casal, nem sequer de relance, mas sei que amos já passaram dos 90 anos e estão no prédio há quase seis décadas. “Tenho certeza, sim! Internaram o moço ontem, lá no Copa D’Or. Um rapaz novinho de tudo, universitário”, respondeu Seu Zé com um quê de impaciência. “Quer dizer, não posso garantir a data da internação. Foi ontem à noite, parece. Ou hoje bem cedo? Não importa…”
O cearense José Cordeiro de Farias é zelador no pequeno edifício de Copacabana para onde me mudei em outubro de 2017. Ele e minha vizinha, imagino, conversavam à beira da escadaria acinzentada que percorre os onze andares do prédio. Embora não pudesse enxergá-los, escutei perfeitamente: “Deus do céu! O que vai acontecer agora?”, perguntou a vizinha, mais para si mesma do que para o zelador. “Será que a gente corre perigo?”
Era dia 18 de março, quarta-feira. Na antevéspera, o novo coronavírus levara à morte um aposentado em São Paulo. O Ministério da Saúde o identificou como a primeira vítima fatal da Covid-19 entre os brasileiros. Até o início daquela quarta, o vírus contaminara 33 pessoas no Rio de Janeiro, mas ainda não havia provocado nenhum óbito. Com o intuito de retardar a pandemia, o governador do estado, Wilson Witzel (PSC), começou a semana anunciando uma série de restrições temporárias, como a suspensão de aulas em instituições públicas ou particulares, o fechamento de teatros, cinemas, academias e shopping centers, a proibição de eventos esportivos e a recomendação para que ninguém fosse às praias. O isolamento social ganhava corpo, e o lema “Fique em casa” se espalhava.
Assim que tive oportunidade, procurei o zelador:
– Desculpe, mas ouvi parte da conversa de vocês na cobertura. Algum morador está internado?
– Morador, não. Um rapazinho que veio olhar o 301 no final da semana passada. Ele queria alugar o apartamento, que vagou faz uns dias. Espiou tudo bem espiado e depois bateu papo comigo aqui no hall de entrada. Agora me contaram que pegou o tal do vírus pouco antes de assinar o contrato.
– Quem contou?
– A faxineira que limpa o apartamento. Ela falou que já puseram o moço na UTI. Misericórdia! Eu cheguei perto do rapaz, apertei a mão dele… Não posso me contaminar. Sou do grupo de risco! E a Lourdes também!
O zelador se referia à sua mulher, a pernambucana Maria de Lourdes Barbosa de Farias, com quem divide as tarefas do condomínio. Em tese, o casal realmente figura entre os alvos preferenciais do novo coronavírus – não porque sofra de diabete, asma, bronquite, enfisema pulmonar ou hipertensão arterial, mas pela idade avançada. Taurinos, os dois aniversariam em maio. Ele vai completar 78 anos. Ela, 75. No entanto, jamais os tomei por velhos, embora tampouco os considerasse jovens, é claro. Eu simplesmente não pensava sobre o tempo quando os flagrava em plena atividade. Desde 1992, Farias e Lourdes são os únicos funcionários do edifício: limpam todos os andares, cuidam da portaria durante o dia (à noite, a partir das oito, não há porteiro), fazem reparos miúdos nas áreas comuns, recebem encomendas, distribuem correspondências e recolhem o lixo. Labutam como formiguinhas, sem muito tempo para o dolce far niente das cigarras. “Consigo subir do térreo até a cobertura, pelas escadas, num pique só”, gosta de trombetear o zelador. Não se trata de exagero.
O térreo, aliás, é onde o casal mora. Eles ocupam um apartamento com quarto, sala, cozinha, dois banheiros, lavanderia e um quintalzinho. No imóvel abarrotado de coisas, terminaram de criar a filha, Giseli, uma dona de casa que cursou administração de empresas e direito, mas nunca se formou, e lhes deu um par de netos. Bem menor que a cobertura dúplex da vizinha nonagenária, a residência do casal revela-se maior que os demais vinte apartamentos do prédio, cada um com 50 m2 e apenas um dormitório.
Inaugurado em 1964, o edifício também abriga salas comerciais. Tem uma garagem modesta, com apenas duas vagas, e não exibe nenhum “penduricalho”: nem playground, nem salão de festas, nem piscina. Apesar de franciscano, fica muito perto da praia, numa região privilegiada do Rio, o ponto em que Copacabana se aproxima de Ipanema – divisa batizada pelos cariocas de Copanema.
“Sou do grupo de risco!” A frase do zelador não só me fez atinar que o prédio se encontra sob a guarda de dois “velhinhos” – dispostos, prestativos, mas agora ameaçados – como me lembrou que moro no epicentro da terceira idade.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) calcula que o país reúne, atualmente, 34 milhões de pessoas com 60 anos ou mais. Cerca de 1,5 milhão está no município do Rio de Janeiro. Apenas São Paulo, entre as capitais, o supera. Lá vivem 2,3 milhões de indivíduos que pertencem àquela faixa etária. Em termos relativos, porém, a situação muda – e o Rio se converte na capital com a maior porcentagem de idosos. Essa população representa 22,7% dos 6,7 milhões de habitantes. Porto Alegre, Vitória e Belo Horizonte aparecem, respectivamente, em segundo, terceiro e quarto lugares no ranking (22,3%, 19,7% e 18,8%). Florianópolis, Curitiba e São Paulo compartilham a quinta colocação (18,4%).
O IBGE também estima que Copacabana seja o bairro carioca com maior número de idosos. O Censo de 2010 – a pesquisa mais recente sobre o assunto – indicou haver 43,4 mil moradores sexagenários ou acima dos 70 anos por aqui. Depois, vinham Campo Grande (41,4 mil) e Tijuca (39,5 mil).
O zelador, sua mulher e eu moramos, assim, no bairro com mais idosos da capital que detém a maior proporção deles. Um epicentro, portanto, ou algo do gênero. Alheio à demografia, Farias se angustiava cada vez mais: “Quem entrou em contato com um infectado precisa se isolar? A Lourdes pode pegar o vírus de mim? Como vou me isolar se tenho que ganhar a vida?”

O casal se conheceu em Copacabana mesmo. Ele trabalhava de garagista num edifício da Rua Bolívar. Ela, comerciária, costumava andar pelos arredores do prédio. “Eu vendia de tudo naquele tempo: roupa, sapato, qualquer coisa. Era empregada de lojas finas, sabe? O Zé manobrava carro, e a gente se paquerava de leve.” Um dia, o flerte vingou, enveredou para o namoro e… “Casamos em 1972”, recorda o zelador, que foi garçom “numa pensão de português” antes de se tornar garagista.
Depois do casamento, Lourdes virou depiladora e manicure. Farias comprou um Opala Comodoro (“o melhor carro da ocasião”) e se transformou num híbrido de motorista e guia turístico. Levava hóspedes do hotel Sheraton para visitar as atrações do Rio. Em abril de 1992, quando surgiu uma vaga de porteiro no nosso edifício, não titubeou. “Me ofereceram carteira assinada e a chance de sair do aluguel. Dava para recusar? Aqui moro de graça. Não pago nem a luz. Sem contar que contrataram a Lourdes também, como auxiliar de portaria.” Ele só ganhou o cargo de zelador há poucos meses – apesar de, na prática, exercer a atividade desde que chegou. Sua parceira segue com a mesma função.
Hoje ambos estão aposentados, mas permanecem na ativa porque ajudam financeiramente os familiares. “Nosso neto mais jovem peleja com uns problemas de saúde e, por causa disso, a Giseli não pode trabalhar. Precisa cuidar do menino”, explica a auxiliar de portaria. O que o genro deles fatura como taxista não é suficiente para saldar as contas.
Farias e a companheira têm origem parecida. Filho de um caixeiro-viajante e de uma dona de casa, o zelador nasceu em Santa Quitéria, cidadezinha do interior cearense. Ainda bebê, perdeu o pai (“Dizem que morreu de nó nas tripas”) e acabou educado pelos avós maternos. “Minha mãe tolerou a viuvez por um período curto e depois se casou de novo. Formou outra família. Somos treze irmãos no total – dois do primeiro casamento dela e o resto do segundo.”
Exímio boiadeiro, o avô de Farias gerenciava uma fazenda. “Era uma propriedade gigante, com açude e quinhentas cabeças de gado. Se um boi escapasse do pasto e desaparecesse mata adentro, um punhado de vaqueiros saía à procura do bicho. Demoravam três, quatro, cinco dias para encontrar, tamanha a imensidão daquelas terras.”
Em 1958, Farias trocou Santa Quitéria pelo Rio. Estava com quase 17 anos, mas ainda não concluíra o ensino fundamental. “Meu padrinho, um carpinteiro, veio antes. Ele já morava no bairro de Botafogo quando me convidou: ‘Esquece a roça! Você não vai ter futuro nenhum se ficar no Nordeste.’ Eu escutei o conselho e parti.” No Rio, não retomou os estudos. “Só quis saber de trabalhar.”
A auxiliar de portaria também é de uma pequena cidade interiorana – Gravatá, em Pernambuco – e passou parte da infância na zona rural. “Meu pai plantava fumo, milho, aipim, feijão, café, inhame, algodão, batata-doce… Tudo no nosso sítio, um cafundó sem iluminação, sem vizinho, sem nada. Me lembro apenas de um senhor que morava perto da gente, um ex-escravo velhíssimo. Ele vivia num ranchinho. Vivia, não. O homem se escondia… Ficava assustado quando via algum de nós e se enfurnava dentro do rancho. Sempre que dava tempestade, os coqueiros do sítio balançavam à beça e os relâmpagos cortavam a escuridão. Eu morria de medo.” Depois de cada colheita, o pai transportava a produção para um armazém dele próprio, onde a negociava.
“Tive 27 irmãos”, prossegue a auxiliar de portaria. “Minha mãe se casou duas vezes, e meu pai, três. Por isso, espalharam tanto filho pelo mundo. Uma porção já morreu. Nem sei quantos. Não conheci todos.” Beirando os 9 anos, Lourdes se mudou para o Recife com a família. “Estudei bem pouco. Desisti da escola porque a matemática nunca entrou na minha cabeça. Somar, dividir, multiplicar, resolver expressão… Complicado demais para mim.”
Durante a adolescência, mesmo sem terminar o antigo ginásio, conseguiu “um empregão” na Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Como recepcionista e ajudante geral, servia um grupo de técnicos oriundos da França, principalmente engenheiros agrônomos. Em 1967, assim que saiu da autarquia, decidiu migrar para Niterói, onde já estavam duas sobrinhas. “Mas não gostei de lá, não. Preferi tentar a sorte no Rio.”

Baixa e rechonchuda, a auxiliar de portaria tem a pele muito clara, com manchas de sol tão numerosas que a deixam um tanto rajada. “Sou do tipo galega”, resume. Na juventude, orgulhava-se dos cabelos loiros, que agora se tornaram avermelhados. “Tintura, né? Quando não pinto, ficam brancos como as páginas de um caderno.” Ela não dispensa uma boa conversa e normalmente a tempera com ironias sutis ou expressões em francês. Aprendeu o básico do idioma na Sudene. Bonjour! Comment ça va?, costuma me dizer pela manhã.
De poucas palavras, Farias se considera “pavio curto, um sujeito sem papas na língua” e não aparenta a idade. Embora meça apenas 1,60 metro, é troncudo e aprumado, uma herança da época em que praticou jiu-jítsu. No horário de trabalho, veste invariavelmente calça escura e camisa social de mangas curtas, azul ou amarela.
À diferença do marido, a auxiliar de portaria não se alarmou quando tomou conhecimento do rapaz internado. “Vou me apavorar com vírus? Tenho mais medo de levar uma facada ou de um carro me atropelar. Se bem que é besteira pensar nessas infelicidades também. Estamos todos nas mãos de Deus. Ele decide a nossa hora. Nem vírus, nem ladrão, nem motorista bêbado vai nos matar se o Senhor não quiser.”
Evangélica há trinta anos, ela pertence à Igreja Internacional da Graça de Deus – denominação neopentecostal liderada pelo pastor R. R. Soares –, mas já integrou a Universal do Reino de Deus, capitaneada por Edir Macedo. “Hoje percebo que, no fundo, não seguia religião nenhuma antes de virar crente. Eu às vezes acompanhava a missa dos católicos. Outras vezes, botava o cordão protetor da Igreja Messiânica ou aparecia no centro espírita para jogar búzios. E jamais deixava de olhar o horóscopo. Era viciada. Comprava o jornal mesmo quando o dinheiro minguava, só para checar o meu signo.”
A auxiliar de portaria acredita que Deus “mandou a pandemia” com a intenção de alertar a humanidade. “A Bíblia afirma que Jesus vai voltar, certo? Que vai caminhar novamente sobre a Terra. Acontece que Jesus é santo. Como um santo vai andar num lugar tão pecaminoso feito a Terra de agora? Enquanto o pessoal cometer erros, as pestes vão atormentar a gente. As pragas não são novidade. Já enfrentamos muitas, e outras piores virão. Peste serve para os humanos se corrigirem. O campo precisa ficar mais limpo, entende? Caso contrário, Jesus não pode voltar.”
E o que ocorrerá quando Cristo retornar? “Ele vai salvar todos os que se converteram. Vai levar os fiéis para o Céu. Depois, meteoros atingirão a Terra. O planeta vai se consumir em fogo, e os raros que não se converteram sofrerão as consequências. Vão continuar na Terra, mas uma Terra destruída, sem água, sem comida. Pior: vão ganhar uma marca na testa, o número 666, que é o da Besta.”
Ela observava a inquietação do marido e comentava: “O Zé ainda não se tornou evangélico. Então treme de medo quando pensa na morte. Ele toma todo o cuidado para se manter vivo, mas não adianta: se Deus chamar, tchau! A minha salvação é Jesus. A do Zé, o álcool em gel e lavar a mão.”
O zelador, sorrindo, retrucou: “A Lourdes adora me tachar de ateu. Bobagem! Sou católico. Rezo o Pai-Nosso antes de dormir e me levantar, gosto de Nossa Senhora Aparecida e, se passo na frente de uma igreja, me benzo. Só não vou à missa nem acredito que Deus envia praga. Ele não tem culpa da nossa desgraça. Imagina se iria mandar coisa ruim para a gente… O Satanás, talvez. Deus, nunca!”

Na quinta-feira, 19 de março, Farias me interfonou:
– Era mentira!
– O quê, Seu Zé?
– O papo da internação. O rapaz não pegou a doença. Está com a saúde em dia.
– Como assim? Quem inventou a história?
– A própria faxineira que cuida do 301. Inventou porque queria me assustar. Filha da mãe! Brincadeira mais sem graça! Fiquei sabendo quando liguei para a proprietária do apartamento, atrás de notícias do moço.
Um boato, afinal – ou uma fake news à moda antiga. O zelador, porém, não parecia bravo. Pelo contrário: dava a impressão de que levou a “pegadinha” macabra na esportiva.
– Que alívio! Porra! – suspirou.
Àquela altura, a síndica do prédio, Rosa Maranhão, já tomava uma série de providências na esperança de minimizar os perigos corridos pelo casal de funcionários e pelos moradores ao longo da pandemia. Fixou regras para o recebimento de entregas e o uso dos elevadores. Solicitou que o zelador e a mulher colocassem luvas antes de mexer com o lixo. Explicou como desinfetar o hall de entrada e os corredores.
Recomendou que utilizassem máscaras e álcool em gel durante o serviço. “O ideal seria conceder licença remunerada para os dois e arranjar substitutos temporários”, admite a síndica, uma psicanalista que ocupa o cargo desde 2012. “Só que, infelizmente, nosso caixa não tem reserva. E aumentar o condomínio em plena crise provocaria um fuzuê.”
Disciplinado, Farias procura seguir tanto as orientações da síndica quanto as das autoridades sanitárias. Suspendeu as visitas da filha e dos netos, guarda certa distância dos condôminos e entregadores, põe a máscara com regularidade, evita ir à rua e limpa tudo compulsivamente. “Sabe os botõezinhos dos elevadores? Passo álcool em cada um depois que alguém sobe ou desce.” Fumante dos 14 aos 38 anos (“Queimava dois maços de cigarro por dia”), sofreu um infarto há pouco menos de duas décadas, mas se recuperou bem. Para preservar a saúde do coração, andava à noite pela orla de Copacabana. Agora, perambula apenas dentro do edifício. “Caminho da porta de casa até a porta do prédio e volto. Faço isso um monte de vezes. Só paro quando completo 1 km.”
No resto das horas vagas, engrossa a audiência da Rede Globo (não assina canais pagos). Vê o Jornal Nacional, a novela das nove e o Big Brother Brasil. “Gosto demais do BBB! Não perco um.” Ele também adora futebol e torce pelo Flamengo, o que não o impede de acompanhar outras equipes. “Botafogo, Vasco, Fluminense… Jogo de qualquer time me interessa, e os da Seleção, mais ainda.”
Sua mulher, em contrapartida, quase não toma precauções. Vai às compras frequentemente e zanza sem necessidade pelo bairro. Não costuma usar máscara nem fica com “aquela psicose de álcool em gel pra cá, álcool em gel pra lá”. Agarra-se às crenças religiosas e à convicção de ter um sistema imunológico excepcional. “Na infância, comi um bocado de feijão, além de manga, jenipapo, laranja, banana, jaca, goiaba, araçá… Por isso, ganhei muita resistência. Minha única doença é a gula.”
Como o casal possui dois televisores, a auxiliar de portaria consegue driblar a Globo. “Deixo o Zé assistir às imoralidades dele e fujo para as novelas bíblicas ou para os cultos da Record.” De vez em quando, prestigia o apelativo Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes, comandado pelo jornalista José Luiz Datena, de quem se declara fã.
À semelhança do parceiro, jamais consulta a internet. “Não lidamos com negócio de computador, e-mail ou Facebook, e meu celular é de mil novecentos e bolinha.” Para “ouvir louvores”, mantém no apartamento um toca-CDs, que ela insiste em chamar de rádio.

“Não votei no Bolsonaro logo de cara, mas o homem está certo. A quarentena precisa acabar. Os idosos e as pessoas com sintomas devem permanecer em casa, lógico. Os jovens, não! Por que trancar um moço de 30 anos, uma mulher de 40? Se a turma não voltar rapidinho para o trabalho, o prejuízo será imenso. Vai começar a bagunça, o quebra-quebra, o fogaréu nos ônibus.” Quando discorre sobre o isolamento social que freou o país, Farias se exalta. No primeiro turno das últimas eleições presidenciais, ele votou em Alvaro Dias, do Podemos, “um político sério, limpo e competente”. No segundo, optou por Bolsonaro. “Deixar o Fernando Haddad vencer? Deus me defenda! Sou trabalhador, mas detesto o PT!”
A birra do zelador com os petistas começou no fim de 1989. Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva disputavam a Presidência da República. Farias apoiava o “caçador de marajás” e colou uma propaganda do candidato no vidro do Opala Comodoro. “Eu estava levando um turista para conhecer o Mosteiro de São Bento, se não me engano. Perto da Praça Mauá, tinha uns cabos eleitorais do PT. Assim que os caras viram a propaganda do Collor, me mandaram parar. ‘Tira o adesivo agora!’, gritaram. ‘Se não tirar, vamos destruir o carro!’ Me assustei à beça. Nunca vou perdoar aquele absurdo. Me fizeram arrancar a propaganda só porque eu não queria votar no Seu Lula?!”
Pelas mesmas razões do marido, a auxiliar de portaria advoga o término da quarentena. “Quem não é do grupo de risco deve pegar no batente. O país vai acabar se a maioria continuar de braço cruzado. Por enquanto, a favela está quieta, mas quando a fome apertar… O pessoal do morro vai descer e o pau vai cantar aqui embaixo.” Nas eleições de 2018, ela não compareceu às urnas. “Passei dos 70 anos. Não tenho mais que votar.” Mesmo assim admira Bolsonaro. “Também simpatizo com o Lula. Os dois falam a língua do povão. Só que, no prédio, ninguém suporta o Lula. Chamam de ignorante, de ‘sem-dedo’, de vagabundo. Por causa disso, não fico espalhando que gosto dele. Je ferme ma bouche, compreende? Calo a minha boquinha.”
Dirigindo o Opala Comodoro, Farias tomou outro susto – dessa vez, junto da família. “Foi em 1990. A gente voltava do Espírito Santo depois de quinze dias em Guarapari. Umas nove e meia da manhã, estacionamos num posto da estrada para abastecer. Aproveitei e bebi uma dose de conhaque. Um pouquinho mais tarde, cismei de ultrapassar um caminhão num trecho complicado da rodovia. Acho que o conhaque me tirou o juízo… No meio da ultrapassagem, percebi que iria me estrepar, porque o caminhão acelerou em vez de reduzir a velocidade. Resultado: joguei o Opala para a esquerda e capotei. Caí numa ribanceira. Estava com a Lourdes, a Giseli, uma amiga e um bebê de 8 meses. Ninguém se feriu, acredita? Um milagre dos grandes! Enquanto capotava, me lembrei de rezar: ‘Perdão, meu Deus! Fui muito descuidado. Se a gente ainda merecer, nos salve!’ Nunca vivi nada tão horroroso. Coronavírus é fichinha perto daqueles segundos em que o carro rolou pela ribanceira.”

No edifício de Copacabana, há mais nove idosos, além do zelador e da mulher. Dois resolveram passar a quarentena em outro lugar. Entre os que permaneceram, alguns se isolaram por completo e não aceitaram nem mesmo conversar. A pernambucana Gina, do 701, topou, mas com ressalvas: “Não venha aqui. Prefiro que você me encontre no térreo. E, por favor, não revele meu nome de verdade. Bote só o apelido. Odeio me expor.”
Ela acabou de comemorar 72 anos. Viúva de um motorista particular, deu aulas de matemática nos ensinos fundamental e médio até os 54. “Sou do tempo em que os professores acompanhavam os estudantes de perto. Se um aluno faltasse demais, a gente ia à casa dele e tentava descobrir o problema.” Gina conta que lecionou sempre no Rio, tanto em escolas públicas como em privadas. Mudou-se para a capital fluminense ainda criança, após deixar São José do Belmonte, onde nasceu.
Agora que está aposentada, virou estudante de novo. Cursa o último semestre de teologia na Pontifícia Universidade Católica (PUC). Também frequenta oficinas semanais de interpretação bíblica em igrejas da Zona Sul.
Embora tenha três filhas e sete netos, vive sozinha, o que nunca a incomodou. Com a chegada do novo coronavírus, porém, a solidão se transformou num fardo. Hipertensa e diabética, cumpre à risca o isolamento social. “Sai pouquíssimo, apenas para o mercado ou a farmácia, geralmente de luva, máscara, calça comprida e sapato fechado. Quando volta, se despe, toma banho, lava as roupas e esteriliza as compras. A contragosto, abandonou as caminhadas diárias pelo calçadão e já não papeia com os amigos nos cafés do bairro nem vai à missa ou à praia. Interrompeu as oficinas bíblicas e substituiu as aulas presenciais da PUC por virtuais.
Confinada no apartamento acanhado do sétimo andar, resta-lhe ouvir a JB FM, ler, cozinhar, ver filmes em canais pagos, fazer crochê e se exercitar sob a orientação de tutoriais que garimpa na internet. “Me ocupo bastante. Mesmo assim, é bem duro… A fase mais difícil que atravessei em 72 anos. Sinto saudades da antiga rotina e principalmente da família. Tenho adoração por meus netos. Sou chameguenta. Sofro muito com a distância deles.”
Recentemente, Gina recebeu o telefonema desesperado de uma conhecida. “Fiquei péssima. Uma senhora tão bonitinha, uma artesã de mão-cheia, pensando em se matar… ‘Não aguento mais, Gina! Só aparece notícia ruim na televisão.’ Respondi: ‘Então desliga a tevê! Você precisa se desintoxicar! Suicídio é pecado mortal!’”
Às vezes, a professora se pergunta o que Deus está querendo nos dizer. “Ele parou o mundo inteiro. Por quê? Será que se entristeceu com tanta prostituição, tanto homossexualismo, tanto travesti?”

De tão magro, elétrico e desengonçado, o recifense Edmundo Amaral, do 801, lembra os mamulengos, aqueles fantoches típicos do Nordeste. No prédio, todos o tratam por Comandante. Ele próprio se apresenta desse jeito: “Muito prazer, Comandante Amaral.” Ingressou na Marinha quando adolescente e se aposentou em 1987, como capitão de mar e guerra. “Passei quase mil dias a bordo de navios.” Tem 82 anos e três filhos, incluindo um enteado. Com frequência, usa bonés, camisetas e bermudas que exibem o distintivo do Flamengo.
Foi morar sozinho em 2017, após se separar da segunda mulher, e ainda não aprendeu a cozinhar. “Sobrevivo à base de congelados. Lasanha, almôndega, essas bostas. Se me dá na telha, encomendo um franguinho de padaria.” Hoje goza de boa saúde, mas já amargou um câncer de pulmão.
Concordou em me encontrar no térreo e, durante nossa conversa de meia hora, proferiu uma enxurrada de declarações contundentes:
“Você é da Folha? Do Globo? Se for, não quero papo. Jornalecos sem-vergonha! Mentirosos, terroristas, ‘subversas’, comunas, safados, apátridas! Um nojo! Tomara que o Clube Naval cancele a assinatura dos dois.”
“Não me separei de ninguém, não. Ela é que se separou de mim. Resolveu cuidar da mãe doente em São Paulo. Compreendo, mas não dá, né? Até parece que vou me mudar para São Paulo… Lugarzinho irritante… Sem praia, com um clima terrível e repleto de gente dizendo ‘Orra, meu!’ Tô fora!”
“Como me definir em poucas palavras? Escreva: flamenguista e contra o PT. Ponto final.”
“Note bem: não gosto do Bolsonaro. Gosto é do que o Bolsonaro defende.”
“Se o entregador da farmácia pode trabalhar em plena epidemia, por que o vendedor de sapatos não pode? Isolamento, sim, mas só para o grupo de risco.”
“O coronavírus é uma sacanagem da China, meu amigo! Tenho certeza. Comunista não presta. Todos filhos da puta! Se necessário, matam sem dó. Os chineses deixaram o vírus se espalhar porque desejam que a economia do mundo vá para o buraco. Assim, conseguirão levar as empresas dos outros países a preço de banana. Está na cara!”
“Respeito a quarentena, claro. Sou velho pra cacete, porra! Mas acho um saco! Ridículo! Vontade de chutar o balde! Manja o leão trancado na jaula? Não posso nem ver as namoradas. Para suportar o tédio e diminuir a ansiedade, encaro dois fitoterápicos por dia, um de manhã e outro à noite.”
Toda vez que há panelaço nas redondezas contra o presidente da República, o Comandante vai até a janela e grita: “‘Fora, Bolsonaro’, merda nenhuma! ‘Fora, corona’, pô!”

Em meados de abril, quando desci para pegar uma encomenda, Farias me chamou. Ele tomava conta da portaria, como de hábito. “Andei pensando…”, me disse, circunspecto. “No fundo, estou em isolamento desde que cheguei aqui, há quase trinta anos. Zelador trabalha seis dias por semana e só folga um. Vive sempre confinado. É uma espécie de Big Brother, mas sem a piscina…
(revista piauí)

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

O infortúnio de João Gostoso

Pesquisadores encontram reportagens que motivaram poema de Manuel Bandeira

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sábado, 1 de junho de 2019

Hércules do morro

Quando o homem mais forte do Pavão-Pavãozinho fraquejou

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